Canais de Luis Correia

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O Movimento da Ruas e a Medicina Baseada em Evidências



Nessa época de indignação que vinha adormecida há muito tempo, foi bonito ver a manifestação dos médicos ontem pelo país a fora. Cobramos melhores condições de trabalho e mostramos que não é com soluções fictícias que se resolverá o problema da saúde no Brasil. As soluções apresentadas pela presidente deste país evidenciam claramente a desordem que habita a mente presidencial, as virtuais propostas representam mais coisa de marqueteiro do que de estadista. De fato, Dilma está longe de ser um estadista e esse momento requer um desses. De médicos cubanos a “20.000 unidades de atendimento médico” essas são as soluções até então apresentadas.

Qual a relação da medicina baseada em evidências com esse momento que o país está vivendo? Além de ir às ruas para exigir condições melhores de trabalho, talvez os médicos possam usar esse momento para refletir se a responsabilidade está toda nos governantes ou se tem alguma que seja nossa também. Ou somos apenas vítimas?

É aí que entra a medicina baseada em evidências, pois além de propor que decisões médicas sejam baseadas em análise científica voltada para eficácia e segurança, o pensamento vai ao encontro da racionalização dos gastos médicos. Deveríamos pensar de forma sistemática em eficácia, efetividade e eficiência (custo-efetividade). Perceberíamos que a melhoria não depende apenas do governo, mas também de como nós, médicos, “administramos” os recursos oferecidos. Senti falta de alguns cartazes com esse tom de amadurecimento em relação a nossas próprias responsabilidades. Desta forma, seguindo o estilo presidencial, apresentarei cinco propostas baseadas em evidências, que representam um pouco que podemos fazer por um sistema de saúde mais eficiente.

1.  Utilizar do princípio mais básico da medicina baseada em evidências: uma conduta terapêutica deve ser instituída como rotina quando houver comprovação científica de seu benefício (exceção às situações de plausibilidade extrema). Neste quesito, devemos evitar o fanatismo por condutas nãodemonstradas e, de forma responsável, implementar rotinas com base no demonstrado. Assim, economizaríamos bilhões na medida em que coisas como Xigris não seriam implementadas antes da hora. Cada especialista pode rapidamente identificar os inúmeros exemplos de procedimentos de alto custo que foram utilizados por muito tempo apenas para depois entendermos que aquilo de nada valia. Isso é rotina na prática médica, trazendo prejuízos financeiros, clínicos (quando a conduta na verdade é maléfica) e científicos (criação de falsos paradigmas, difíceis de derrubar retroativamente).

2.  Evitar a cultura de exames inapropriados. Grande parte dos exames que solicitamos não vão ajudar o raciocínio diagnóstico (atrapalham), nem muito menos melhoram o desfecho do paciente. No entanto, vivemos e propagamos a cultura dos exames, a cultura do check-up. Vejam o caso do teste ergométrico, em que os médicos reclamam tanto o pagamento de míseros 50 reais pelos planos de saúde. Estudo realizado por nosso grupo (tese de Antônio Marconi, de Petrolina) mostrou que 85% das solicitações de testes ergométricos para pesquisa de doença coronária em sua região são inapropriadas, ou seja, testes realizados em pacientes assintomáticos ou com baixa probabilidade pré-teste. Essa amostra tinha tanto pacientes do SUS, como de convênio. Ora, se a gente banaliza tanto um exame, nossa remuneração fica banalizada também, claro. Um exame que praticamente todo adulto faz anualmente, precisa ser muito barato mesmo. Por que não sentamos na mesa e negociamos? “Vou pedir menos exame desnecessário e você aumenta o valor do exame.” Isso sem falar na peregrinação que um paciente do SUS tem que fazer quando um médico “caneta” a solicitação inapropriada de um teste ergométrico. Peregrinação esta que muitas vezes termina em uma clínica popular, com o paciente pagando (desnecessariamente) pelo exame, pois o SUS não tem (nem nunca terá) condição de fazer tanto teste, em tanta gente. Vai até de encontro ao Ato Médico, pois não tem médico para fazer teste em 100% dos adultos brasileiros. Vai acabar tendo que importar médico de cuba mesmo. Estão vendo a incoerência?

3.  Evitar overdiagnosis e overtreatment: muitos dos exames desnecessários acabam sendo positivos (verdadeiramente), mas isso não significa que haja necessidade de tratamento. Angioplastia está indicada em paciente assintomático com entupimento de 75% de uma de suas artérias? Depois de um PSA (contra-indicado como exame de triagem), vem a biópsia, que muitas vezes dá positiva para uma adenocarcinoma localizado, em paciente assintomático. Quase sempre resulta em prostatectomia. Estamos no caminho certo ao diagnosticar e tratar pseudo-doenças? Isso merece uma reflexão.

4.   Pensar em custo-efetividade: mesmo terapias de comprovada eficácia, devem ser analisados sob o crivo da magnitude de seu benefício. Utilizemos o paradigma do NNT. Benefícios verdadeiros, porém de baixo impacto, pouco mudam a vida do paciente. E às vezes são de alto custo. Mesuremos o benefício e avaliemos o custo deste benefício. Há terapias de alto custo (novidades), cujo impacto devem ser analisado na razão de seu benefício. Sejamos responsáveis ao propor que o SUS passe a oferecer stents farmacológicos. Vela a pena mesmo? Onde chegaremos? Precisamos entender melhor o pensamento de custo-efetividade.

5. Propagar o desenvolvimento do pensamento científico: esta deve ser ferramenta crucial para o médico. Nos livra do lobby da indústria farmacêutica, de interesses pessoais, da excessiva hierarquia de conhecimento, a qual inibe o desenvolvimento de nossa forma de pensar. Ciência se desenvolve com base no debate informal, troca de idéias. Em nossos congressos, pouco discutimos ideias, pouco reavaliamos nossos paradigmas. Nos limitamos a repetir o que é dito tradicionalmente, repetir o texto de guidelines. Assim não há risco de discordância, porém corremos o risco de estagnação. Ciência é democracia.

Temos poder de modificar e melhorar a qualidade da saúde pública. E também da saúde  complementar, por que não? Embora nosso aprimoramento não seja suficiente para resolver as questões, este é necessário. Sem a racionalização da medicina, as mudanças reivindicadas não serão resolutivas. Há exemplos de países desenvolvidos com medicina socializada, que aplicam os recursos de forma muito mais racional do que nosso pobre país. Precisamos mudar nossa cultura. Devemos exigir desse governo mediano, como fizemos ontem. Mas podemos também oferecer nossa contra-partida. 

7 comentários:

  1. Excelente "cutucada"!Não tenho dúvidas de que a responsabilidade do sistema tem de cair sobre os nossos ombros. Do ponto de vista ético, os médicos são os únicos passíveis de processo, caso as condições de trabalho resultem em prejuízo à assistência (está no Código de Ética Médica). Isso é uma responsabilidade para a categoria que deve(ria) ter o discernimento sobre o necessário. Não aprendemos a pensar assim. Não somos formados para pensarmos no sistema e no impacto das nossas ações sobre ele. E isso é muito grave. As denúncias relacionadas ao implante desnecessário de stents, por exemplo, no EUA, é uma desses exemplos. A reeducação precisa acontecer. E precisamos entender que somos capazes de colocar um sistema inteiro abaixo, impagável. Um reduto de insatisfações.

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  2. Muito bom !
    Vivemos sem dúvida em momento de reflexão sobre tudo o que é o nosso país. Fomos às ruas pelo sonho de exercermos uma Medicina com qualidade e criamos expectativas de que mudanças ocorram, que haja um basta ao pesadelo de medidas insanas de nossos governantes. Mas é imprescindível que em nosso ato como Médico, em uma prescrição ou através da solicitação de exames complementares haja também a reflexão de que a qualidade de nossa Saúde passa também por nossas mãos. Pensar sobre o real benefício ao paciente em tais condutas é um exercício que deve ser frequente e deve sempre ter como base as boas evidências científicas. Lembrar que um exame mal solicitado pode ter um custo muito alto tanto para o Sistema de Saúde, bem como para o paciente que entra em um ciclo de exames subsequentes e até intervenções desnecessárias.
    Devemos manter nossas exigências por uma Saúde digna, sempre ! Mas não esqueçamos de olhar para cima, pois nosso telhado ainda é de vidro.

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  3. Muito interessante reflexão, Luis.
    Nós, médicos, temos a obrigação de dar a nossa contrapartida para melhoria da saúde da nossa população, com atitudes por você apropriadamente sugeridas ou outras de igual sensatez. Não devemos sair por aí indicando exames diagnósticos ou terapêuticas sem embasamentos que venham a beneficiar aos nossos pacientes.

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  4. Os médicos não querem as vagas que o governo oferece e também não querem que elas sejam ocupadas por médicos estrangeiros. Eu vivia na França quando a extrema direita de Jean Marie Le Pen fez sua aparição na cena política. Seu movimento tinha um conteúdo racista e violento, mas é bom reconhecer que o discurso não excluía o estrangeiro. Dizia, apenas, que os franceses deveriam ter prioridade sobre os estrangeiros. Não se proibia argelinos nem marroquinos de ocupar empregos que os franceses não desejavam – em linhas de montagem na indústria, por exemplo – nem se queria impedir que tivessem acesso ao serviço social. A bandeira do Front National era pela preferência. Ele dizia: “os franceses em primeiro lugar.”

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  5. Todas as áreas de conhecimento humano, os saberes e as experiências são construídos na experimentação e na prática, numa relação diretamente proporcional; ou seja, quanto mais lidamos com determinada coisa ou situação, mais conhecimento acumulamos. Sendo assim, acho que deveríamos ter um espaço diferenciado ao diálogo e explanações de todas as formas e tipos para todos aqueles que precisam de um olhar diferenciado sobre tudo que envolve a questão saúde/doença e principalmente no que diz respeito ao "olhar social para paciente", visão holística, tratá-lo como um todo. Respeito ao próximo sempre, saúde para todos, humanismo.
    Abraço a tds - Abraão Rosah.

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  6. Genial esse modo de pensar e de visão de mundo, seria muito importante termos mais espaço msm aos diálogos. Estou de acordo.

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