Canais de Luis Correia

domingo, 27 de novembro de 2011

Viés, Acaso e Demissão


Na recente postagem Ensaio sobre Conflito de Interesse, utilizei como exemplo um editorial escrito por Podermans D, o qual defendia o uso dos beta-bloqueadores em pré-operatório de cirurgia não cardíaca, exatamente quando o ensaio clínico POISE mostrou aumento da mortalidade com esta terapia. Aquele foi um exemplo especulativo, pois coincidentemente eu havia “flagrado” o mesmo médico fazendo o papel de speaker da indústria de beta-bloqueadores no congresso mundial de cardiologia.

Na semana passada, o colega Roberto Dutra me chamou atenção de uma notícia no theheart.org:

Rotterdam, the Netherlands (updated) - Erasmus Medical Center has fired Dr Don Poldermans, a well-known researcher in cardiovascular medicine, for violations of academic integrity [1]. In a statement, the hospital said that Poldermans was careless in collecting data for his research and also used fictitious data to prop up his findings.

Podermans foi demitido por um padrão inadequado de conduta científica.

Muitas vezes alunos me perguntam como a gente pode saber se um pesquisador fraudou seus dados. Minha resposta é que isso geralmente não é o caso. O que normalmente ocorre é uma tendenciosidade no desenho, condução ou interpretação do estudo, mais do que exatamente uma fraude. E dá para diagnosticar este padrão com a análise metodológica do trabalho em questão.

Vamos exemplicar com o estudo DECREASE I, publicado por Podermans et al em 1999, no prestigiado New England Journal of Medicine, artigo bastante citado pelos entusiastas do uso de beta-bloqueador em pré-operatório de cirurgia não cardíaca.

O estudo DECREASE é um prato cheio para treinamento de análise crítica. Trata-se de um ensaio clínico que randomizou 112 pacientes (candidatos a cirurgia vascular e que tinham isquemia miocárdica) para dois tipos de tratamento: usar bisoprolol (iniciado uma semana antes da cirurgia e mantido por 30 dias depois) ou não usar bisoprolol. O estudo mostrou uma impressionante redução de mortalidade cardiovascular (3.4% vs. 17%, P = 0.02) e redução de infarto (0% vs. 17%; P < 0.001). Impressionante mesmo, NNT = 7 (100/redução absoluta do risco = 100/14) para redução de morte. Sinceramente, eu nunca vi um NNT tão bom para redução de mortalidade com qualquer terapia farmacológica. Os tratamentos farmacológicos de maior impacto em cardiologia, como inibidor de ECA em ICC ou trombólise no infarto possuem NNT em torno de 20. O NNT = 7 é um achado sem precedentes.

Precisamos então analisar a veracidade deste achado. Epidemiologicamente, uma associação pode decorrer de 3 fatores: viés, acaso ou causa. Causa é quando de fato a droga está provocando redução de mortalidade. Mas antes temos que analisar as outras duas possibilidades.

Viés é um erro decorrente de falha na metodologia do trabalho. Neste estudo, existe um potencial viés de mensuração da variável desfecho: o estudo é aberto, sem utilização de placebo no grupo controle.

Usualmente desfechos duros como morte são mais resistentes ao viés de mensuração de um estudo aberto. Isto porquê morte é um desfecho tão objetivo que sofre menos de erro de interpretação. Porém devemos notar que o desfecho no estudo DECREASE I é morte cardiovascular, não morte geral. Segundo o trabalho, não houve morte não cardiovascular, todas as 9 mortes do grupo controle e as duas no grupo bisoprolol foram de origem cardiovascular. Estranho só ter morte cardiovascular. E o que é morte cardiovascular em cirurgia vascular? É morte por infarto ou morte por complicação da cirurgia vascular foi considerada? De fato, o saber que um paciente estava no grupo controle poderia ter induzido os médicos a considerar a causa da morte do paciente como cardiovascular. Ou seja, morte de uma dada origem não é desfecho tão objetivo como morte geral. De forma que ocorre aqui a interação do caráter aberto do estudo com um desfecho que não é plenamente objetivo, interação esta já mencionada previamente neste Blog. Isso representa um potencial viés de mensuração do desfecho.

Na verdade, não podemos ter certeza qual o mecanismo exato pelo qual este viés pode ter contribuído para os resultados. O fato é que temos duas situações inusitadas: um estudo aberto de apenas 112 pacientes publicado no NEJM e uma redução de mortalidade nunca antes vista com um tratamento farmacológico. Talvez tenha alguma coisa errada.

Mas não ficamos por aqui. Falamos em três possibilidades: viés, acaso e causa. Analisando agora a segunda possibilidade, acaso, percebemos outro potencial problema. Este é um estudo truncado - interrompido precocemente devido a achado favorável à droga. Inicialmente o autor planejou um tamanho amostral de 226 pacientes para lhe fornecer um poder estatístico adequado. De início, já acho esse cálculo de tamanho amostral questionável, pois foi baseado em uma premissa de altíssima incidência de desfecho (28%). Mas vamos considerar que este cálculo de tamanho amostral como adequado. Mesmo assim, não foram randomizados os 226 pacientes prometidos. O autor interrompeu o estudo com apenas metade dos pacientes randomizados, pois verificou um resultado muito bom a favor da droga. Muito bom para ser verdade.

E é exatamente este o problema de estudos truncados. Quando o tamanho amostral é muito pequeno, uma diferença muito grande entre os dois grupos é necessária para que se consiga significância estatística. Diferença tão grande que se torna inverossímil. Diferença tão grande que só pode ter decorrido do acaso. Por isto que quando o poder estatístico é insuficiente, o valor de P tende a subestimar a probabilidade do acaso. Ou seja, o acaso pode ter ocorrido, apesar do valor de P < 0.05. Este é o primeiro problema. O segundo problema é que o autor está interrompendo o estudo no melhor momento, garantindo que aquele resultado desejável não seja corrigido pelo crescimento do tamanho amostral, se de fato precisar ser corrigido. Terceiro, são várias as análises interinas, e a probabilidade do acaso aumenta pelo problema das múltiplas comparações (postagem futura abordará este problema). Desta forma, este estudo tem grande possibilidade de estar errado, não devendo servir de argumento para o uso de beta-bloqueador.

Em 2009 Podermans publicou o DECREASE IV, agora no Annals of Surgery. E fez a mesma coisa: estudo aberto e truncado. Havia sido planejado 6.000 pacientes e o cara interrompeu o estudo com apenas 1.000 pacientes! Assim, ele demonstra benefício, porém de uma magnitude muito menor (mortalidade total: 1.1% bisoprolol vs. 3.4% controle - NNT = 43) do que o impressionante benefício do DECREASE I. Isso é uma prova de que o DECREASE I era um estudo enviesado e impreciso. O DECREASE IV é menos impreciso, pois tem maior tamanho amostral, porém sofre dos mesmos problemas metodológicos.


Por outro lado, há o estudo POISE, co-patrocinado pela indústria farmacêutica e por orgãos governamentais do Canadá, Austrália e Inglaterra. Este estudo randomizou 8.000 pacientes e não demonstrou benefício do uso do beta-bloqueador. Na verdade, houve até maior incidência do desfecho primário no grupo beta-bloqueador.  Este estudo foi criticado pela forma intempestiva com que o beta-bloqueador foi utilizado, o que poderia ter sido responsável pelo resultado insatisfatório. Pode até ser, mas isso não nos autoriza a utilizar beta-bloqueador. O que nos autorizaria a usar o beta-bloqueador seria a demonstração de benefício, o que não ocorreu no estudo POISE. Benefício foi apenas demonstrado por estudos de má qualidade metodológica. 

Em 2008 foi publicada no Lancet uma meta-análise de 33 ensaios clínicos randomizados que avaliaram a questão. A conclusão foi ausência de benefício. Interessante foi a análise de sensibilidade, onde os estudos classificados como alto risco de viés sugeriam benefício e os estudos classificados como baixo risco de viés não sugeriam benefício. 

É neste momento que presenciamos uma dos maiores exemplos de violação do segundo princípio da medicina baseada em evidências (A Hipótese Nula). O recente Guideline Europeu de Pré-operatório (2009 - coordenado por Poderman) e a recente Diretriz Brasileira (2011) recomendam o uso de beta-bloqueador como Classe I, sem dados científicos suficientes para rejeitar a hipótese nula e passar a acreditar neste benefício. Lembrem-se, o que justifica uma terapia é a demonstração do benefício. A ausência de demonstração definitiva de malefício com formas mais brandas de utilização do beta-bloqueador não indica terapia nenhuma. Já o Guideline Americano atualizou sua diretriz em 2009 no intuito de retirar a indicação classe I do beta-bloqueador. Classe I foi apenas para pacientes que já vinham em uso de beta-bloqueador.

Drogas não devem ser recomendadas com base apenas em plausibilidade (Princípio 4), nem com base em estudos como os DECREASE I ou IV, nem com base na não demonstração de prejuízo se for usada de forma mais cuidadosa. Até que se prove o contrário, beta-bloqueador não é benéfico e pode até ser deletério.

Basear-se em estudos como DECREASE I e IV é um tipo de erro de pensamento médico denominado de ancoragem. Este erro ocorre quando queremos acreditar em uma hipótese (clínica ou científica) e nos ancoramos em argumentos que nunca utilizaríamos se não tivéssemos um viés a favor daquela conclusão.

Não precisávamos da notícia da demissão de Podermans para duvidar do resultado dos DECREASEs. Era só ler os estudos. Mas só agora com esta notícia que a Sociedade Européia de Cardiologia anuncia que resolveu revisar suas conclusões relativas ao Guideline de Pré-operatório de Cirurgia não Cardíaca.

domingo, 13 de novembro de 2011

Valor Diagnóstico do Escore de Cálcio Zero




Recentemente postamos uma série de artigos entitulada Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.

Naquelas postagem discutimos detalhadamente como analisar a veracidade da informação sobre acurácia (1), magnitude da acurácia (2) e utilidade de métodos dignósticos (3,4). A intenção daquela série foi servir de guia para futuras análises da literatura, onde revisamos este conhecimento. Foi o que fizemos na análise do artigo sobre troponina de alta sensibilidade (5) e faremos agora com um artigo publicado ahead of print no Journal of the American College of Cardiology por Villines et al (Estudo CONFIRM).

O trabalho intitulado Prevalence and Severity of Coronary Artery Disease and Adverse Events Among  Symptomatic Patients With Coronary Artery Calcification Scores of Zero Undergoing Coronary Computed Tomography Angiography avalia a acurácia diagnóstica do escore de cálcio coronário na detecção de doença coronária obstrutiva em 10.000 pacientes com sintomas possivelmente anginosos, tendo angiotomografia de coronária como padrão de referência. Nesta postagem, discutiremos o significado diagnóstico destes achados.

Na discussão do trabalho, o autor afirma:

In this large, multicenter, international cohort without known CAD, clinically referred for noninvasive coronary angiography, the absence of measurable CAC significantly reduced, but did not fully exclude, the presence of obstructive CAD on current generation CCTA.

Observem que esta sentença tem uma afirmação positiva (the absence of measurable CAC significantly reduced, the presence of obstructive CAD) e outra negativa (but did not fully exclude) – ambas corretas. Mas o que deve prevalecer como mensagem final? As frases de conclusão do autor sugerem que a mensagem negativa deve prevalecer:

Conclusão do Resumo: In symptomatic patients with a CAC score of 0, obstructive CAD is possible.
Conclusão do Artigo: In symptomatic patients referred for CCTA, the absence of CAC reduces but does not fully eliminate the occurrence of obstructive CAD.

É neste ponto que discordamos.

Primeiro devemos reconhecer que a especificidade do escore de cálcio é insatisfatória, apenas 59%. Mas nossa discussão aqui será mais focada na sensibilidade, pois esta é a propriedade que interfere nas conclusões acima citadas.

Em sentido estrito, a conclusão é correta, ou seja, o escore de cálcio zero não afasta a possibilidade da presença de estenose coronária. Isto porquê a sensibilidade relatada foi 89% para estenose > 50%. Significa que 11% dos pacientes com estenose coronária não teriam este problema detectado pelo escore de cálcio.

Depois de reconhecer que o método não afasta a doença, devemos partir para uma análise mais aprofundada da acurácia. Primeiro, precisamos ter a perspectiva de que nenhum método não invasivo é capaz de afastar totalmente a presença de doença coronária. Mesmo métodos consagrados, tais como cintilografia miocárdica (sensibilidade de 87%), eco-estresse (80%) e até mesmo a angiotomografia de coronária (83%) não têm sensibilidade melhor do que a relatada aqui. Ou seja, nenhuma pesquisa não invasiva de doença coronária é determinística. Isto faz com que precisemos aplicar nesta discussão o raciocínio probabilístico, ou seja, o quanto um resultado negativo do escore de cálcio reduz a probabilidade do indivíduo ter doença obstrutiva. Este é o raciocínio que vai definir o valor da informação escore de cálcio zero.

Para saber o quanto um resultado negativo (escore zero) é capaz de reduzir a probabilidade da doença, precisamos avaliar a razão de probabilidade (RP) negativa (1-sensibilidade/especificidade). O autor fez este cálculo (1 – sensibilidade 0.89 / especificidade 0.59): RP negativa = 0.19. Este é um valor bem razoável, pois entre 0.10 e 0.20 o resultado negativo promove uma mudança moderada na probabilidade pré-teste de doença (RP negativa menor que 0.10 seria uma grande mudança).

Testes com RP negativa moderada são utéis para afastar doença em pacientes com probabilidade pré-teste até intermediária. E foi exatamente isto que aconteceu neste trabalho. A probabilidade pré-teste de doença, estimada pelos critérios de Diamond-Forrester, foi de 32% no grupo com escore negativo e 54% no grupo com escore positivo (probabilidades intermediárias). Desta forma, se o teste for negativo, vamos aplicar uma RP negativa de 0.19 a uma probabilidade pré-teste moderada. Isto é suficiente para reduzir a probabilidade de doença para valores bem baixos. É suficiente para nos deixar em uma zona de conforto. Na mesma zona de conforto que qualquer outro método não invasivo nos deixaria.

Probabilidade pós-teste é o mesmo que valor preditivo. Neste caso, os autores relatam que o valor preditivo negativo do escore de cálcio foi de 96% para afastar estenose > 50% (ou seja, sobra apenas 4% de probabilidade de doença). 

Na verdade, o escore de cálcio é um bom teste para reduzir a probabilidade de doença. Se quisermos tanta certeza para afastar a doença, apenas o cateterismo (que é definido como padrão-ouro) faria melhor. Nenhum outro método não invasivo faria melhor.

Vamos imaginar um homem de 50 anos, que dá entrada no setor de emergência com dor torácica de características intermediária. Digamos uma dor atípica, porém não atípica o suficiente para termos segurança de liberar este paciente. Eletrocardiograma normal, troponina negativa. De acordo com critérios de Diamond-Forrester, este paciente tem 22% de probabilidade pré-teste de doença obstrutiva. Se fizer um escore de cálcio zero, aplicando a RP negativa de 0.19, este indivíduo passa a ter apenas 5% de probabilidade de doença obstrutiva (como calculei? acabo de usar o Medcalc do meu Iphone – categoria evidence-based medicine – post-test probability). Assim, ele pode ser liberado.

A coisa ainda fica melhor se considerarmos os resultados do trabalho relativos a estenose > 70% como definição de doença obstrutiva. Neste caso, a sensibilidade do escore de cálcio sobe para 92%, a razão de probabilidade negativa passa para 0.15 e o valor preditivo negativo (nessa amostra de probabilidade intermediária) para 99%.

Metade dos pacientes deste estudo tiveram escore de cálcio zero. E neste caso, a probabilidade de estenose > 50% cai para 4% e > 70% cai para 1%. Então como rejeitar o valor deste método em pacientes de probabilidade baixa ou intermediária?

Um possível argumento contra a minha idéia é o de que não queremos perder a detecção destes 4% dos pacientes (ou 1% dos pacientes com placa > 70%), pois doença coronária é um problema grave. Mas então, como fazer para melhorar ainda mais a sensibilidade, o que levaria a uma melhora na RP negativa e finalmente a um valor preditivo negativo ainda melhor? Faríamos um angiotomografia de coronária?

Qual a acurácia da angiotomografia de coronária mesmo? Vamos utilizar o CORE-64, principal estudo desta área, publicado no NEJM: a sensibilidade é 83%, especificidade 91%, razão de probabilidade negativa de 0.19. Isto mesmo, 0.19, exatemente a mesma RP negativa do escore de cálcio igual a zero. Por isso, o valor preditivo negativo da angiotomografia de coronária no CORE-64 foi 81%, também não afasta a doença. Ou seja, uma vez que o resultado seja negativo, angiotomografia de coronária não é melhor que escore de cálcio coronário para afastar a doença. Se quisermos certeza mesmo da ausência de doença, deveríamos solicitar cateterismo cardíaco para todo mundo. Porém isso não faz sentido, usar o raciocínio diagnóstico probabilístico faz mais sentido, claro.

Devemos reconhecer que o resultado da angiotomografia identifica um maior número de pacientes sem a doença (especificidade). Este pode ser um argumento válido a favor da angiotomografia. Mas o argumento de que o escore de cálcio zero não afasta doença é errado, pois ele não afasta exatamente da mesma forma que a angiotomografia não afasta. 

Aí surge um novo problema do estudo em questão. Diferente dos estudos  prévios (por exemplo, Gotllieb et al, JACC 2010), o estudo que discutimos hoje não utilizou o cateterismo como padrão de referência para avaliar a acurácia do escore de cálcio. Utilizou a angiotomografia de coronária, a qual não tem melhor sensibilidade do que o escore de cálcio (apesar de ter melhor especificidade). É como uma aluno mediano corrigir a prova de outro aluno mediano (no que diz respeito à sensibilidade). Desta forma, há um problema de veracidade, relacionado à escolha do padrão de referência. Como já comentamos, este é um dos principais ítens da análise de veracidade: qualidade do padrão de referência.

Em resumo, o que precisamos entender é que nenhum método não invasivo afasta a doença coronária obstrutiva. Neste caso, o que temos que procurar é o raciocínio probabilístico e não o pensamento determinístico. O raciocínio probabilístico promove a interação do quadro clínico com o resultado de um exame, nos oferecendo uma probabilidade de doença final que nos deixa confortáveis para tomar uma decisão.

Na verdade, o artigo em questão vai ao encontro das evidências que mostram ser o escore de cálcio um método aceitável para afastar doença coronária em pacientes com probabilidade pré-teste baixa ou intermediária. Não vai de encontro, tal como tentam sugerir os autores.


* Um melhor entendimento desta discussão ocorre após revisão das série de postagens Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.

sábado, 5 de novembro de 2011

Ensaio sobre o Pensamento Lógico - Quarto Princípio da MBE


Após ter discutido na postagem anterior os três mais básicos princípios da medicina baseada em evidências. Hoje discutiremos o quarto princípio: plausibilidade biológica não garante benefício clínico.

É função da mente humana fazer conexões lógicas de causa-efeito, um dos principais determinantes de nossa evolução intelectual. René Descartes foi o filósofo que melhor organizou o pensamento lógico e acreditava ser este suficiente para que o homem dominasse o conhecimento de todas as leis que regem o universo. Este é o paradigma científico cartesiano. Na verdade, muito antes de Descartes, desde que o homem é homem, a lógica tem sido essencial, até mesmo para nossa sobrevivência: como não sou pássaro, não devo pular do despenhadeiro, pois vou morrer.

Assim, são tão numerosos os exemplos onde a lógica é extremamente plausível, que a utilização deste tipo de pensamento se torna de grande utilidade no cotidiano. Estou muito cansado, devo dormir mais cedo hoje, mesmo que ninguém tenha feito um ensaio clínico randomizado para avaliar o efeito terapêutico do sono.

É exatamente pela grande utilidade e freqüente acurácia do pensamento lógico em suas funções mais básicas, que o homem se condicionou a utilizar tanto a lógica. O problema surge quando extrapolamos a crença no pensamento lógico das funções mais básicas para funções mais complexas. Assim como há inúmeras situações (básicas) em que a plausibilidade prevalecerá, há inúmeras situações (complexas) onde plausibilidade é diferente da realidade. E isto é muito comum quando estamos lidando com sistemas complexos, onde um desfecho é decorrência de uma multiplicidade de causas, que interagem entre si, tornando impossível prever o que acontecerá com base no pensamento cartesiano. O sistema biológico é dos mais complexos, por isto que em medicina a lógica é apenas o início da história. Pensem, por exemplo, na complexidade do sistema inflamatório, o número de tipos celulares e citocinas envolvidas do processo.

Em medicina, são inúmeros os exemplos nos quais a lógica é diferente da realidade. É só revisar um pouco as postagens deste Blog, todo dia surgem evidências frustrando hipóteses lógicas e nos lembrando deste Princípio 4.

Existe algo mais lógico do que inotrópicos positivos serem benéficos para pacientes com insuficiência cardíaca devido a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo. Apesar da forte lógica, sabemos que potentes inotrópicos tendem a ser maléficos no longo prazo (Vernarinone) e digitálicos são apenas medicações sintomáticas, os quais não reduzem mortalidade. No outro extremo, existe algo mais lógico do que drogas inotrópicas negativas serem prejudiciais para este tipo de paciente? No entanto, há uns 15 anos se descobriu que beta-bloqueadores são altamente benéficos nesta situação, um dos mais eficazes prolongadores da vida destes pacientes. Este é um exemplo de total inversão da lógica: inotrópicos positivos maléficos e inotrópicos negativos benéficos. Hoje ninguém duvida disso, pois temos evidências científicas consistentes.

Desta forma, em medicina a palavra final não deve ser a lógica ou a plausibilidade. A lógica serve para criar hipóteses, que devem ser testadas experimentalmente antes de aplicadas na prática clínica. Até a comprovação científica, tudo fica no terreno da especulação e deve prevalecer a hipótese nula (Princípio 2). A exceção de situações de plausibilidade extrema, onde a terapia deve ser adotada de pronto, antes de qualquer evidência científica (Princípio 3). Por exemplo, uso de corticóide em certas doenças inflamatórias, uso de insulina em diabéticos tipo I, uso de diuréticos em insuficiência cardíaca.Nada disso necessita de ensaios clínicos randomizados para sabermos que a terapia é melhor que placebo. Portanto, devemos distinguir em que situações utilizar o Princípio 2 ou o Princípio 3. Mas percebam que o Princípio 3 são exceções.

Escrevendo assim parece até o mais óbvio dos pensamentos. Porém é impressionante a freqüência com que este óbvio é violado. Até inventaram o termo plausibilidade moderada, o qual serve para que cada um proponha o que quiser, baseado na sua própria lógica (na lógica do desejo). O grande problema de se basear em plausibilidade menor que extrema é a grande incerteza do quanto isto corresponde à realidade. A lógica do benefício pode terminar na adoção de uma conduta deletéria (que pensávamos ser benéfica), ou uma conduta nova que é menos benéfica do que o usual (um anti-hipertensivo novo, mais caro, da moda, mas sem evidência), ou uma conduta sem benefício (porém que gere custos, desconforto ou expectativa falsa).

Em cardiologia, um dos maiores exemplos é a lógica do desentupimento de artérias. Artigo recente no JAMA demonstrou nos Estados Unidos apenas 50% das indicações de angioplastias coronárias eletivas são consideradas apropriadas. Minha observação não científica sugere que o Brasil não é muito diferente disso (talvez até pior). Desentupimos coronárias de pacientes assintomáticos, com boa função ventricular; desentupimos coronárias ocluídas que antes irrigavam músculos hoje totalmente necrosados por um infarto transmural que ocorreu há mais de um dia. Tudo isso se faz a despeito da comprovação científica da ausência de benefício. Estes são exemplos que sofrem da tal plausibilidade moderada. Se formos analisar cuidadosamente, há forte plausibilidade para se rejeitar de pronto o benefício de uma angioplastia em uma artéria que irriga um músculo morto. Mas quando se tolera qualquer nível de plausibilidade, pensamentos mais básicos podem prevalecer sobre pensamentos mais criteriosos. Neste caso, prevalece a plausibilidade do encanador, ou seja, de desentupir o que está entupido (a lógica do desejo, o desejo de fazer a angioplastia). Este é um bom exemplo do que o oba-oba da plausibilidade promove.

Muitas vezes alunos criteriosos me perguntam se não seria antiético deixar de oferecer terapias apenas porque não há comprovação. Seria sim, na situação de plausibilidade extrema. Mas fora disso, mesmo que haja certa possibilidade da conduta ser benéfica, devemos esperar. Já pensou se começássemos a fazer tudo que tem alguma possibilidade de ser benéfico. São inúmeras (talvez infinitas) as idéias que podemos ter baseadas em plausibilidade. Faríamos todas? Seria antiético deixar de fazer alguma? Eu posso gerar a hipótese de que corticóide é benéfico nos pós-operatório de cirurgia cardíaca. Faz sentido? Se tiver uns conflitos de interesse envolvidos ou se eu for um daqueles figurões que praticam medicina baseada em eloquência, a idéia pode pegar. Assim como pegou a idéia de fazer amlodipina no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Cirurgiões me ajudem, existem ensaios clínicos de qualidade dando suporte a esta conduta, a qual pode causar hipotensão e fechamento precoce de enxertos?

Não podemos nos dar o luxo de aceitar um sistema caótico no qual cada uma faz o que faz baseado em sua própria lógica ou na lógica de outrem. Em medicina o sistema é complexo, devemos abandonar nosso Complexo de Deus e aceitar que nossa mente não é capaz de prever o resultado exato das intervenções. Plausibilidade biológica, pensamento fisiopatológico, raciocínio farmacológico servem para se gerar idéias, para inventar novas drogas e devices. Mas estas idéias devem ser testadas cientificamente.

O paradigma cartesiano tem sua utilidade, porém em medicina o pensamento não determinístico representa um estágio evolutivo maior. Qual o estágio evolutivo que você prefere utilizar no seu cotidiano médico?

* Esta é a segunda postagem da série Os Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências.