Após ter discutido na postagem
anterior os três mais básicos princípios da medicina baseada em evidências.
Hoje discutiremos o quarto princípio: plausibilidade
biológica não garante benefício clínico.
É função da mente humana fazer conexões
lógicas de causa-efeito, um dos principais determinantes de nossa evolução
intelectual. René Descartes foi o filósofo que melhor organizou o pensamento lógico
e acreditava ser este suficiente para que o homem dominasse o conhecimento de
todas as leis que regem o universo. Este é o paradigma científico cartesiano. Na
verdade, muito antes de Descartes, desde que o homem é homem, a lógica tem sido
essencial, até mesmo para nossa sobrevivência: como não sou pássaro, não devo
pular do despenhadeiro, pois vou morrer.
Assim, são tão numerosos os exemplos
onde a lógica é extremamente plausível, que a utilização deste tipo de
pensamento se torna de grande utilidade no cotidiano. Estou muito cansado, devo
dormir mais cedo hoje, mesmo que ninguém tenha feito um ensaio clínico
randomizado para avaliar o efeito terapêutico do sono.
É exatamente pela grande
utilidade e freqüente acurácia do pensamento lógico em suas funções mais
básicas, que o homem se condicionou a utilizar tanto a lógica. O problema surge
quando extrapolamos a crença no pensamento lógico das funções mais básicas para
funções mais complexas. Assim como há inúmeras situações (básicas) em que a
plausibilidade prevalecerá, há inúmeras situações (complexas) onde plausibilidade
é diferente da realidade. E isto é muito comum quando estamos lidando com
sistemas complexos, onde um desfecho é decorrência de uma multiplicidade de
causas, que interagem entre si, tornando impossível prever o que acontecerá com
base no pensamento cartesiano. O sistema biológico é dos mais complexos, por isto que em medicina a lógica é apenas o início da história. Pensem, por exemplo, na complexidade do sistema
inflamatório, o número de tipos celulares e citocinas envolvidas do processo.
Em medicina, são inúmeros os
exemplos nos quais a lógica é diferente da realidade. É só revisar um pouco as
postagens deste Blog, todo dia surgem evidências frustrando hipóteses lógicas e
nos lembrando deste Princípio 4.
Existe algo mais lógico do que
inotrópicos positivos serem benéficos para pacientes com insuficiência cardíaca
devido a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo. Apesar da forte lógica,
sabemos que potentes inotrópicos tendem a ser maléficos no longo prazo
(Vernarinone) e digitálicos são apenas medicações sintomáticas, os quais não
reduzem mortalidade. No outro extremo, existe algo mais lógico do que drogas
inotrópicas negativas serem prejudiciais para este tipo de paciente? No
entanto, há uns 15 anos se descobriu que beta-bloqueadores são altamente
benéficos nesta situação, um dos mais eficazes prolongadores da vida destes
pacientes. Este é um exemplo de total inversão da lógica: inotrópicos positivos
maléficos e inotrópicos negativos benéficos. Hoje ninguém duvida disso, pois
temos evidências científicas consistentes.
Desta forma, em medicina a
palavra final não deve ser a lógica ou a plausibilidade. A lógica serve para criar
hipóteses, que devem ser testadas experimentalmente antes de aplicadas na
prática clínica. Até a comprovação científica, tudo fica no terreno da
especulação e deve prevalecer a hipótese nula (Princípio 2). A exceção de
situações de plausibilidade extrema, onde a terapia deve ser adotada de pronto,
antes de qualquer evidência científica (Princípio 3). Por exemplo, uso de
corticóide em certas doenças inflamatórias, uso de insulina em diabéticos tipo I ,
uso de diuréticos em insuficiência cardíaca.Nada disso necessita de ensaios
clínicos randomizados para sabermos que a terapia é melhor que placebo.
Portanto, devemos distinguir em que situações utilizar o Princípio 2 ou o
Princípio 3. Mas percebam que o Princípio 3 são exceções.
Escrevendo assim parece até o
mais óbvio dos pensamentos. Porém é impressionante a freqüência com que este
óbvio é violado. Até inventaram o termo plausibilidade moderada, o qual serve
para que cada um proponha o que quiser, baseado na sua própria lógica (na
lógica do desejo). O grande problema de se basear em plausibilidade menor que
extrema é a grande incerteza do quanto isto corresponde à realidade. A lógica
do benefício pode terminar na adoção de uma conduta deletéria (que pensávamos
ser benéfica), ou uma conduta nova que é menos benéfica do que o usual (um
anti-hipertensivo novo, mais caro, da moda, mas sem evidência), ou uma conduta
sem benefício (porém que gere custos, desconforto ou expectativa falsa).
Em cardiologia, um dos maiores
exemplos é a lógica do desentupimento de artérias. Artigo recente no JAMA demonstrou
nos Estados Unidos apenas 50% das indicações de angioplastias coronárias eletivas
são consideradas apropriadas. Minha observação não científica sugere que o
Brasil não é muito diferente disso (talvez até pior). Desentupimos coronárias
de pacientes assintomáticos, com boa função ventricular; desentupimos
coronárias ocluídas que antes irrigavam músculos hoje totalmente necrosados por
um infarto transmural que ocorreu há mais de um dia. Tudo isso se faz a
despeito da comprovação científica da ausência de benefício. Estes são exemplos
que sofrem da tal plausibilidade moderada. Se formos analisar cuidadosamente, há
forte plausibilidade para se rejeitar de pronto o benefício de uma angioplastia
em uma artéria que irriga um músculo morto. Mas quando se tolera qualquer nível
de plausibilidade, pensamentos mais básicos podem prevalecer sobre pensamentos
mais criteriosos. Neste caso, prevalece a plausibilidade do encanador, ou seja,
de desentupir o que está entupido (a lógica do desejo, o desejo de fazer a angioplastia). Este é um bom exemplo
do que o oba-oba da plausibilidade promove.
Muitas vezes alunos criteriosos
me perguntam se não seria antiético deixar de oferecer terapias apenas porque
não há comprovação. Seria sim, na situação de plausibilidade extrema. Mas fora
disso, mesmo que haja certa possibilidade da conduta ser benéfica, devemos
esperar. Já pensou se começássemos a fazer tudo que tem alguma possibilidade de
ser benéfico. São inúmeras (talvez infinitas) as idéias que podemos ter
baseadas em plausibilidade. Faríamos todas? Seria antiético deixar de fazer
alguma? Eu posso gerar a hipótese de que corticóide é benéfico nos
pós-operatório de cirurgia cardíaca. Faz sentido? Se tiver uns conflitos de
interesse envolvidos ou se eu for um daqueles figurões que praticam medicina
baseada em eloquência, a idéia pode pegar. Assim como pegou a idéia de fazer
amlodipina no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Cirurgiões me ajudem,
existem ensaios clínicos de qualidade dando suporte a esta conduta, a qual pode
causar hipotensão e fechamento precoce de enxertos?
Não podemos nos dar o luxo de
aceitar um sistema caótico no qual cada uma faz o que faz baseado em sua
própria lógica ou na lógica de outrem. Em medicina o sistema é complexo,
devemos abandonar nosso Complexo de Deus e aceitar que nossa mente não é capaz
de prever o resultado exato das intervenções. Plausibilidade
biológica, pensamento fisiopatológico, raciocínio farmacológico servem para se
gerar idéias, para inventar novas drogas e devices.
Mas estas idéias devem ser testadas cientificamente.
O paradigma cartesiano tem sua
utilidade, porém em medicina o pensamento não determinístico representa um
estágio evolutivo maior. Qual o estágio evolutivo que você prefere utilizar no
seu cotidiano médico?
* Esta é a segunda postagem da
série Os Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências.
Acho que a plausibilidade pode ser comparada a maxima do futebol que todo comentarista gosta de dizer. '' A Plausibilidade biológica é uma caixinha de surpresas'', pois aquilo que parece obvio de acontecer, simplesmente é o oposto (como já citado o caso dos beta-bloqueadores)
ResponderExcluirGabriel Bastos
Esta postagem me lembra aquela máxima de que "Common sense is not so common".
ResponderExcluirOutro fenômeno que julgo interessante no que se refere a plausibilidade biológica é o inverso do que foi o tema desta postagem: após a evidência científica, surgem propostas de explicações biológicas simplórias, como se aquilo fosse óbvio de ser percebido antes da evidência, pelo "senso comum".
Obs: a propósito, acho que preferia o outro layout do Blog... rs
Muito bom poder contar com esplanações claras sobre os princípios da MBEvidencias.
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