Recentemente postamos uma série de
artigos entitulada Análise Crítica de
Métodos Diagnósticos.
Naquelas postagem discutimos
detalhadamente como analisar a veracidade da informação sobre acurácia (1),
magnitude da acurácia (2) e utilidade de métodos dignósticos (3,4). A intenção daquela
série foi servir de guia para futuras análises da literatura, onde revisamos
este conhecimento. Foi o que fizemos na análise do artigo sobre troponina de
alta sensibilidade (5) e faremos agora com um artigo publicado ahead of print no Journal of the American College of
Cardiology por Villines et al (Estudo CONFIRM).
O trabalho intitulado Prevalence and Severity of Coronary Artery Disease and Adverse Events Among Symptomatic Patients With Coronary Artery Calcification Scores of Zero Undergoing Coronary Computed Tomography Angiography avalia
a acurácia diagnóstica do escore de cálcio coronário na detecção de doença
coronária obstrutiva em 10.000 pacientes com sintomas possivelmente anginosos, tendo angiotomografia de coronária como
padrão de referência. Nesta postagem, discutiremos o significado diagnóstico destes achados.
Na
discussão do trabalho, o autor afirma:
In
this large, multicenter, international cohort without known CAD, clinically
referred for noninvasive coronary angiography, the absence of measurable CAC
significantly reduced, but did not fully exclude, the presence of obstructive
CAD on current generation CCTA.
Observem que esta sentença tem uma
afirmação positiva (the absence of
measurable CAC significantly reduced, the presence of obstructive CAD) e
outra negativa (but did not fully exclude)
– ambas corretas. Mas o que deve prevalecer como mensagem
final? As frases de conclusão do autor sugerem que a mensagem negativa deve
prevalecer:
Conclusão do
Resumo: In symptomatic patients with a
CAC score of 0, obstructive CAD is possible.
Conclusão do Artigo: In symptomatic patients referred for CCTA, the absence of
CAC reduces but does not fully eliminate the occurrence of obstructive CAD.
É neste ponto que discordamos.
Primeiro devemos reconhecer que a especificidade do escore de cálcio é insatisfatória, apenas 59%. Mas nossa discussão aqui será mais focada na sensibilidade, pois esta é a propriedade que interfere nas conclusões acima citadas.
Em sentido estrito, a conclusão é
correta, ou seja, o escore de cálcio zero não afasta a possibilidade da
presença de estenose coronária. Isto porquê a sensibilidade relatada foi 89%
para estenose > 50%. Significa que 11% dos pacientes com estenose coronária
não teriam este problema detectado pelo escore de cálcio.
Depois de reconhecer que o método não
afasta a doença, devemos partir para uma análise mais aprofundada da
acurácia. Primeiro, precisamos ter a perspectiva de que nenhum método não invasivo é capaz de afastar totalmente a presença de
doença coronária. Mesmo métodos consagrados, tais como cintilografia
miocárdica (sensibilidade de 87%), eco-estresse (80%) e até mesmo a angiotomografia de coronária
(83%) não têm sensibilidade melhor do que a relatada aqui. Ou seja, nenhuma pesquisa não invasiva de doença coronária é determinística. Isto faz com que precisemos aplicar nesta discussão o raciocínio
probabilístico, ou seja, o quanto um resultado negativo do escore de cálcio
reduz a probabilidade do indivíduo ter doença obstrutiva. Este é o
raciocínio que vai definir o valor da informação escore de cálcio zero.
Para saber o quanto um resultado negativo
(escore zero) é capaz de reduzir a probabilidade da doença, precisamos avaliar
a razão de probabilidade (RP) negativa (1-sensibilidade/especificidade).
O autor fez este cálculo (1 – sensibilidade 0.89 / especificidade 0.59): RP negativa = 0.19. Este é um valor bem razoável, pois entre 0.10 e 0.20 o resultado negativo promove uma mudança moderada na probabilidade pré-teste de doença (RP negativa menor que 0.10 seria uma grande mudança).
Testes com RP negativa moderada são utéis
para afastar doença em pacientes com probabilidade pré-teste até intermediária.
E foi exatamente isto que aconteceu neste trabalho. A probabilidade pré-teste
de doença, estimada pelos critérios de Diamond-Forrester, foi de 32% no grupo
com escore negativo e 54% no grupo com escore positivo (probabilidades
intermediárias). Desta forma, se o teste for negativo, vamos aplicar uma RP
negativa de 0.19 a uma probabilidade pré-teste moderada. Isto é suficiente para
reduzir a probabilidade de doença para valores bem baixos. É suficiente para
nos deixar em uma zona de conforto. Na mesma zona de conforto que qualquer
outro método não invasivo nos deixaria.
Probabilidade pós-teste é o mesmo que valor
preditivo. Neste caso, os autores relatam que o valor preditivo negativo do
escore de cálcio foi de 96% para afastar estenose > 50% (ou seja, sobra
apenas 4% de probabilidade de doença).
Na verdade, o escore de cálcio é um bom
teste para reduzir a probabilidade de doença. Se quisermos tanta certeza para
afastar a doença, apenas o cateterismo (que é definido como padrão-ouro) faria
melhor. Nenhum outro método não invasivo faria melhor.
Vamos imaginar um homem de 50 anos, que
dá entrada no setor de emergência com dor torácica de características intermediária.
Digamos uma dor atípica, porém não atípica o suficiente para termos segurança
de liberar este paciente. Eletrocardiograma normal, troponina negativa. De
acordo com critérios de Diamond-Forrester, este paciente tem 22% de probabilidade
pré-teste de doença obstrutiva. Se fizer um escore de cálcio zero, aplicando a
RP negativa de 0.19, este indivíduo passa a ter apenas 5% de probabilidade de
doença obstrutiva (como calculei? acabo de usar o Medcalc do meu Iphone – categoria
evidence-based medicine – post-test probability). Assim, ele pode ser liberado.
A coisa ainda fica melhor se
considerarmos os resultados do trabalho relativos a estenose > 70% como
definição de doença obstrutiva. Neste caso, a sensibilidade do escore de cálcio
sobe para 92%, a razão de probabilidade negativa passa para 0.15 e o valor
preditivo negativo (nessa amostra de probabilidade intermediária) para
99%.
Metade dos pacientes deste estudo tiveram
escore de cálcio zero. E neste caso, a probabilidade de estenose > 50% cai
para 4% e > 70% cai para 1%. Então
como rejeitar o valor deste método em pacientes de probabilidade baixa ou
intermediária?
Um possível argumento contra a minha
idéia é o de que não queremos perder a detecção destes 4% dos pacientes (ou 1%
dos pacientes com placa > 70%), pois doença coronária é um problema grave.
Mas então, como fazer para melhorar ainda mais a sensibilidade, o que levaria a
uma melhora na RP negativa e finalmente a um valor preditivo negativo ainda
melhor? Faríamos um angiotomografia de coronária?
Qual a acurácia da angiotomografia de
coronária mesmo? Vamos utilizar o CORE-64, principal estudo desta área,
publicado no NEJM: a sensibilidade é 83%, especificidade 91%, razão de
probabilidade negativa de 0.19. Isto mesmo, 0.19, exatemente a mesma RP negativa do escore de
cálcio igual a zero. Por isso, o valor
preditivo negativo da angiotomografia de coronária no CORE-64 foi 81%, também
não afasta a doença. Ou seja, uma vez que o resultado seja negativo,
angiotomografia de coronária não é melhor que escore de cálcio coronário para
afastar a doença. Se quisermos certeza mesmo da ausência de doença, deveríamos solicitar cateterismo cardíaco para todo mundo. Porém isso não faz sentido, usar o raciocínio diagnóstico probabilístico faz mais sentido, claro.
Devemos
reconhecer que o resultado da angiotomografia identifica um maior número de
pacientes sem a doença (especificidade). Este
pode ser um argumento válido a favor da angiotomografia. Mas o argumento de que o
escore de cálcio zero não afasta doença é errado, pois ele não afasta
exatamente da mesma forma que a angiotomografia não afasta.
Aí surge um novo problema do
estudo em questão. Diferente dos estudos
prévios (por exemplo, Gotllieb et al, JACC 2010), o estudo que discutimos hoje não utilizou o
cateterismo como padrão de referência para avaliar a acurácia do escore de
cálcio. Utilizou a angiotomografia de coronária, a qual não tem melhor
sensibilidade do que o escore de cálcio (apesar de ter melhor especificidade).
É como uma aluno mediano corrigir a prova de outro aluno mediano (no que diz
respeito à sensibilidade). Desta forma, há um problema de veracidade,
relacionado à escolha do padrão de referência. Como já comentamos, este é um
dos principais ítens da análise de veracidade: qualidade do padrão de
referência.
Em resumo, o que precisamos entender é
que nenhum método não invasivo afasta a doença coronária obstrutiva. Neste caso,
o que temos que procurar é o raciocínio probabilístico e não o pensamento determinístico.
O raciocínio probabilístico promove a interação do quadro clínico com o
resultado de um exame, nos oferecendo uma probabilidade de doença final que nos
deixa confortáveis para tomar uma decisão.
Na verdade, o artigo em questão vai ao encontro das evidências que mostram ser o escore de cálcio um método aceitável para afastar doença coronária em pacientes com probabilidade pré-teste baixa ou intermediária. Não vai de encontro, tal como tentam sugerir os autores.
* Um melhor entendimento desta discussão ocorre após revisão das série de postagens Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.
* Um melhor entendimento desta discussão ocorre após revisão das série de postagens Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.
Caro Prof Luis,
ResponderExcluirse possível haveria como incluir uma análise de custo-efetividade? Lembro da época das UDTs (em extinção?) e do uso do TE e da CMPE em repouso.
Abaixo colei um pequeno parágrafo retirado da diretriz de dor torácica comentando sobre o TE.
A sensibilidade e a especificidade do teste positivo ou inconclusivo para eventos cardíacos está em torno de 75%, sendo que estes resultados identificam um subgrupo de pacientes com maior
risco de IAM, necessidade de revascularização miocárdica e de readmissão hospitalar
5,50,88,89
O valor preditivo negativo do teste para eventos também é elevadíssimo (> 98%) 50,86,88,89
.
Luis Claudinho,,
ResponderExcluirÉ preciso entender as limitações do Core 64 à luz da época e condições em que foi realizado. As you know, cada exame de imagem é dependente da habilidade do intérprete. Eu executo angio TC cardíaca em muitos pacientes, após exames de eco estresse ou nuclear que são realizados com resultados ruins devido a dificuldades técnicas ou resultados inconclusivos.
Nenhuma modalidade é isenta de falhas, incluindo angioTC. Mesmo a cinecoronariografia que é reconhecida por ter uma variabilidade interobservador significativa no relato de estenose percentual e tem dificuldades com lesões intermediárias quando comparada com IVUS, ou pior ainda, contra FFR, não está isenta de limitações.
Estudos iniciais demonstraram que 30% dos exames não-invasivos de coração, significativamente positivos, foram associados com cinecoronariografia normal, portanto, foram considerados falsos positivos. Estudos subseqüentes com IVUS demonstraram que os exames cardíacos foram verdadeiros positivos e os falsos negativos foram angiografias com lúmens patentes, cercados por aterosclerose.
Meu ponto não é se angioTC é perfeita ou se todos os que a executam são capazes, mas que decisões devem ser tomadas 1) à luz da qualidade do exame (FC injetada, obesidade, grau de calcificação, diâmetro dos vasos, etc.) e 2) com base na avaliação correta da probabilidade pré-teste. O valor preditivo negativo da angioTC cai muito se a avaliação da probabilidade pré-teste for equivocada. Se o médico solicitante avalia o paciente como baixa probabilidade (seja por uma interpretação equívoca da característica dos sintomas, ou pela não exploração adequada do risco cardiovascular) e decide que “basta um escore de cálcio” para reduzir o risco naquele seu paciente sintomático, ALGUNS ATÉ COM TESTES FUNCIONAIS DE IMAGEM POSITIVOS, como já tive a oportunidade de receber, então estará incorrendo em erro. Esse fato é confirmado por trabalhos que avaliaram o papel do escore de cálcio na dor torácica da emergência (portanto probabilidade pré-teste mais elevada, em média) e concluíram que o VPN era muito baixo para ser empregado como método de triagem.
Embora o escore de cálcio não preveja a obstrução, também tem sido demonstrado que muitos dos eventos cardíacos ocorrem de ruptura de placa não obstrutiva (50%). O VPN para eventos em 2 anos de um exame de angioTC coronária NORMAL (sem placas de qualquer tipo) é de 100%. É hora então de repensar a doença e identificar aqueles pacientes verdadeiramente de risco, para que através de manejo médico eficaz, a maioria dos ataques cardíacos possam ser prevenidos. Mas não é sobre prevenção de morte prematura que estamos falando?
Abraços,
Fábio Vilas-Boas