sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Queremos realmente transformar troponina em D-dímero?



Há 1 semana foi publicado no Jounal of American College of Cardiology o artigo intitulado Rapid Exclusion of Acute Myocardial Infarction in Patients with Undetectable Troponin using a High-sensitivity Assay. A análise e interpretação dos dados por parte dos autores provoca uma interessante discussão sobre a interpretação dos componentes da acurácia e utilidade de certas propostas diagnósticas.

Nos últimos anos, a indústria tem aprimorado a capacidade dos ensaios de troponina em detectar mínimas concentrações desta proteína plasmática e com maior precisão (reprodutibilidade). Estas são as chamadas troponinas de alta sensibilidade.

Nesta coorte de 703 indivíduos com dor torácica aguda, Body R. et al demonstraram que o uso de um ensaio de troponina alta sensibilidade associado a um ponto de corte mais baixo que o habitual (qualquer nível detectável seria definido como troponina positiva) produz 100% de sensibilidade para o reconhecimento de infarto do miocárdio, levando a um valor preditivo negativo perfeito. Assim, os autores concluíram que "esta estratégia pode ser usada para reduzir as internações desnecessárias".

É exatamente esta frase que pretendo analisar sob a ótica da metodologia de avaliação de métodos diagnósticos.

Em primeiro lugar, a fim de reduzir o número de pacientes desnecessariamente internados no hospital, um teste deve ter uma melhor capacidade de reconhecer indivíduos saudáveis que podem receber alta. A capacidade de reconhecer as pessoas saudáveis é definida como especificidade. Ao reduzir o ponto de corte de qualquer teste diagnóstico, ocorre um aumento de sensibilidade, à custa de redução na especificidade.

E foi exatamente isso que aconteceu quando os autores compararam o desempenho da troponina de alta sensibilidade associada ao mínimo ponto de corte, com a referência da troponina tradicional. Houve um aumento da sensibilidade de 85% para 100%. No entanto, ocorreu também diminuição na especificidade de 82% para 34%. E uma vez que um número menor de pessoas saudáveis serão identificados, é altamente questionável se esta abordagem realmente reduz internações desnecessárias. Mesmo que diferentes pontos de corte sejam adotadas para diagnosticar e afastar infarto, uma zona cinzenta de confusão será criada, levando a uma dúvida considerável se realmente esta abordagem seria útil na prática clínica.

Desta forma, apenas 28% dos pacientes apresentaram troponina negativa. O problema é que o estudo não relatou quantos destes 28% realmente receberem alta hospitalar logo após o resultado da troponina. Destes pacientes, alguns poderiam ter dor no peito muito típica, caracterizando angina instável; alguns poderiam ter alterações isquêmicas do ECG; e outros poderiam ter outra causa grave de dor torácica que impediria a alta. Portanto, uma troponina negativa não significa necessariamente alta hospitalar. E o número real de pacientes em que o resultado ajudou na decisão de alta não está claro no artigo.

Segundo a Definição Universal de Infarto, devemos considerar o percentil 99 da troponina como o ponto de corte para este diagnóstico, o que proporciona boa acurácia diagnóstica (sensibilidade 85% e especificidade 82%, segundo o artigo de Body et al). Antes de trocar esta boa acurácia da definição universal de infarto, por uma maior sensibilidade à custa de bem menor especificidade (semelhante ao D-dímero para embolia pulmonar), evidências científicas convincentes devem ser apresentadas. Por enquanto, não está demonstrado, nem é plausível, que uma significativa redução de especificidade (detecção de saudáveis) proporcione maior liberação precoce de pacientes com dor torácica. Pelo contrário, isso poderá provocar maior número de internamentos desnecessários.

O D-dímero é um teste que  intrinsecamente não tem especificidade. Não há outra alternativa, ele só pode nos oferecer sensibilidade. Mas a troponina é diferente. Este teste tem tanto sensibilidade como especificidade. Não parece fazer tanto sentido transformar a troponina em D-dímero.

Talvez faça sentido para a indústria da troponina de alta sensibilidade. É a briga intensa pelo mercado de dosagens bioquímicas.  

Cuidado com algo muito sensível, pode ser pouco específico. Cuidado com algo muito específico, pode ser pouco sensível. Nem sempre vale a pena trocar o equilíbrio da sensibilidade e especificidade (crossover no gráfico acima), pela priorização de alguma destas propriedades.

* Esta é mais uma postagem da séria Análise Crítica de Evidências Diagnósticas.
* Uma versão modificada destes artigo foi aceita para publicação no Journal of the American  College of Cardiology (in press).

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