A figura acima foi escolhida para ilustrar a discussão que teremos em relação ao estudo PROTECT. Pretendo demonstrar porque em ciência, água mole não deve perfurar a pedra dura. Isto diz respeito à importância de desfechos duros e moles na veracidade e relevância da informação científica.
Embora ensaios clínicos randomizados sejam
mais utilizados para testar eficácia de terapias, este tipo de desenho também tem
sido proposto como melhor nível de evidência na validação de biomarcadores. Ou
seja, biomarcadores (plasmáticos ou métodos de imagem) devem ser também
eficazes, sua utilização deve beneficiar os pacientes.
No último número do Journal of the American College of Cardiology foi publicado o ensaio clínico randomizado PROTECT, que testa a eficácia do NT-pro-BNP na condução
ambulatorial de pacientes com insuficiência cardíaca. Pro-BNP é um peptídeo
sintetizado pelo ventrículo quanto há estresse de
parede, ou seja, descompensação da insuficiência cardíaca. O pro-BNP é quebrado
em BNP (ativo) e NT-pro-BNP. Ambos podem ser medidos como marcadores de
insuficiência cardíaca descompensada. As medidas destas substâncias no plasma podem servir de guia para o ajuste da dose de diuréticos e vasodilatadores, teoricamente aprimorando a qualidade do tratamento. Faz sentido.
Inicialmente me entusiasmei
com a notícia deste trabalho. Primeiro porque gosto de ver ensaios clínicos
randomizados sendo usados para exames diagnósticos ou prognósticos. Isso é uma
evolução científica. Segundo, porque nas notícias se relatava um NNT (número
necessário a tratar ou testar) de apenas 5 pacientes para prevenção de um
evento cardiovascular. Um NNT raramente visto em ensaios clínicos, sugerindo
grande impacto da estratégia de utilização do BNP na prática clínica.
Mas não podemos ficar com
notícias de sites médicos ou de congressos. Precisamos ler os artigos na
íntegra, julgando-os criticamente.
O trabalho em questão
randomizou 150 pacientes para duas estratégias de condução ambulatorial: dosagens de NT-pro-BNP para ajuste da terapia versus terapia usual (sem BNP). Ao cabo de 1 ano, apenas 28% do grupo NT-pro-BNP apresentou um evento cardiovascular,
comparado a 48% do grupo tratamento padrão. NNT = 100 / (redução absoluta do
risco = 48 – 28) = 5. De acordo com este número, uma terapia que traz um grande benefício. Lembrem-se que o NNT < 25 para eventos combinados representa uma terapia de grande impacto.
Mas a primeira lição deste
exemplo é que não devemos apenas analisar o NNT numérico, devemos analisar a
qualidade dos desfechos que são utilizados para computar o NNT. Normalmente os
estudos de insuficiência cardíaca utilizam reinternamento e/ou morte como
desfechos. No estudo PROTECT, foi utilizado um combinado de desfechos: morte,
reinternamento, síndrome coronariana aguda, arritmia, isquemia cerebral e um
sexto desfecho, bastante subjetivo, definido como piora da insuficiência
cardíaca (sem necessitar internamento). Este desfecho subjetivo foi responsável por
metade dos eventos registrados pelo estudo, sendo o mais frequente de todos.
Neste momento, precisamos discutir
a diferença de desfecho duro (hard em inglês) para
desfecho mole (soft em inglês) - estes termos em português me soam estranhos, prefiro as palavras equivalentes em inglês. Um desfecho duro tem duas características: ser clinicamente relevante e ser muito objetivo, ou
seja, pouco sujeito a interpretações. Percebam que morte é o desfecho mais duro que existe: grave e objetivo, não
há controvérsia se houve morte ou não. Fazendo uma escala decrescente de
importância dos desfechos em insuficiência cardíaca, vem em segundo lugar o
reinternamento, menos grave que morte, porém bastante objetivo. Por outro lado,
o desfecho piora da insuficiência cardíaca sem requerer internamento é
altamente subjetivo e pouco grave. É bastante mole. E quase nunca usado em estudos deste tipo.
Esta subjetividade se torna
mais problemática quando combinada com outra característica inerente deste tipo
de estudo: seu caráter aberto, onde o
paciente e o médico estão cientes da estratégia utilizada. Desta forma, o
paciente pode se sentir mais seguro com a estratégia do NT-pro-BNP e relatar menos
piora da insuficiência cardíaca, assim como o médico pode ser induzido a
registrar menos este desfecho no grupo NT-pro-BNP, pela simples percepção de um
paciente melhor tratado.
Ou seja, neste caso temos um
viés de mensuração do desfecho, que pode promover um resultado falso. É
uma combinação perigosa: um estudo aberto associado a um desfecho muito mole.
Além disso, este é um estudo
truncado. Foi planejado para randomizar 300 pacientes, mas quando alcançou
significância estatística, foi interrompido, com apenas 150 pacientes - aquele vício de interromper o estudo assim que a coisa fica boa. Como já
comentamos neste Blog, estudos truncados são menos precisos.
Só para comprovar que
provavelmente a informação do estudo PROTECT é falsa, há um ano foi publicado
na mesma revista o ensaio clínico
PRIMA, que randomizou mais que o dobro de pacientes do PROTECT, considerando apenas reinternamento como desfecho. Este estudo não demonstrou benefício da estratégia do uso de NT-pro-BNP.
Desta forma, após uma análise
criteriosa, podemos afirmar que a hipótese nula (princípio 2) do NT-pro-BNP não foi rejeitada. Este
estudo tem uma boa possibilidade de estar nos mostrando um resultado incorreto. E na vigência de estudos de
melhor qualidade sendo negativos, o uso rotineiro do NT-pro-BNP na condução de
pacientes ambulatoriais com insuficiência cardíaca não deve ser implementado.
Um detalhe. A Roche é a fabricant deste NT-pro-BNP. Veja a
declaração de conflitos de interesse do PROTECT: This study was supported in part by Roche Diagnostics, Inc. Dr. Januzzi
has received research grants and consultancy fees from Roche Diagnostics, Inc.,
Siemens Diagnostics, and Critical Diagnostics; and has received speakers fees
from Roche Diagnostics, Inc. and Siemens Diagnostics.
Por
outro lado, o estudo PRIMA é financiado prioritariamente por um orgão
governamental e apenas segundariamente pela indústria: Main funding (€200,000) for this study was
provided by the Netherlands Heart Foundation, Netherlands Organisation for
Scientific Research (NWO), and the Royal Nether- lands Academy of Arts and
Sciences (KNAW)–Interuniversity Cardiology Institute of the Netherlands. Minor
funding of an unrestricted research grant (€70,000 per sponsor) was
provided by Pfizer, AstraZeneca, Medtronic, and Roche Diagnostics.
Não sejamos ingênuos. Argumentos moles não devem ser
suficientes. Em ciência, água mole não
deve furar a pedra dura.
Fica o exemplo de uma perigosa
combinação: um estudo aberto avaliando um desfecho mole. Pior ainda quando
tudo isso é aliado a conflitos de interesse.
Luís,
ResponderExcluirParabéns por mais um texto brilhante.
Sds
Francisco Sampaio
Uma aula de como analisar um artigo criticamente, de como fazer um Clube de Revista. Obrigado.
ResponderExcluirLuis, acredito que a melhor maneira de traduzir hard e soft seja rígido e flexível.
ResponderExcluirAbraço
Luis,
ResponderExcluirQueria deixar uma mensagem para você e não achei onde colocar a não ser no comentário.
Recentemente algumas pessoas tem me relatado experiências com uma erva medicinal, Sucupira. Juca de Oliveira (ator) inclusive foi no Jô Soares falar sobre o tratamento que fez no cachorro ETC. Eu, nunca fui fã das terapias ''naturebas'' e sempre pesquiso pra saber aquelas que são plausíveis de serem eficientes.
Contudo se o senhor se interessar proucure informações sobre ela.
Ps: Alguns ortopedistas estão indicando o uso dessa erva
Gabriel Bastos
Mesmo a incidência de reinternações sendo, por si, estatisticamente significativa neste estudo você acha que o resultado não é válido?
ResponderExcluirBoa pergunta. Neste caso, reinternações isoladamente representa um desfecho secundário. Achados em desfechos secundários geram hipóteses, mas não devem ser considerados definitivos.
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