quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Estudo PROTECT: Medida de BNP protege indivíduos com insuficiência cardíaca?




A figura acima foi escolhida para ilustrar a discussão que teremos em relação ao estudo PROTECT. Pretendo demonstrar porque em ciência, água mole não deve perfurar a pedra dura. Isto diz respeito à importância de desfechos duros e moles na veracidade e relevância da informação científica.

Embora ensaios clínicos randomizados sejam mais utilizados para testar eficácia de terapias, este tipo de desenho também tem sido proposto como melhor nível de evidência na validação de biomarcadores. Ou seja, biomarcadores (plasmáticos ou métodos de imagem) devem ser também eficazes, sua utilização deve beneficiar os pacientes.

No último número do Journal of the American College of Cardiology foi publicado o ensaio clínico  randomizado PROTECT, que testa a eficácia do NT-pro-BNP na condução ambulatorial de pacientes com insuficiência cardíaca. Pro-BNP é um peptídeo sintetizado pelo ventrículo quanto há estresse de parede, ou seja, descompensação da insuficiência cardíaca. O pro-BNP é quebrado em BNP (ativo) e NT-pro-BNP. Ambos podem ser medidos como marcadores de insuficiência cardíaca descompensada. As medidas destas substâncias no plasma podem servir de guia para o ajuste da dose de diuréticos e vasodilatadores, teoricamente aprimorando a qualidade do tratamento. Faz sentido.

Inicialmente me entusiasmei com a notícia deste trabalho. Primeiro porque gosto de ver ensaios clínicos randomizados sendo usados para exames diagnósticos ou prognósticos. Isso é uma evolução científica. Segundo, porque nas notícias se relatava um NNT (número necessário a tratar ou testar) de apenas 5 pacientes para prevenção de um evento cardiovascular. Um NNT raramente visto em ensaios clínicos, sugerindo grande impacto da estratégia de utilização do BNP na prática clínica.

Mas não podemos ficar com notícias de sites médicos ou de congressos. Precisamos ler os artigos na íntegra, julgando-os criticamente.

O trabalho em questão randomizou 150 pacientes para duas estratégias de condução ambulatorial: dosagens de NT-pro-BNP para ajuste da terapia versus terapia usual (sem BNP). Ao cabo de 1 ano, apenas 28% do grupo NT-pro-BNP apresentou um evento cardiovascular, comparado a 48% do grupo tratamento padrão. NNT = 100 / (redução absoluta do risco = 48 – 28) = 5. De acordo com este número, uma terapia que traz um grande benefício. Lembrem-se que o NNT < 25 para eventos combinados representa uma terapia de grande impacto.

Mas a primeira lição deste exemplo é que não devemos apenas analisar o NNT numérico, devemos analisar a qualidade dos desfechos que são utilizados para computar o NNT. Normalmente os estudos de insuficiência cardíaca utilizam reinternamento e/ou morte como desfechos. No estudo PROTECT, foi utilizado um combinado de desfechos: morte, reinternamento, síndrome coronariana aguda, arritmia, isquemia cerebral e um sexto desfecho, bastante subjetivo, definido como piora da insuficiência cardíaca (sem necessitar internamento). Este desfecho subjetivo foi responsável por metade dos eventos registrados pelo estudo, sendo o mais frequente de todos.

Neste momento, precisamos discutir a diferença de desfecho duro (hard em inglês) para desfecho mole (soft em inglês) - estes termos em português me soam estranhos, prefiro as palavras equivalentes em inglês. Um desfecho duro tem duas características: ser clinicamente relevante e ser muito objetivo, ou seja, pouco sujeito a interpretações. Percebam que morte é o desfecho mais duro que existe: grave e objetivo, não há controvérsia se houve morte ou não. Fazendo uma escala decrescente de importância dos desfechos em insuficiência cardíaca, vem em segundo lugar o reinternamento, menos grave que morte, porém bastante objetivo. Por outro lado, o desfecho piora da insuficiência cardíaca sem requerer internamento é altamente subjetivo e pouco grave. É bastante mole. E quase nunca usado em estudos deste tipo.

Esta subjetividade se torna mais problemática quando combinada com outra característica inerente deste tipo de estudo: seu caráter aberto, onde o paciente e o médico estão cientes da estratégia utilizada. Desta forma, o paciente pode se sentir mais seguro com a estratégia do NT-pro-BNP e relatar menos piora da insuficiência cardíaca, assim como o médico pode ser induzido a registrar menos este desfecho no grupo NT-pro-BNP, pela simples percepção de um paciente melhor tratado.

Ou seja, neste caso temos um viés de mensuração do desfecho, que pode promover um resultado falso. É uma combinação perigosa: um estudo aberto associado a um desfecho muito mole.

Além disso, este é um estudo truncado. Foi planejado para randomizar 300 pacientes, mas quando alcançou significância estatística, foi interrompido, com apenas 150 pacientes - aquele vício de interromper o estudo assim que a coisa fica  boa. Como já comentamos neste Blog, estudos truncados são menos precisos.

Só para comprovar que provavelmente a informação do estudo PROTECT é falsa, há um ano foi publicado na mesma revista o  ensaio clínico PRIMA, que randomizou mais que o dobro de pacientes do PROTECT, considerando apenas reinternamento como desfecho. Este estudo não demonstrou benefício da estratégia do uso de NT-pro-BNP.

Desta forma, após uma análise criteriosa, podemos afirmar que a hipótese nula (princípio 2) do NT-pro-BNP não foi rejeitada. Este estudo tem uma boa possibilidade de estar nos mostrando um resultado incorreto. E na vigência de estudos de melhor qualidade sendo negativos, o uso rotineiro do NT-pro-BNP na condução de pacientes ambulatoriais com insuficiência cardíaca não deve ser implementado.

Um detalhe. A Roche é a fabricant deste NT-pro-BNP. Veja a declaração de conflitos de interesse do PROTECT: This study was supported in part by Roche Diagnostics, Inc. Dr. Januzzi has received research grants and consultancy fees from Roche Diagnostics, Inc., Siemens Diagnostics, and Critical Diagnostics; and has received speakers fees from Roche Diagnostics, Inc. and Siemens Diagnostics.

Por outro lado, o estudo PRIMA é financiado prioritariamente por um orgão governamental e apenas segundariamente pela indústria: Main funding (€200,000) for this study was provided by the Netherlands Heart Foundation, Netherlands Organisation for Scientific Research (NWO), and the Royal Nether- lands Academy of Arts and Sciences (KNAW)–Interuniversity Cardiology Institute of the Netherlands. Minor funding of an unrestricted research grant (€70,000 per sponsor) was provided by Pfizer, AstraZeneca, Medtronic, and Roche Diagnostics.

Não sejamos ingênuos. Argumentos moles não devem ser suficientes. Em ciência, água mole não deve furar a pedra dura.

Fica o exemplo de uma perigosa combinação: um estudo aberto avaliando um desfecho mole. Pior ainda quando tudo isso é aliado a conflitos de interesse.

6 comentários:

  1. Luís,
    Parabéns por mais um texto brilhante.
    Sds
    Francisco Sampaio

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  2. Uma aula de como analisar um artigo criticamente, de como fazer um Clube de Revista. Obrigado.

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  3. Luis, acredito que a melhor maneira de traduzir hard e soft seja rígido e flexível.
    Abraço

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  4. Luis,

    Queria deixar uma mensagem para você e não achei onde colocar a não ser no comentário.

    Recentemente algumas pessoas tem me relatado experiências com uma erva medicinal, Sucupira. Juca de Oliveira (ator) inclusive foi no Jô Soares falar sobre o tratamento que fez no cachorro ETC. Eu, nunca fui fã das terapias ''naturebas'' e sempre pesquiso pra saber aquelas que são plausíveis de serem eficientes.
    Contudo se o senhor se interessar proucure informações sobre ela.
    Ps: Alguns ortopedistas estão indicando o uso dessa erva

    Gabriel Bastos

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  5. Mesmo a incidência de reinternações sendo, por si, estatisticamente significativa neste estudo você acha que o resultado não é válido?

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  6. Boa pergunta. Neste caso, reinternações isoladamente representa um desfecho secundário. Achados em desfechos secundários geram hipóteses, mas não devem ser considerados definitivos.

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