domingo, 15 de julho de 2012

O Pensamento Univariado e o Uso Indiscriminado de Stents Farmacológicos



Dando sequência à reflexão do multivariado versus univariado, um dos maiores exemplos clínicos da inadequada predominância do pensamento univariado é a escolha pelo tipo de stent (convencional ou farmacológico) a ser usado no tratamento de obstruções coronárias.

Esta questão foi muito bem retratada em um importante artigo publicado (online first) esta semana nos Archives of Internal Medicine, intitulado Use of Drug-Eluting Stents as a Function of Predicted Benefit, o qual demonstrou como os stents farmacológicos são usados de forma indiscriminada nos Estados Unidos. Neste trabalho, foram analisados 1.5 milhão de procedimentos realizados entre 2004 e 2010, dados provenientes de um registro nacional de intervenção coronária.

Para contextualizar esta questão, os stents farmacológicos são próteses que apresentam um risco de reestenose coronária menor do que os stents convencionais. No entanto, seu custo é maior, tanto o custo financeiro como o custo da necessidade de terapia anti-agregante plaquetária agressiva por mais tempo. Não há vantagem do stent farmacológico em relação ao risco de infarto ou morte. Portanto, a escolha de stents farmacológicos deve ser criteriosa, para valer a pena o custo de sua utilização.

Para sabermos se vale a pena, temos que pensar na magnitude de seu benefício, ou seja, no NNT do stent farmacológico (no lugar do convencional) para se prevenir uma reestenose. Reestenose é um inconveniente, mas não é exatamente um desfecho na mesma importância de morte, infarto ou AVC. Portanto, somos mais exigentes com o NNT e considera-se que um NNT de 25 é razoável para justificar o uso de stent farmacológico. Significa implantar stents farmacológicos em 25 pacientes para que apenas um paciente se beneficie da prevenção de reestenose. Vejam que estamos sendo bondosos.

Para uma mesma redução relativa do risco (em torno de 40% de acordo com trabalhos prévios), quanto maior o risco absoluto de reestenose, maior a redução absoluta do risco e consequentemente menor (melhor) será o NNT. Sendo assim, é necessário que o risco absoluto de reestenose com o stent convencional seja de pelo menos 10%, para que a redução absoluta do risco seja de 4%, o que dará o NNT de 25.

Mas como saber o risco absoluto de reestenose? No ano passado foi publicado importante trabalho no Circulation (Predicting the Restenosis Benefit of Drug-Eluting Versus Bare Metal Stents in Percutaneous Coronary Intervention), o qual validou um modelo multivariado que calcula a probabilidade de reestenose com base em muitas variáveis clínicas e angiográficas, denominado MassDAC model. Este modelo é disponível na internet para que calculemos o risco de reestenose se o paciente utilizar stent convencional, podendo assim selecionar os de maior risco para o stent farmacológico. 

No trabalho publicado nesta semana, os autores utilizaram o MassDAC e calcularam o risco de reestenose dos 1.5 milhão de pacientes, dividindo-os em baixo risco (< 10%), moderado risco (10 – 20%) e alto risco (> 20%). Na amostra, 43% dos pacientes eram de baixo risco, 44% eram de moderado risco e apenas 13% de alto risco. Em seguida foi descrita a proporção dos pacientes em cada grupo que tiveram a escolha por stent farmacológico.

Seria de esperar que quanto maior o risco basal de reestenose, maior o uso do stent farmacológico. Porém, impressionou o quanto semelhante foi a frequência de stent farmacológico nos grupos de baixo, moderado e alto risco. Respectivamente, 74%, 78% e 83%. Ou seja, o stent farmacológico é muito usado em pacientes de baixo risco, quase na mesma proporção dos pacientes de alto risco. E estas proporções são bastante altas.

É neste momento que entra a discussão do pensamento univariado versus multivariado. O modelo utilizado pelo trabalho para predizer reestenose foi multivariado, ou seja, considerou todas as variáveis que se associam de forma independente com o risco, dando o peso que cada uma merece de acordo com sua força de associação.  Diferentemente, o que os médicos têm feito na decisão do stent é um pensar de forma univariada:

Se o paciente for diabético, escolherei stent farmacológico, não importa as demais variáveis.
Se o diâmetro da lesão for < 3 mm, escolherei stent farmacológico, não importa as demais variáveis.
Se a lesão for longa, escolherei stent farmacológico, não importa as demais variáveis.
E outros critérios, que somados não dão chance a quase ninguém de receber um stent convencional. Por isso que só sobra 20% utilizando o stent convencional.

Os autores estimaram que uma redução de 78% para 50% de uso de stent farmacológicos nestes pacientes de baixo risco, geraria uma economia de 205 milhões de dólares. 

Sabemos que as instituições ganham com o uso de materiais de alto custo. E aí está uma simbiose do pensamento univariado com o conflito de interesse a favor dos stents farmacológicos. É muito mais fácil justificar a escolha com um único e simples argumento univariado, do que ficar a mercê da real probabilidade de reestenose, calculada a partir do conjunto das variáveis relevantes.

Corroborando com estes achados, em trabalho realizado por nosso grupo, demonstramos que o julgamento de um intervencionista treinado no pensamento univariado indica muito mais stent farmacológico do que o modelo multivariado (dados ainda não publicados).

Este é um dos grandes exemplos de um pensamento univariado prejudicando o sistema de saúde. Ao contrário da realidade americana, no Reino Unido o uso do stent farmacológico é muito mais restrito. E o desfecho dos pacientes ingleses não é em nada pior do que os americanos. O modelo de gasto americano deve servir de exemplo do que não fazer.

No entanto, nós imitamos os americanos direitinho e ainda ficamos a reclamar quando nossa remuneração não é boa. Claro, essa não é a única causa da baixa remuneração médica, porém precisamos perceber que nessa discussão deve entrar nossa parte de responsabilidade na equação. Se estamos queimando os recursos com utilização indiscriminada, vai sobrar menos para nosso salário. Desta forma, acredito que uma discussão madura deva contemplar propostas médicas de uso racional dos recursos. Principalmente para o serviço público, mas também para o privado. Esse é o racional da proposta de Obama para universalizar o sistema de saúde americano, sem necessariamente aumentar impostos. Seria saúde para todos, oferecida de forma mais racional, sob um custo menor.

Outra exemplo comum: como podemos reclamar do valor que nos pagam pelo teste ergométrico, se a grande maioria das indicações são inapropriadas? Pacientes assintomáticos ou de baixa probabilidade pré-teste representam a maior parte da população submetida a este exame. Modelos multivariados devem primeiro estimar a probabilidade pré-teste e indicar o teste naqueles de probabilidade intermediária.

Em conclusão, o cerne da questão está nossa tendência (natural) de pensar de forma univariada. Esse tipo de pensamento é principal responsável pelo uso indiscriminado de stents farmacológicos, descrito no artigo recém publicado. É mais um exemplo da importância do pensamento multivariado. O modelo probabilístico multivariado está disponível, é só utilizar.

8 comentários:

  1. Muito boa colocação e questionamento, Luis.
    Abs

    R.Dultra

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  2. Caro Luis , desta vez não vou parabenizar e sim agradecer pelos importantes ensinamentos. Muito obrigado.

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  3. Clarice Alegre Petramale20 de julho de 2012 às 09:51

    Luis Claudio,
    Coincidentemente estamos avaliando na CONITEC a incorporaçao de stents farmacologicos no SUS para pacientes com alto risco de reestenose de lesão alvo e chegamos a uma conclusão preliminar que o grupo que se beneficiaria de um stent farmacologico estaria por volta de 9% dos candidatos a stent. Consideramos apenas tres fatores na analise: diabetes e vasos de calibre reduzido e lesoes longas
    O assunto deve entrar em consulta publica em breve no portal da saude/sctie
    O calculo de risco pelo DAC é bem interessante. Vou divulgá-lo aos nossos consultores
    Obrigada pelo excelente trabalho!

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  4. José Augusto Ribas Fortes25 de julho de 2012 às 18:43

    Caro Luís Cláudio.
    Sou cardiologista e preceptor de um serviço de residência médica em Curitiba.
    Sou também um entusiasta do seu blog desde maio de 2011.
    A bioestatística é uma ciência deficiente na formação médica e acabei usando seu blog (desculpe pela honestidade e cinismo)como uma ferramenta para ajudar na formação de médicos residentes de nossa instituição.
    Gostaria de pedir sua autorização para utilizar algumas de suas opiniões (na minha opinião perfeitas, tanto na conclusão, quanto na redação) nos ensinamentos de novos especialistas.
    De qualquer forma, parabéns pela iniciativa e clareza ao compartilhar conhecimento.
    Atenciosamente.
    José Fortes CRM 19867-PR

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  5. Prezado José Augusto,

    é um prazer saber que o Blog está lhe servindo de material didático. Fique a vontade.
    Caso deseje, pode ser comunicar diretamente comigo pelo email que exposto no Blog.

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  6. Na minha mãe prefiro farmacológico

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  7. Luis Cláudio, simplesmente fantástico suas observações. Parabéns.

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