sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O Apelo Natureba


Artigo publicado no Jornal A Tarde de hoje, por Luis Correia.

Com frequência me pego questionando porque é tão comum a frase não gosto de tomar remédio, prefiro coisas naturais a artificiais. Fico pensando se existe a mesma relutância em aceitar o artificialismo tecnológico quando precisamos de um avião para viagens longas, ou de um celular para manter contato constante com  nossos filhos, ou do Google para obter qualquer informação.

Em parte, consigo entender o preconceito de alguns em usar as tais medicações alopáticas, pois muitas destas têm sido indicadas de forma inadequada, o que já chamamos neste espaço de overtreatment. E isso muitas vezes decorre de erros cognitivos do pensamento médico, ou pior, de conflito de interesses.

Por outro lado, percebo que o apelo natureba vai além dessa percepção. Talvez seja uma espécie de instinto de sobrevivência que nos faz evitar o artificial. Porém este instinto é incoerente, pois nossa própria duração já deixou de ser natural. Natural mesmo seria viver em torno de 30 anos, como era no passado. No início do século 20, apenas 10% das pessoas do mundo chegavam à minha idade, 45 anos. Viver até 80 anos não é natural, é artificial. Por isso é incoerência querer viver tanto assim e evitar tecnologias que trarão qualidade a essa vida tão prolongada.

Antigamente não precisávamos nos preocupar com infarto do miocárdio ou derrame. Não dava tempo da gordura se acumular nas artérias, pois antes disso éramos comidos por um leão ou interrompidos por uma pneumonia. Surgiram proteções contra animais maiores, saneamento básico, passamos a lavar mais as mãos, surgiram os antibióticos, e assim fomos nos tornando mais prolongados artificialmente. Agora que alcançamos isso temos duas opções: (1) utilizar tecnologias testadas em ensaios clínicos randomizados, de eficácia comprovada, segurança e tolerabilidade conhecidas; (2) ou preferir um chá de qualquer coisa, sem comprovação cientifica, apenas por ser mais natural. Ou um fitoterápico carente de estudos científicos de qualidade.

Nada contra fitoterápicos ou chás, se soubermos que eles funcionam. A questão é que ser natural não é garantia de ser eficaz (nem seguro). Meus pacientes perguntam se eu acredito nessas coisas. Respondo que não tenho o direito de acreditar por acreditar, não seria profissional. Os efeitos dessas propostas precisam ser observados pelas mesmas lentes utilizadas na avaliação dos efeitos das drogas tradicionais. Ou seja, as lentes do método científico, que servem para avaliar o mundo de forma imparcial, isenta de vieses ou erros aleatórios.

Não devemos ter preconceito com o natural, mas também não com o artificial. Ambos devem ser testados e comprovados por estudos científicos, antes de fazerem parte do nosso arsenal. O que chamo (ironicamente) de natureba é o natural que é aceito sem comprovação científica, apenas por ser natural.


Preferir digitar mensagens de texto ao celular a conversar com o amigo do seu lado é mau uso da tecnologia. Indicar tratamentos modernos, porém sem comprovação científica, é mau uso da tecnologia. Por outro lado, negar tecnologias de benefício comprovado, em prol do apelo natureba, é uma forma primária de pensamento.

12 comentários:

  1. Uma breve história da medicina

    Eu tenho uma dor de ouvido.

    2000 a.C. - Aqui, coma essas raízes.
    1000 d.C. - Raízes são pagãs, reze.
    1850 d.C. - Rezas são superstição, beba essa poção.
    1940 d.C. - Essa poção é óleo de cobra, tome essa pílula.
    1985 d.C. - Essa pílula é inócua, tome esse antibiótico.
    2000 d.C. - Antibiótico é artificial, coma essa raiz.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Assim como o "parto" do principio... CICLO VITAL HUMANO.... o nome disso .... processo de evolucao funciona via ciclo... É de bem facil compreensão....

      Excluir
  2. Muito boa reflexão, Luis. Peço-lhe permissão para compartilhar. Abs

    ResponderExcluir
  3. Caro Luis,
    Em meu consultório este é um discurso frequentemente repetido por mim. Acho que pela convivência de muitos tempos, absorvi bem esta sua visão.
    Apesar de eu ser bem naturalista, sobretudo na alimentação, considero este pensamento "natureba" bastante deletério para adesão aos tratamentos de doenças crônicas como as cardiovasculares, e repercute negativamente na evolução clínica dos que assim pensam.
    Realmente este paradigma precisa ser confrontado e sair do pedestal do "cool" e de vanguarda, para um pensar retrógrado.
    Abs

    ResponderExcluir
  4. Excelente texto!

    A prevalência é ainda maior com dietas. É bastante comum a ingestão de dietas com pouca proteína e bastante carboidrato, desde que haja bastante "frutas, vegetais, integrais e coisas naturais"

    ResponderExcluir
  5. Sou professora de Nutrição e luto sempre pela Nutrição Baseada em Evidências. Mas como bem explicado aqui neste post... a minha luta é ardua! Parabéns pelo excelente texto e reflexão!

    ResponderExcluir
  6. Luiz: texto reto e sobrio. Demonizar a Industria Farmacéutica e seus blockbusters não podem engordar as arcas dos filhos do Dr Oz.

    ResponderExcluir
  7. Caro Luis,
    concordo plenamente com seu texto e acrescento a vasta evidência existente demonstrando que os suplementos vitaminicos anti-oxidantes com o apelo anti-aging, além de ineficazes, pois não reduzem risco de nenhum desfecho clínico relevante, podem ser danosos, vide a associação de morte e ingesta de beta-caroteno, vitamina E e A em altas doses. http://www.cochrane.org/CD007176/LIVER_antioxidant-supplements-for-prevention-of-mortality-in-healthy-participants-and-patients-with-various-diseases

    ResponderExcluir
  8. Prezado Luis, seu texto foi simplesmente fantástico. Trabalho com pacientes com dores crônicas e percebo 2 extremos (visto que também tenho uma vertente natureba): ou o paciente só aceita medicamentos ou só aceita terapias "complementares". E coloco 'complementar' entre aspas, pois até orientações sobre sono, alimentação, sedentarismo relacionado à dor crônica são recebidas com descrédito por parte dos pacientes. Minha luta nos últimos tempos é integrar as 2 abordagens. Parabéns pelo ótimo trabalho que você desenvolve com o blog!

    ResponderExcluir
  9. O problema é que um trabalho que possa produzir algo aceitável canonicamente só a indústria tem condição de bancar, portanto ela passou a ter o domínio sobre tudo o que é produzido na medicina e classificado como ciência. E nós, nos tornamos seus funcionários, seguidores de protocolos e prescritores de drogas e procedimentos. A saída será o big data, ou melhor a medicina digital. É apenas uma opinião, posso estar enganado.

    ResponderExcluir
  10. Já existe a medicina integrativa, que se propõe a interpretar as práticas alternativas, sob o crivo das evidências científicas. E já progrediu muito, existe um amplo expectro a ser utilizado com segurança. É só buscar as informações.

    ResponderExcluir