Há dois dias publicamos nossa análise sobre o ensaio clínico SPRINT, na qual propusemos a valorização da incerteza sobre a ideia de que aquele estudo respaldaria valores pressóricos > 120 mmHg como fator de risco cardiovascular.
Ontem foi apresentado no congresso do American College of Cardiology e publicado simultaneamente no New England Journal of Medicine, o ensaio clínico HOPE-3, que traz mais dúvida a respeito da hipótese citada acima.
O HOPE-3 estudou pacientes não hipertensos ou hipertensos com pressão arterial satisfatoriamente controlada. A média de pressão arterial da amostra foi 138 ± 15 mmHg para sistólica e 82 ± 9.4 mmHg para diastólica. Percebam que os valores médios de pressão estão abaixo da faixa que define hipertensão, mas dentro de uma faixa que poderia representar um fator de risco para o sistema cardiovascular. Esta possibilidade é embasada por estudos epidemiológicos (observacionais) que mostram aumento de risco a partir de valores > 115 mmHg. Por este motivo, pensadores científicos como Flávio Fuchs argumentam sobre a necessidade de testar essa hipótese.
Pois bem, o HOPE-3 representa um ótimo teste desta hipótese, pois randomiza 12.700 destes pacientes para tratamento anti-hipertensivo (candezartan/hidroclorotiazida) versus placebo. Se houver redução de risco, confirma-se a relação de causalidade entre pressão arterial nestes níveis intermediários e eventos cardiovasculares. Seria a presença do mais importante dentre os critérios de causalidade propostos por Bradford Hill: o princípio da reversibilidade, quando o tratamento do suposto fator de risco reduz o risco.
Conforme esperado, o grupo tratamento desfrutou de maior redução de pressão arterial quando comparado ao grupo controle. No entanto, não houve redução do desfecho primário (4.1% vs. 4.4%, P = 0.41), definido pelo combinado de morte, infarto, AVC. Reforçando a negatividade do resultado, a análise individual dos componentes do desfecho não mostrou diferença a favor do grupo tratamento.
Em um estudo negativo, devemos nos preocupar principalmente com a possibilidade do erro aleatório tipo II, que pode "negativa" um eventual resultado positivo do ensaio. Lembrando, o erro tipo II é aquele no qual a falta de poder estatístico torna o estudo incapaz de rejeitar a hipótese nula quando esta é falsa. Em outras palavras, incapaz de afirmar uma associação que existe.
Para explorar a possibilidade de erro tipo II, devemos procurar algumas pistas: (1) Há uma diferença numérica entre os grupos? (2) O valor de P é limítrofe, tendendo a significância estatística? (3) O estudo possuía poder estatístico para encontrar diferenças relevantes?
- Observem no gráfico abaixo, da sobrevida livre de eventos, que as curvas são bem sobrepostas. Ou seja, não estamos diante de uma diferença que não alcançou significância estatística.
- O valor de P é bastante alto, bem fora daquela faixa que por vezes se denomina de tendência a significância estatística.
- Este é um estudo grande (12.700 pacientes), com grande número de desfechos (1.179). Nos métodos, vemos que o estudo foi dimensionado para 80% de poder de detectar uma redução relativa do risco de 22%. Para isso, o estudo precisava obter 500 desfechos. E obteve. Portanto, não é um estudo que carece de poder estatístico.
Nesta análise, devemos reconhecer que a leitura mecanicista de um estudo (relevância científica) deve exigir poder estatístico capaz de detectar menores reduções de risco do que a leitura voltada para o conceito pragmático (relevância clínica do efeito - NNT). Reduções menores de desfecho podem sugerir causalidade, embora não impliquem em indicação terapêutica, devido a seu pequeno impacto clínico.
Por isso, quando interpretamos um estudo do ponto de vista mecanicista, devemos ficar mais atentos para o poder estatístico, pois este é normalmente calculado sob o paradigma pragmático.
Esta é um observação que menciono com intuito didático. Mas aplicando este pensamento ao HOPE-3, a grande semelhança na incidência de desfecho entre os dois grupos nos deixa tranquilos em relação à probabilidade do erro tipo II.
Análise de Subgrupo
De acordo com o média e desvio-padrão da pressão sistólica basal (139 ± 20 mmHg), em torno de metade dos pacientes do HOPE-3 possuem pressão sistólica > 140 mmHg. Ou seja, boa parte dos pacientes está acima da faixa intermediária que trago para esta discussão. Isto dá uma maior importância à análise de subgrupo.
A análise de subgrupo mostra interação significativa (P = 0.009) entre esta faixa de pressão > 144 mmHg e benefício do tratamento. Ou seja, pressão > 144 mmHg (tercil superior) se associa a benefício do tratamento, diferente de níveis abaixo disso.
Como interpretar essa análise?
Sabemos do cuidado que devemos ter com análise de subgrupo, no sentido de que nunca a conclusão do estudo deve priorizar o resultado de um subgrupo em detrimento do resultado geral. Quando um estudo é negativo, um subgrupo positivo deve ser interpretado apenas como gerador de hipótese (se houver plausibilidade, se o subgrupo for definido a priori, se houver interação significativa). Portanto, a conclusão do estudo é negativa, como foi colocado pelos autores, e o efeito benéfico em pacientes com pressão sistólica maior seria uma possibilidade.
Mas no presente caso, diferente do que parece, a análise de subgrupo reforça o resultado do estudo, em vez de contradizer. Por que digo isso? Vejam que do ponto de vista pragmático, já tratamos pacientes com pressão > 140 mmHg, e do ponto de vista etiológico, já consideramos hipertensão níveis > 140 mmHg. Portanto, o original deste estudo está nos pacientes com pressão < 140 mmHg. E nesses pacientes a análise de subgrupo não mostra qualquer tendência a benefício.
Estamos aqui na situação em que a análise de subgrupo mostra a consistência do resultado principal do estudo (que foi negativo). Mostrar consistência de algo verdadeiro é a função mais nobre de análises de subgrupo.
Voltando ao Mestre Flávio (Fuchs)
Flávio vai preparar uma réplica a minha postagem de dois dias atrás, sobre o SPRINT. Falei para ele não ter pressa, fazer com calma, quando der na telha. Mas ao longo do dia de ontem, surgiu o resultado do HOPE-3. Isto tornou mais difícil o seu contra-argumento.
Do ponto de vista pragmático, o HOPE-3 sugere que não há benefício em reduzir a pressão arterial para níveis inferiores aos padrões tradicionais. Do ponto de vista mecanicista, seguindo o pensamento bayesiano, o HOPE-3 reduz a probabilidade da hipótese de Flávio estar correta: níveis de pressão arterial intermediários, não definidos como hipertensão, representam fator de risco cardiovascular?
________________________________________________________________________________
OBS: O HOPE-3 trouxe o apelo supostamente original de ter estudado pacientes de risco intermediário. Explicarei em mensagem futura porque isto é irrelevante, motivo pelo qual não mencionei este aspecto nesta postagem. Será um comentário com interessante aspecto didático. Em breve farei isso, hoje é domingo, tenho afazeres familiares.
_________________________________________________________________________________
Objetivos Didáticos da Postagem:
- Estudos pragmáticos versus mecanicistas.
- Princípio da reversibilidade
- Análise de erro tipo II
- Poder estatístico de estudos mecanicistas
- Análise de subgrupo
Espetacular ! Como sempre ....... Ansioso para contra argumentação do Flavio .
ResponderExcluirGrande abc
Muito bom Dr
ResponderExcluirMuito bom Dr
ResponderExcluirEste estudo reforça o consenso americano VIII joint?? A sociedade de cardiologia ainda não seguiu as recomedações de para idosos sem comorbidades aceitável até 140 x 80 mmHg, como ficará? Grato
ResponderExcluirParabéns, Dr. Luis! Excelente postagem.
ResponderExcluirExcelente como sempre! Prezado prof Luis, onde posso estudar mais afundo esta questão de leitura pragmática x mecanicista? Existe algum artigo publicado que discorra sobre isso? Muito Obrigado
ResponderExcluirCaro professor Luís , relendo sua análise sobre o HOPE 3 braço hipertensão , fiz algumas reflexões :
ResponderExcluir- Será que podemos considerar o efeito de redução de desfechos cardiovasculares ( hard endpoints ) do BRA testado ( no caso o candesartan do grupo com PAS > 140 mmHg ) como prova de conceito que , talvez ( incerteza ) os BRA's , assim como os IECAS são capazes de reduzir desfechos categóricos ?
- Fato que corrobora os resultados dos já citados ALLHAT ( clortalidona ) e demais ensaios dos IECAS , onde realmente ficamos seguros com a consistência dos resultados que mostraram benefício na redução dos níveis pressóricos , em diferentes classes de anti-hipertensivo .
E já aproveitando : o braço HOPE 3 estatina ( rosuvastatina ) também apresentado no ACC e simultaneamente publicado no NEJM ...
- Te chamou atenção o período de run in ?? Isso teria implicações na validade externa do estudo, concorda?
- A magnitude de benefício foi de uma RAR 1.1% ( NNT 91 ) ..... Isso muda realmente alguma conduta na prática clínica em relação ao impacto do benefício de estatina nesses pacientes dito " intermediários " em prevenção primária ?
- Existe realmente motivo para todo o entusiasmo do efeito da rosuvastatina ?
E ainda existe o possível viés de publicação de um estudo " postivo " no NEJM , mas quando lemos no final do artigo : " Funded by the Canadian Institutes of Health Research AND ASTRAZECA " , talvez, digo talvez possamos entender o tal entusiasmo .
Grande abc
Boa tarde, Luís! Sempre aprendo a ver os estudos de outra forma aqui. Gostaria de aproveitar e ler de você algo sobre o braço dislipidemia do HOPE-3 e o que isso pode mudar em relação à prescrição de estatinas... Grande abraço
ResponderExcluirRobson e Humberto, em breve postarei a análise do braço estatina, na mesma linha de seus comentários. Robeson, acho que a evidência a respeito de BRA é fraca neste caso, pois está junto com diurético, que é a melhor classe de droga anti-hipertensiva. Além disso, é análise de subgrupo.
ResponderExcluirObrigado pelos ótimos comentários.
Obrigada pela aula, professor!
ResponderExcluirVoltou afiado para minha satisfação.Muito bons teus argumentos do Sprint e do HOPE .
ResponderExcluirAbs
Wálmore
Luis
ResponderExcluirExcelente análise sobre o SPRINT e o HOPE-3.
O HOPE-3 já de certa forma faz um contra-ponto ao SPRINT, embora seja muito importante estarmos atentos às interpretações apressadas e de certa formas crédulas de estudos publicadas em revista de peso como o New England.
Estou curiosa para ver o contra-ponto de Flávio Fuchs, certamente também teremos muito a aprender e a refletir sobre nossa prática clínica.
Dizer que aprendemos sempre é redundante, mas está valendo! Agora me chamou atenção, dentre outras coisas, aquilo que está guardando para um momento adiante; a questão de serem assintomáticos. Frequentemente valorizamos em excesso essa informação, como se nesse cenário, com esses desfechos, mudasse nosso raciocínio.
ResponderExcluirDizer que aprendemos sempre é redundante, mas está valendo! Agora me chamou atenção, dentre outras coisas, aquilo que está guardando para um momento adiante; a questão de serem assintomáticos. Frequentemente valorizamos em excesso essa informação, como se nesse cenário, com esses desfechos, mudasse nosso raciocínio.
ResponderExcluirComo sempre ótimo post!!
ResponderExcluir