domingo, 24 de julho de 2016

Os Dois Lados do Efeito Placebo



O efeito placebo possui várias formas de influência na vida humana, passando pelos aspectos social, emocional, clínico e até econômico. Não há como deixar de ser influenciado de alguma forma por este efeito, cuja existência tem demonstração científica estabelecida.

De acordo com a Wikipedia, placebo é definido como uma simulação de tratamento, que frequentemente promove uma melhora, seja apenas perceptível ou real.

Em medicina baseada em evidências, quando falamos que uma intervenção tem apenas efeito placebo, a conotação tende a ser negativa para a conduta médica, representando falta de eficácia intrínseca. 

Por outro lado, pensando de forma pragmática, o efeito placebo traz um benefício real ao usuário, demonstrado por ensaios clínicos randomizados que testam a hipótese do placebo, onde este é comparado à ciência de ausência de tratamento como controle. 

Considerando este aspecto pragmático, por que não oferecer placebo ao paciente? 

Essa pergunta não é simples, pois de um lado há o benefício do placebo, do outro lado há a necessidade de fazer o paciente acreditar que a conduta não é um mero placebo. Assim, nos encontramos diante de um dilema. 

O intuito desta postagem é nos aproximar da resolução deste dilema, sugerindo circunstâncias  em que seria adequado o uso do placebo e outras em que esta conduta não deve ser utilizada. Denominarei estas duas situações de placebo tipo I e tipo II, respectivamente, uso adequado e inadequado. 

Mas antes de diferenciar estas circunstâncias, contarei a história de um inteligente estudo que trouxe um novo conceito a respeito do valor do placebo.

O Preço do Placebo

Em 2008, o grupo do psicólogo Dan Ariely, pertencente ao Massachussets Institute of Technology, publicou no JAMA um provocativo experimento, intitulado Comercial Features of Placebo and Therapeutic Efficacy”, o qual descreve uma nova prova de conceito relacionada ao efeito placebo.  

Foram recrutados 82 voluntários saudáveis, para serem submetidos a choques elétricos em intensidade crescente. Os voluntários receberam a primeira sessão de choques elétricos, quando foi mensurada a intensidade da dor. Depois, os mesmos voluntários receberam uma suposta pílula analgésica (placebo) e nova sessão de choque foi realizada. Subtraindo a intensidade da dor depois - antes do uso do medicamento, quantificou-se o efeito analgésico (o quanto reduziu de dor). Houve de fato uma redução bastante significativa da dor após o uso do placebo. Mas isso não é novidade, pois estudos de metodologia melhor que esta (grupo controle de indivíduos alocados para diferente conduta) já haviam comprovado o efeito placebo no tratamento da dor.

Mas a grande sacada desse estudo foi a seguinte: metade dos voluntários eram randomizados para serem informados de que o preço do analgésico seria $2,50 por pílula e a outra metade randomizada para serem informadas que o preço do analgésico seria $0,01 por pílula. Observem no gráfico abaixo que a melhora da dor (delta da dor - eixo vertical do gráfico) foi significativamente maior no grupo da pílula supostamente cara. 



O conceito usual do placebo é o de ilusão do tratamento (achar que está recebendo o tratamento). Mas este estudo gera um novo conceito: o de ilusão do valor do tratamento influenciando na eficácia. 

Esta é uma importante evidência para a discussão que faremos a seguir, pois abordaremos o uso profissional do placebo e profissão implica em remuneração pelo “valor” de algo.

Usos Adequado e Inadequado do Placebo (como distinguir?)

Considerando que o placebo é benéfico, seria adequado utilizar este efeito com adjuvante de tratamentos? 

Em certos casos, sim. Há situações em que o efeito placebo se faz presente, porém o paciente não está sendo ludibriado em relação à essência de uma conduta. Por exemplo, imaginem que o médico recomenda a um paciente religioso que procure apoio de sua igreja quando do diagnóstico de uma doença terminal. Muito provavelmente, este apoio religioso, para aquele paciente que se identifica com sua igreja, terá um efeito de melhora da sua qualidade de vida, incluindo sintomas. E isto é legítimo, pois a proposta é meramente baseada em fé. Não é um ato médico, é um ato religioso. E isto está claro para o médico e para o cliente.

Percebam que isso é diferente de uma cirurgia espiritual, que se propõe a funcionar como um procedimento anatômico, onde algum pedaço de tecido é (supostamente) retirado, com presença de sangue e espíritos médicos encarnando no “curandeiro”. Neste caso, estamos diante de um ato meramente de fé, que está sendo travestido de ato médico. Ao propor esta conduta como um ato médico, sua eficácia precisaria ser comprovada por ensaios clínicos randomizados. Não sendo, isto se torna medicina baseada em fantasia

A fim de trazer um segundo exemplo de contraste, comparo apoio de um psicólogo versus o uso de homeopatia, ambas ações “vendidas” como atos profissionais. 

No primeiro caso, há dados mostrando melhoria de qualidade de vida em pacientes com câncer que recebem apoio psicológico. E esta é uma oferta legítima, pois o objetivo do tratamento é focado exatamente no psicológico.

Por outro lado, vejam o caso da homeopatia, em que ensaios clínicos de boa qualidade metodológica mostram de forma consistente o efeito benéfico da homeopatia em alguns sintomas, porém este efeito não supera o placebo (Lancet 2005). 

No entanto, diferente do apoio psicológico, homeopatia não é vendida apenas como um apoio psicológico, há argumentos farmacológicos de que aquelas soluções milhares de vezes diluídas, sem moléculas ativas, teria efeito direto, independente do psicológico. Neste caso, não se assume que o efeito é um mero placebo, sendo a homeopatia proposta como um ato médico profissional, apoiado por sociedades médicas/políticas, como a Organização Mundial de Saúde (a mesma que diz não ter dúvida de que Zika causa microcefalia).

Aí está a questão. Se homeopatia traz algum benefício, este pode ser uma opção, desde que o cliente saiba o que está recebendo. Enquanto um ato não médico, semelhante ao apoio religioso acima descrito, homeopatia tem sua validade. Porém ao se travestir de ato médico, homeopatia torna-se anticientífica, pois sua eficácia além do placebo não está comprovada pelos inúmeros ensaios clínicos de alta qualidade metodológica. 

Acho aceitável que uma pessoa procure um astrólogo para conversar, mesmo que a acurácia da astrologia em prever personalidade seja nula de acordo com evidências científicas. Digo aceitável, pois o cliente não espera necessariamente uma visão científica da astrologia. A expectativa é de algo mais lúdico do que decisivo. Astrologia não se define como ato médico. O problema da homeopatia e afins é quando estes se definem como ato médico.

Assim, os placebos do tipo I são aqueles que assumem ser placebos, pois esta é a sua natureza. Os placebos do tipo II são aqueles que não se aceitam como placebos e simulam uma fantasia de que são diferentes. Negam sua própria identidade, sua maior virtude, que é justamente o efeito placebo.

Parênteses: (é neste ponto da postagem os adeptos da homeopatia se irritam comigo e,  de forma previsível, floreiam nosso Blog com comentários caricatos. Gosto desses comentários, pois refletem uma forma prevalente de pensamento. Estes se apresentam de diferentes forma, sendo as mais frequentes: “eu sou ignorante, pois há estudos que comprovam eficácia da homeopatia” ou “existe um outro tipo de ciência para avaliar homeopatia, que não é SUA forma bitolada de entender ciência”.

Confesso que tenho coincidência que incomodo com essas observações sobre homeopatia. Me entendam, não é nada pessoal. Meu interesse não é específico em criticar homeopatia, mas o problema é que este é um exemplo excelente para várias discussões que travamos nesse Blog. Para mim, um dos grandes valores da homeopatia é refletir como nós, meros serem humanos, somos propícios a nos seduzir por fantasia.

Fechando agora os parênteses).

A segunda forma de ter um placebo do tipo I é quando o tratamento oferece um benefício real, alinhado ao efeito placebo. Assim, é legítimo adotar o tratamento e de quebra desfrutar do efeito placebo. 

A Ilusão do Valor do Tratamento

Vamos agora voltar o estudo de Dan Ariely, pois este nos mostra como pode ser perigosa a utilização do placebo tipo II: este estudo torna o caráter comercial do efeito placebo altamente favorável para o “vendedor” de placebo.

Se o tratamento é meramente um placebo, precisaremos enganar o paciente para que este funcione. E quando mais eu superestimar o falso valor do tratamento, mais o paciente vai se beneficiar do placebo. O problema é que quando tornamos este tratamento um ato profissional, para superestimar seu valor, precisaremos cobrar mais por ele. Assim, cobrança excessiva passa a fazer parte de uma fantasia necessária para otimizar o efeito placebo. É um mundo ideal, todos saem ganhando com base na fantasia. 

Desta forma, fica evidente de que a partir do momento que o placebo é travestido de tratamento ativo, este se torna incompatível com princípios econômicos de remuneração com base no valor do produto.

Conclusão

Há duas formas adequadas de aplicar o placebo: não considerar a conduta como um ato profissional (religião, astrologia, por exemplo) ou considerar um ato profissional que se assume como uma intervenção psicológica (apoio de psicólogo, por exemplo). Assim, resolvemos nosso dilema do uso do placebo. Fora estas situações, correremos o risco de cruzar uma linha tênue de transparência em nossa relação médico-paciente, e o modesto benefício do placebo pode ser antagonizado por outros prejuízos.

Placebo é um fenômeno real, benéfico e que deve ser aproveitado como parte de certos tratamentos. Mas o que está faltando na prática é autenticidade: fantasia deve assumir seu papel de fantasia e realidade deve ser sempre comprovada cientificamente. Tanto a fantasia como a realidade têm seu papel legítimo no mundo, desde que assumam sua verdadeira essência, sem querer se travestir de outra coisa.

Assim, todos terão seu merecido espaço, sem controvérsias. 

14 comentários:

  1. Muito bom.

    Uma pequena correção. O termo correto não é "cirurgia espírita" mas "cirurgia espiritual". É diferente. O espiritismo não propõe esta modalidade de tratamento (cirurgia espiritual). Tratamentos espirituais propostos por casas espíritas Kardecistas não se propõe ao uso de material cortante qualquer que seja e não dispensam o tratamento realizado pela medicina tradicional. Poderia se assemelhar ao que foi chamado de uso do efeito placebo tipo I.

    Por fim um pequeno contraponto: "Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pode sonhar tua vã filosofia. Jurai de novo, assim Deus vos ajude, por mais que eu me apresente sob um aspecto extravagante"

    Chame de fantasia quem assim o entender.

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  2. Adorei o artigo. Muito esclarecedor.
    Sim, Cirurgia espiritual (e não espírita) se enquadra, a meu ver, como efeito placebo tipo I.

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  3. Parabéns um de seus melhores textos!
    Aliás, vc acompanha o que Nassim Taleb fala sobre os efeitos indiretos da homeopatia ao reduzir o número de intervenções desnecessárias (já que água com farinha não faz mal a ninguém)?

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  4. Temos então que incluir a fantasia como tratamento, já fiz cirurgia espiritual e funcionou, meus filhos tomam remédios receitados pela antroposofia e melhoraram assim como homeopatia que pela minha fantasia e da minha esposa funcionou já que eles tinham um ou dois anos. Enfim acho que o que conta é o porque estou doente e assim que tomo remedio fantasio que estou me curando

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  5. Muito bom texto! Ficou uma pergunta acerca da conclusão: Quando citou que "correremos o risco de cruzar uma linha tênue de transparência em nossa relação médico-paciente, e o modesto benefício do placebo pode ser antagonizado por outros prejuízos", a que prejuízos se referiu? Poderia exemplificar?

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    1. Efeitos colaterais ou piora do quadro clínico do paciente, por exemplo.

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  6. Excelente texto!
    Seria legal um estudo randomizado e "meio cego": intervenção X placebo e um outro grupo sabidamente placebo. Colocaria um grupo intervenção para analisarmos o resultado frente a um tratamento consagrado. Acho que seria interessante o resultado final.

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  7. Ótimo Luis, vale lembrar também o efeito placebo de participar de uma pesquisa. Pacientes que participam de um ensaio clínico melhoram mais do que os que não participam, independente do grupo para o qual forma alocado. :-)

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  8. Excelente texto! E o livro do Dan Ariely (Previsivelmente Irracional) como um todo é uma ótima leitura :)

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  9. Prezado Luís Cláudio,

    Acho importantíssima a discussão sobre o efeito placebo. Apenas fiquei com a impressão de que teu texto dicotomiza Atos Médicos X Atos sem evidências. Qual a porcentagem de nossas condutas é embasada em evidência de qualidade? Opinião de especialista é melhor ou pior que placebo?

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    1. Prezado Plabo, esse meu texto antigo contempla parte de seu questionamento: http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.fr/2014/10/nao-ha-evidencia-para-tudo.html

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  10. Professor Luis Carlos,

    Há tempos leio seu blog (e para ser sincero, eventualmente aproveito alguns textos para apresentar ideias de mbe aos meus residentes de clínica médica) e realmente é de altíssima qualidade.

    Gostaria de fazer alguns comentários sobre o bom texto sobre placebos.
    Se permite, me pareceu que houve um problema de "evidencias internas", é claro que sempre queremos usar intervenções não só com as melhores evidencias, mas as que as evidencias se encaixam em nossos paradigmas.

    Na verdade onde temos mais evidencias de efeito placebo são naqueles que o chamou de placebo de tipo II. Os estudos de grande qualidade procuram sempre usar placebos do tipo II, no geral não comparamos uma droga nova para depressão com ir na igreja (ou outra atividade religiosa), mas com um comprimido que a despeito de não ter atividade biológica nenhuma possui o mesmo aspecto dos que possuem.

    É quase um axioma do efeito placebo que o paciente desconheça a natureza do efeito placebo, logo ao tentar encaminhar para tratamento com psicologo para uma doença que o paciente não percebe como tendo fundo psicológico estamos desperdiçando o efeito placebo.

    Ao limitarmos o uso de placebo ao do tipo I estamos deixando de usar o que nós mesmo acreditamos ser o mais eficiente dos placebos. É um momento difícil no qual as nossas crenças científicas podem acabar por impedir de fornecer aquilo que mais benefício trará aos pacientes.

    Há uma decisão muito difícil do ponto de vista filosófico, se a homeopatia é um placebo poderoso (e de acordo com as evidencias apenas um placebo) e bastante seguro, não é adequado que a usemos? Se o placebo do tipo II for mais eficiente que o tipo I, devemos nos limitar ao tipo I apenas por nossas crenças científicas e privar nossos pacientes de benefícios?

    Um grande abraço,
    Felipe Magalhães

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  11. Um homeopático não é um placebo. Em grandes diluições pode não haver uma única molécula que não seja de água, mas isso não faz com que ele seja um placebo. E não sei se quem confunde homeopático com placebo tem competência para desenhar um estudo controlado com placebo. Relativamente ao medicamento farmacêutico tem a vantagem de não ter efeitos secundários ou de não ter efeitos secundários tão graves. Cumpre melhor com aquele princípio da medicina que pede ao médico para não fazer mal. É carregado de efeito placebo como aquele. Se um teste com placebo é bem feito o efeito placebo é omnipresente. Mas tem mais alguma coisa. E se há testes que não o detectam talvez seja por terem sido mal desenhados. Um mau desenho pode provocar deslocações do efeito placebo. Pode fazer passar um medicamento farmacêutico nos testes.

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  12. Relativamente ao cartoon... Sim, mais valia... Como o homeopático o placebo tem menos efeitos secundários... não é preciso andar a escondê-los. Só que... o efeito placebo não está (só, principalmente ou de todo) no placebo. Está (mais) na consulta médica (e isso as farmacêuticas não fazem).

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