Passei o mês de julho desse ano com minha família na cidade de Ulm, que fica a uma hora de trem de Munich, Alemanha. O intuito da viagem foi desenvolver ao lado de Franz Porzsolt um projeto de colaboração acadêmico-científico em medicina baseada em evidências e economia clínica. A viagem foi bastante produtiva, profissional e pessoalmente. Sem falar no aspecto pessoal, desenvolvemos uma parceria institucional, Escola Bahiana de Medicina - Hospital São Rafael - Universidade de Ulm.
Conto essa vivência, pois nosso período na Alemanha coincidiu com o atentado em Munich, um evento que me gerou as reflexões epidemiológicas que apresentarei nesta postagem e que, coincidentemente, tem muito a ver com medicina baseada em evidências e economia clínica.
No dia do atentado, minha esposa Susana, minhas filhas Amanda e Melissa, e eu recebemos uma avalanche de mensagens de amigos e familiares, muito preocupados com nossa segurança. Embora tenha respondido as mensagem com a esperada gratidão pela preocupação deles, meu pensamento era outro: meus amigos estavam confundindo risco e dano.
Risco e dano são dois componentes importantes do raciocínio clínico, porém diferentes. Estes dois componentes devem ser levados em consideração de forma separada e complementar.
Na verdade, meus amigos e familiares não deveriam ter se preocupado conosco, se o raciocínio fosse epidemiológico.
Preocupação = Risco x Dano.
Embora o dano de sofrer pessoalmente um atentado terrorista seja imenso, a probabilidade (risco) de um atentado acontecer exatamente no local e hora exatos que eu esteja é ínfima. Digamos, uma probabilidade com muitos zeros depois da vírgula. Portanto, por maior que seja o dan, este é multiplicado por um número muito pequeno, o que deveria gerar despreocupação, ao invés de preocupação.
Imagino que naquele dia do atentado, em Ulm, meu risco de sofrer algum ataque (de qualquer espécie) era menor do que se eu estivesse em Salvador, umas das cidades mais violentas do Brasil. Mas por que as pessoas que estão em Salvador acham que devem estar mais preocupadas comigo, ao invés de eu preocupado com elas?
A resposta está na demonstração científica que psicólogos como Dan Ariely, Dan Gilbert, Dan Kahneman fazem: nossa mente é péssima para estimar o valor do risco.
A Estimativa do Risco
Este foi o maior equívoco de meus amigos, porém este erro não é um particular de meu ciclo social. Esta é a tendência da mente humana. O cálculo intuitivo da probabilidade sofre de vieses cognitivos diversos.
O primeiro vies é a confusão do impacto do evento com sua probabilidade. Nossa sensação de medo não distingue com facilidade risco versus dano. Por isso, achamos que um fenômeno muito danoso é de alto risco.
Outro é o viés de disponibilidade. Por que algumas pessoas jogam na loteria? Vamos usar a mesma equação, mas agora substituindo “preocupação" por “valor”.
Valor do ato de jogar na loteria = risco de ganhar na loteria x valor monetário a receber
Da mesma forma, mesmo que o valor monetário seja muito alto, o risco de ganhar é ínfimo, tornando totalmente inútil o ato de jogar na loteria. Você, simplesmente, NÃO vai ganhar.
Mas as pessoas vivem jogando, pois superestimam o risco de ganhar, devido à heurística de disponibilidade. Ou seja, a gente só assiste na televisão histórias de pessoas que ganharam na loteria. E nunca vemos uma reportagem sobre alguém que não ganhou na loteria. O que está disponível para ser memorizado são os casos que ganharam e a mente intuitiva trabalha muito baseada em memória ou vivências prévias.
Dan Gilbert fez uma pesquisa em que perguntou do que as pessoas tinham mais medo de morrer: terremoto ou pneumonia? Claro que a resposta é terremoto, pois estas raras histórias marcam muito mais nossa memória do que os casos de pneumonia. Mas na verdade, o risco de morte por pneumonia é muito maior.
Raciocínio de Economia Clínica
Nós estimamos erradamente probabilidades e pouco levamos o equilíbrio de risco e dano em consideração.
Em medicina, devemos classificar as diferentes combinações de risco e dano: risco alto, dano alto; risco baixo, dano alto; risco alto, dano baixo; risco baixo, dano baixo.
No risco alto x dano alto, estamos definitivamente em uma situação que necessita de intervenção preventiva. Medidas tendem a ser eficientes economicamente, no sentido de que mesmo que haja um preço significativo da conduta (monetário ou não monetário), o que benefício que recebemos em troca é compensador.
No risco baixo x dano baixo, não precisamos nos preocupar muito.
Mas quando estamos diante das situações intermediárias, precisamos exercer o raciocínio de economia clínica: o quanto estou investindo e o quanto estou recebendo em troca?
Na minha situação, risco baixo, dano alto, a decisão de uma medida preventiva depende do “custo” dela. Neste caso, temos que comparar risco x dano do evento terrorista versus risco x dano do meu retorno ao Brasil.
Ou seja, se Salvador fosse um berço de segurança, valeria a pena voltar para casa, considerando a instabilidade daquele momento na Alemanha?
Embora o dano do terrorismo seja maior do que o dano do meu retorno, a probabilidade do terrorismo é ínfima. Por outro lado, se eu de fato decidir retornar, a probabilidade de meu retorno se concretizará em 100%. Nem será mais uma probabilidade, será um fato.
Portanto, estaria trocando um prejuízo de probabilidade ínfima (atentado) por um prejuízo de probabilidade certa (interromper uma viagem produtiva). Isso me parece que muito claro, para quem quer que estivesse em meu lugar.
Por outro lado, situações semelhantes em medicina nem sempre nos parecem tão claras quando deveriam ser. Decisões pouco econômicas são tomadas a todo momento. Muitas vezes pagamos um prejuízo garantido em troca de um não garantido benefício. Um bom exemplo é quando se indica colecistectomia em pacientes assintomáticos. Ao saber que há um cálculo na vesícula, alguns indicam colecistectomia para prevenir que o paciente tenha uma crise.
Por um lado, a decisão de retirar a vesícula garante (100% de probabilidade) alguns prejuízos: algum desconforto, algum estresse, perda de dias trabalhados. O dano pode não ser alto, mas é garantido. Por outro lado, o benefício não é garantido, pois não sabemos se algum dia aquela “doença” iria se manifestar. Portanto, mesmo que o dano de uma crise de vesícula seja moderadamente maior do que o dano de uma cirurgia eletiva, a probabilidade da primeira é severamente menor do que os 100% de probabilidade da segunda.
Estou obtendo um dano garantido (cirurgia) para evitar um dano apenas possível (manifestação clínica da colelitíase). Em se considerando que estes dois danos não são demasiadamente diferentes em magnitude, não faz sentido algum trocar um prejuízo possível por um garantido.
Mas nesta discussão, normalmente os especialistas dizem: mas pode haver uma pancreatite (dano grande). Sim pancreatite é um dano muito maior do que cirurgia eletiva, mas nesse argumento está faltando o outro componente da equação. Qual a probabilidade (risco) de uma pessoa com pedra na vesícula desenvolver pancreatite ao longo da vida? Normalmente, o especialista não tem essa resposta (até hoje ninguém me respondeu). Ou seja, as pessoas passam a vida raciocinando sem considerar probabilidades.
Pesquisei hoje, mas não achei, embora confesso que minha pesquisa foi rápida. Se alguém souber, por favor, nos instrua sob a forma de comentário.
Outro argumento do especialista pode ser. Mas se a pedra for grande (há um limite proposto), a probabilidade de manifestação clínica (tipo colecistite) é grande. Daí pergunto, qual a grandeza desse risco? Da mesma forma, até então ninguém me respondeu.
Tudo isso mostra que nos esquecemos de considerar risco (probabilidade) ou confundimos risco com dano. Quando pensamento em um dano grande, automaticamente consideramos o risco alto.
Considerações Finais
Observemos como são construídos os investimentos monetários. Estes utilizam a mesma fórmula acima, de forma que o potencial ganho do investidor não seja muito alto. Investimentos conservadores (menor probabilidade de perder) rendem um valor monetário menor. Enquanto os investimento de alto risco (maior probabilidade de perder) rendem um a valor monetário maior. Investidores fazem sempre a multiplicação de risco x dano. Por que médicos não fazem o mesmo?
Daniel Kanehman descreveu em 1975 (Science) os múltiplos vieses cognitivos que permeiam a mente humana quando fazemos julgamentos de situações incertas. Este artigo lhe garantiu o Prêmio Nobel. Deveria ter sido o prêmio nobel de medicina, mas não. Foram os economistas que reconheceram o valor de sua ciência, foi o Prêmio Nobel de Economia.
Não demos a ele o Prêmio Nobel de medicina, pois ainda não entendemos o que William Osler queria nos dizer há 100 anos: "Medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade".
Nós médicos ou profissionais de saúde precisamos nos tornar mais economistas. Economistas não monetários. Pensar no preço que o paciente paga por nossas condutas e no rendimento que o paciente ganha em aceitar nossas condutas. Para isso, precisamos exercitar a estimativa da probabilidade e dano, e em seguida multiplicar as duas. Por fim, o produto das diferentes alternativas deve ser comparado. O que vale mais a pena?
Quanto nossa viagem à Alemanha, não retornamos precocemente ao Brasil, claro. E confesso que não sentimos nenhum impacto do atentado. Passamos os últimos dias da viagem em Berlim, de onde escrevi essa postagem, sentado em um dos bancos do Parque Tiergarten. Ainda bem que não voltei …
Sensacional. Parabéns pela clareza e pela didática. Seus exemplos sempre deixam o raciocínio científico mais claro. Fico com a sensação que na saúde ninguém avalia Dano X Risco e tudo é baseado em achismos. Mesmo os profissionais que fazem seus atendimentos baseados em evidência não levam o mesmo em conta e utilizam do viés do confirmação para escolher o artigo que mais agrada seu raciocínio.
ResponderExcluirParabéns...muito claro!
ResponderExcluirExcelente! Parabens e obrigada!!
ResponderExcluirExcelente, Luis!
ResponderExcluirMuito interessante e extremamente bem escrito, como sempre!!
ResponderExcluirSempre questionei a indicação de colecistectomia em assintomáticos, e raros foram os casos nos meus 30 anos de formado que me deparei com pacientes que foram submetidos a cirurgias de emergência decorrentes de complicações da colelitiase. Isso acontece porque os pacientes que realmente necessitam operar, se tornam sintomáticos quando o quadro clínico muda por causa do deslocamento do cálculo ou por um processo inflamatório causado por ele. Vejo duas situações que mantêm estas indicações precoces. 1- prefiro não dizer mas fica subentendido. 2- judiciarização da medicina. Pergunto; se fazem estudos clínicos para saber se devemos ou não indicar uma troca de valva cardíaca no momento mais próximo do ideal, por que não um para basear a indicação de colecistectomia calculosa em medicina baseada em evidências?
ResponderExcluirExcelente! Difícil é a gente mudar! Mas vamos seguir tentando !
ResponderExcluirQue maravilha ver a discussão sobre custo-efetividade se expandindo! A indústria cobra preços cada vez maiores, não só pela relação risco X dano ou risco X beneficio, mas também pelo impacto emocional causado pela condição ou doença, apostando justamente nos nossos vieses cognitivos.
ResponderExcluirIndependente do nome que a demos - economia clinica ou avaliação econômica (parte da economia da saúde), ela nos oferece ferramentas para avaliar se o benefício oferecido vale o custo envolvido, considerando que o recurso é limitado e seu uso sempre será por meio de uma escolha alocativa, ou seja, se uso o recurso para um determinado fim, limito sua disponibilidade para outra alternativa/necessidade.
Excelente, como sempre, Professor!
Mesmo que o risco fosse um pouco maior, ainda assim, acho que não valeria a pena perder a oportunidade da vista desse parque. Afinal, estamos apenas de passagem...
ResponderExcluirGratidão pelo texto esclarecedor _/\_
Isso é o que dá quando juntamos duas variáveis: uma pessoa brilhante + O dom da Escrita!! Parabéns e obrigado!
ResponderExcluirFoi publicado em Janeiro desse ano um artigo sobre a História Natural da Colelitíase incidental (A Prediction Rule for Risk Stratification of Incidentally Discovered Gallstones: Results From a Large Cohort Study) mostrando que durante um acompanhamento de 17 anos 20% dos pacientes apresentaram eventos relacionados a litiase biliar, sendo que 8% tiveram eventos complicados (Colecistite ou Coledocolitiase), infelizmente não citaram Pancreatite.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, muito bom!
Dr. Luis Cláudio, excelente artigo! Parabéns pelo conteúdo, pela didática e por sua visão. Um abraço, Ramon.
ResponderExcluirhttp://www.cochrane.org/CD006233/LIVER_prophylactic-cholecystectomy-should-be-offered-to-patients-whose-gallbladders-remain-in-situ-after-endoscopic-sphincterotomy-and-common-bile-duct-clearance
ResponderExcluirEdmond Le Campion
ResponderExcluirDe fato, devido ao aumento na realização de exames "check-up", a incidência de colecistolitiase assintomática vem aumentando. A probabilidade de um paciente ser sintomático no decorrer da vida é em torno de 30%, e complicações graves como pancreatite aguda biliar é de 2% em 20 anos (Lowenfels AB, Lankisch PG, Maisonneuve P. What is the risk of biliary pancreatitis in patients with gallstones? Gastroenterology 2000; 119: 879–80). Apesar da cirurgia por videolaparoscopia ser extremamente segura, a probabilidade da complicação mais grave deste procedimento é de 0,5% (lesão de via biliar). Portanto, é importante o médico esclarecer o paciente sobre os fatos, evitando conflito de interesses, e individualizando a conduta caso a caso. Para criar um debate maior, gostaria de deixar uma pergunta: E se o paciente for do sistema único de saúde (SUS), onde chega a um ambulatório sem sintoma, com colelitiase ao USG. Sabendo da dificuldade de acesso ao tratamento cirúrgico, do aumento da incidência de complicações graves da colecistite crônica (Sind. Mirizzi) devido à falta de tratamento em tempo hábil. Seria interessante operar esse tipo de paciente, mesmo assintomático? Um abraço a todos
Outro artigo perfeito. Exatamente por isso a complexidade do investimento de recursos em práticas de segurança com pouca evidência de proteção. Exatamente por isso teríamos que estar montando Matriz de Risco nas unidades hospitalares, assim como a NASA o faz nos projetos, assim como as cias aéreas fazem para chegar a um acidente em 10 milhões de ciclos de produção e serem chamadas de HRO. Compartilho com muito gosto sua publicação!
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