segunda-feira, 1 de maio de 2017

Quando o estudo é uma profecia auto-realizável (Compare-Acute)


Imaginem que sorteamos 500 cortes de cabelo para uma população de 1.000 mulheres. Depois acompanhamos estas mulheres por um certo período e observamos que as que não foram sorteadas para cortes cabelo têm maior probabilidade de irem no salão de beleza para cortar cabelo quando comparadas às mulheres que já tinham cortado o cabelo inicialmente. Em conclusão, corte de cabelo previne corte de cabelo subsequente. 

Nada mais óbvio do que isso, não haveria sentido em fazer este estudo, pois seria uma profecia auto-realizável (tradução de self-fulfilling prophecy, termo comum na língua inglesa).

Chamo de profecia auto-realizável pois o próprio experimento para testar a hipótese faz da hipótese verdadeira. 

Agora imaginem que sorteamos 885 pacientes com obstrução coronária para fazer angioplastia ou não fazer angioplastia. Depois acompanhamos estes pacientes por um certo período e observamos que os que não foram sorteados para angioplastia tinham maior probabilidade de irem no hospital para fazer uma angioplastia quando comparados aos pacientes que já tinham feito angioplastia inicialmente. Em conclusão, angioplastia previne angioplastia subsequente. 

Nada mais óbvio do que isso, não haveria sentido em fazer este estudo, pois seria uma profecia auto-realizável. 

Mas fizeram e este é o ensaio clínico Compare-Acute, apresentado como late-breaking clinical trial no recente congresso do American College of Cardiology e publicado no New England Journal of Medicine. 

A chave para identificar este tipo de viés está na análise do desfecho: quando o desfecho é o mesmo da intervenção, ocorre a profecia auto-realizável. Neste estudo a intervenção é angioplastia e o desfecho é angioplastia.

Mas porque percebemos a obviedade da primeira hipótese testada (corte de cabelo) e não percebemos o mesmo na segunda hipótese (angioplastia)? Isto ocorre pois o segundo caso se travestiu de um estudo científico, testando uma hipótese clínica que vem sendo tema de debate intenso. Temos o hábito de analisar criticamente a qualidade metodológica do estudo, mas não temos o hábito de analisar criticamente a qualidade da hipótese do estudo. 

Isso não está nem mesmo no algoritmo de critical appraisal típico da medicina baseada em evidências. Mas deveria estar: a primeira coisa a fazer é identificar a hipótese e analisar se esta merecia ter sido testada. A hipótese pode não merecer ser testada quando estamos nos extremos de plausibilidade (obviamente verdadeira ou obviamente falsa). 

Quando é obviamente falsa, o resultado negativo não acrescenta  nada (pois já sabemos) e o resultado positivo também não, pois a valor preditivo positivo do estudo será pequeno (probabilidade condicional (vejam última postagem).

Quando é obviamente verdadeira (o caso desta postagem), o resultado positivo do estudo (que não precisava ter sido realizado) cria uma falsa impressão de que descobrimos algo novo e isto induz médicos a adotarem o tratamento com base no resultado do estudo (medicina copiada de artigo) e não com base no conhecimento (que já se tinha) alinhado ao julgamento clínico. Um estudo positivo (mesmo que óbvio) funciona como um motivador para a adoção de uma conduta. Resultado do estudo garantido, impacto do resultado garantido. 

Ensaio Clínico Compare-Acute

Vamos descrever este ensaio clínico randomizado utilizando o acrônimo PICO:

População: multi-arteriais submetidos a angioplastia primária da artéria culpada pelo infarto.
Intervenção: angioplastia das artérias não culpadas, mas que tinham obstruções hemodinamicamente importantes (testadas por FFR).
Controle: não realizar angioplastia das outras artérias. 
Outcome (desfecho primário): Combinados de morte, infarto, qualquer revascularização e AVC em seguimento de 12 meses.

Ora, já sabemos de forma reprodutível (mesmo resultado em vários estudos) que angioplastia de placa não envolvida com síndrome coronariana aguda não reduz morte, não reduz infarto e não tem porque reduzir (nem causar, muito raro) AVC. O estudo FAME-2, publicado há alguns anos e que também usou fractional flow reserve (FFR) para escolher as obstruções significativas, não mostrou impacto algum na redução destes desfechos maiores. 

Sim, sei que estes estudos prévios não foram feitos no cenário de infarto com supradesnível de ST, mas lembro que experimentos (ensaios clínicos) servem para testar conceitos (princípio da prova do conceito) e não testar cenários (princípio da complacência). Um placa não culpada em um paciente infartado está muito mais para uma placa de um paciente estável do que para a placa culpada do paciente infartado.

Desta forma, já era bastante previsível que o estudo seria negativo quanto aos desfechos maiores e óbvio que seria positivo quanto ao desfecho revascularização. Esta é uma demonstração que podemos, se quisermos, desenhar estudos com garantia de resultado positivo. É só usar profecias auto-realizáveis. 

Resultado: o grupo intervenção apresentou menor incidência do desfecho primário, basicamente à custa do desfecho angioplastia, que é o mesmo da intervenção.
Conclusão: este é um estudo do tipo “salão de beleza”.

Imaginem que um grupo de pacientes teve infarto de parede anterior e foram submetidos a angioplastia primária da artéria DA, porém também tinham lesão de 70% na CD. Um grupo desses pacientes fazem angioplastia da CD no mesmo dia da angioplastia primária e o outro grupo não faz angioplastia da CD. Todos recebem alta. É claro que o grupo que não fez angioplastia da CD terá maior frequência de angioplastia da CD do que grupo que já fez angioplastia da CD, simplesmente porque o primeiro grupo terá mais artérias CD com lesão para serem angioplastadas do que o primeiro grupo. A disponibilidade de artérias para serem angioplastadas é maior em um grupo do que no outro grupo. 

Desfecho do Tipo Criado pelo Médico

Mas há outra razão para a profecia se realizar. É importante entender que “revascularização” é um tipo de desfecho que é “criado pelo médico”. Diferente de morte, infarto e AVC, que são coisas que ocorrem espontaneamente, como consequência da doença do paciente, o desfecho revascularização passa pela cognição do médico para que ocorra. 

Em um ensaio clínico randomizado, a decisão é tirada do domínio do médico. Quem decide é o sorteio. Isso gera uma inevitável sensação de impotência, um desconforto em não poder fazer o que o médico acha melhor para seu paciente. Naturalmente, este estudo é aberto, pois seria difícil e questionável deixar o médico sem saber se seu paciente fez ou não fez angioplastia. 

Desta forma, a decisão é tirada do médico e o médico sabe qual foi a decisão do sorteio. Se a decisão do sorteio foi contrária à preferência do médico, ao longo dos 12 meses de seguimento, o médico terá uma tendência a corrigir essa “distorção”.  Como ele ou ela corrigiria esta distorção (de forma muitas vezes inconsciente)?

Sintomas discretos e subjetivos (que normalmente seriam relevados) passam a ser supervalorizados como forma de justificar a intervenção; testes isquêmicos são solicitados e quando positivos promovem a intervenção, mesmo no paciente assintomático (reflexo óculo-isquêmico.); ou simplesmente o médico reinterna o paciente para fazer o procedimento.

Este último mecanismo parece uma violação, mas correspondeu a 1/3 das revascularizações realizadas no grupo randomizado para não fazer a angioplastia das artérias não culpadas pelo infarto. Isto está descrito no suplemento do artigo, onde há uma tabela que descreve os motivos das revascularizações.  Eles chamaram de “angiography (no angina ou ischemia)”, denotando que o médico pediu uma angiografia coronária no paciente sem angina ou teste isquêmico e isso foi motivo de 33% das revascularizações. 

Em estudo abertos, devemos evitar desfechos “criados pelo médico”, pois eles são enviesados pelo mecanismo de correção da distorção preferência-sorteio.

Quando entramos no mundo real, a decisão não é por sorteio. Sendo assim, o médico estará mais confortável com uma eventual decisão de não abordar as demais artérias. E quando preferência coincide com a decisão, o curso clínico tende a ser melhor.  Sendo assim, podemos imaginar que a efetividade (mundo real) da conduta conservadora é melhor do que sua a eficácia (mundo dos ensaios clínicos). Artérias escolhidas pelo médico para não serem abordadas tendem a ser menos abordadas no futuro do que artérias escolhidas pelo sorteio para não serem abordadas. 


A Decisão Clínica

Saliento que este trabalho não testou a eficácia da realização do FFR na escolha das artérias para serem abordadas. Todos os pacientes do grupo intervenção fizeram FFR, portanto o estudo não compara intervenção guiada por FFR versus intervenção guiada pela angiografia. Ou seja, o estudo não indica necessariamente o uso de FFR na rotina para testar placas não culpadas.

Outra questão é que o FFR não obrigatoriamente torna o grupo intervenção mais parcimonioso. Como parte do protocolo, um paciente com lesão não culpada de 50% faria um FFR, que se positivo implicaria em abordagem dessa artéria. Uma típica situação de reflexo óculo-isquêmico (uso inadequado de um falso paradigma isquêmico para induzir procedimentos - veja postagem prévia). 

A análise da profecia auto-realizável não quer dizer que não devemos abordar as artérias não culpadas. Também não quer dizer que devemos abordar. Mais uma vez, se aplica o jargão da individualização, norteada por evidências já bastante conhecidas de que (1) angioplastia reduz sintomas e (2) angioplastia de placa estável não reduz infarto ou morte.

Devemos considerar a abordagem das demais artérias (no mesmo internamento ou no mesmo procedimento) em duas situações principais: (1) se o paciente tem angina crônica que culminou no infarto, temos tendência a fazer revascularização completa, pois o procedimento tende a ser benéfico no controle deste sintoma crônico; (2) quando o grau de obstrução da artéria não culpada é crítico demais fica evidente que não deixaremos a lesão sem ser abordada, pois o dado anatômico é fortemente sugestivo de um curso clínico indesejado (aqui me refiro a apenas a lesões extremas, sub-oclusivas, tipo 99%, um fio de cabelo ou ponta de lápis).

Na ausência destas circunstâncias e observando que a abordagem mais agressiva não reduz infarto ou morte, não há justificativa em sair desentupindo tudo, pois se não traz benefício, resta apenas o custo do procedimento, representado pelos eventos adversos que podem advir. 

O conceito de consequência não intencional está no cerne da atitude parcimoniosa quando há incerteza do benefício de uma conduta. Para cada consequência intencional (benefício esperado) de um ato médico há uma infinidade de potenciais consequências não intencionais (eventos adversos inesperados). É 1 consequência concorrendo com uma infinidade de consequências imprevisíveis, fazendo com que a probabilidade de um evento adverso seja maior do que a probabilidade do benefício. 

Por este motivo, deve haver uma probabilidade (evidência) razoável do benefício para compensar o maior número de consequências não intencionais concorrendo com 1 consequência intencional. Este é o pensamento que baseia não realizar atos fúteis, mesmo que estes não aumentem o risco do desfecho principal.


Conclusão

A discussão aqui apresentada mostra um resultado positivo no desfecho que tem dois componentes: um componente verdadeiro e um componente falso. O primeiro componente, o verdadeiro, depende do fenômeno de maior disponibilidade de artérias entupidas a serem angioplastias (óbvio, portanto não traz uma informação nova para mudar conduta). O segundo componente é falso, pois é mediado pelo viés correção da distorção preferência-sorteio, que ocorre em um ensaio clínico aberto, mas não ocorrerá na prática do mundo real.

Devemos estar atentos quando a profecias auto-realizáveis pois elas podem parecer como uma novidade a influenciar nossa conduta. E a chave para identificar esse problema é procurar por situações onde o desfecho é o mesmo da intervenção.
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Objetivos Didáticos desta Postagem:

- Desfechos de resultado garantido.
- Mecanismo de correção da distorção preferência-sorteio.

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3 comentários:

  1. Pode colocar nessa sacola os estudos que mostram que remédios para diabetes previnem elevação da glicemia...

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  2. Luiz costumo a dizer que o porteiro do Hospital consegue prever o resultado do estudo.

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  3. Rindo muito com o estudo tipo “salão de beleza”, kkkk... ótima postagem!

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