quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A Provável e Inconveniente Causalidade entre Tiazídico e Câncer de Pele



Gerou grande controvérsia a recente nota de alerta da ANVISA sobre a relação causal entre uso cumulativo de hidroclorotiazida e câncer de pele não-melanoma. Enquanto a imprensa leiga reproduziu a nota em tom de sensacionalista (1, 2, 3), profissionais de pensamento baseado em ciência saíram em defesa desta terapia diurética no tratamento anti-hipertensivo (12), questionando a qualidade da evidência que suportava o papel cancerígeno da droga. 

Recebi mensagens de vários colegas questionando o caráter observacional do estudo que motivou a recomendação (J Am Acad Dermatol, abril 2018) e meu reflexo natural foi o de concordar com a crítica. Mas ao analisar com mais critério, desenvolvi uma opinião diferente que explicitarei nessa postagem. Minha análise se baseia na aplicação dos conceitos que apresentei no recente artigo  sobre o valor de “estudos observacionais: quando confiar, desconfiar ou descartar?". Vale a pena revisitar. 

Primeiro, precisamos nos preparar mentalmente para a análise de qualquer evidência externa, pois esta pode vir de encontro com nossas perspectivas científicas. Essa preparação passa pelo seguinte questionamento: quais são minhas evidências internas (crenças) a respeito do assunto? Esta proposta de aquecimento mental foi tema de postagem prévia no Blog. Vale a pena revisitar. 

A pergunta permite identificar nossa predisposição ao viés de confirmação. No meu caso pessoal, identifico uma predileção baseada em evidências pela terapia antihipertensiva com tiazídicos , o que pode me gerar um preconceito contra o argumento do efeito carcinogênico. Alguns colegas aventaram uma “teoria da conspiração” contra os baratos diuréticos, motivada por conflitos de interesse da indústria produtora de medicamentos "inovadores". É possível, mas antes precisamos analisar as evidências de uma forma a evitar a influência demasiada de nossos vieses pessoais.

A ANVISA poderia ter gerado uma nota baseada neste estudo observacional?

O primeiro passo é avaliar se o dado observacional diz respeito da “dano” ou “proteção”. Esta diferenciação é essencial para definir a magnitude do ônus da prova. Diferente da proposta da implementação de uma conduta “protetora”, quando investigamos potencial efeito danoso (fator de risco) estudos observacionais ganham força de evidência e, a depender de  alguns critérios, podem ser considerados evidências potencialmente confirmatórias.

Algumas razões suportam a maior tolerância com o nível de evidência para "dano". 

Primeiro, dizer “tome cuidado” traz consigo uma menor responsabilidade do que induzir a adoção uma conduta nova. 

Segundo, o sentido da indicação depende primariamente da eficácia e de forma complementar da segurança. Por este motivo, não se faz ensaios clínicos para demonstrar efeito adverso. Ensaios clínicos são dimensionados para eficácia e secundariamente avaliam segurança. 

Terceiro, os eventos adversos são menos comuns do que desfechos clínicos a serem prevenidos pelo tratamento. Por isso, estudos intervencionistas são subdimensionados para eventos adversos. Isto faz com que se precise comumente recorrer a relatos observacionais em estudos de fase IV para detectar eventos adversos. 

Portanto, guardadas algumas premissas, estudos observacionais podem definir fatores de risco. Que premissas? Como propomos na postagem sobre estudos observacionais são três as premissas: significativa probabilidade pré-teste em uma abordagem bayesiana, grande força de associação e dificuldade de evidências intervencionistas confirmatórias. Estes são o caso do tabagismo e etilismo como fatores de risco para suas respectivas doenças. 

Vamos agora analisar estas premissas no caso dos tiazídicos e câncer de pele.

A probabilidade pré-teste tem os componentes de plausibilidade e evidências prévias. Precisei estudar para acessar este tópico. Os tiazídicos estão no conjunto de drogas que causam fotosensibilidade à pele. Naturalmente, isto explica a plausibilidade biológica de que a droga pode deixar pacientes mais predispostos a um câncer induzido pela exposição a raios ultravioletas. Inclusive, há evidências sugerindo que fotossensibilidade farmacológica induz câncer de pele

Quanto a evidência prévias, notei que este não o primeiro estudo observacional a sugerir tal associação. O conjunto de evidências prévias é sugestivo, merecendo destaque um estudo prévio do mesmo grupo, mostrando associação com carcinoma de células escamosas. Portanto, o estudo que induziu a recomendação da ANVISA é um estudo reproduz evidências prévias. Portanto, temos uma probabilidade pré-teste razoável a favor da hipótese. Não estamos diante de uma ideia que acaba de surgir. Estamos diante de uma ideia vem sendo construída progressivamente e o presente estudo serve como mais uma evidência a favor. 

E quanto à força de associação? O trabalho em questão avaliou dois tipos de cânceres de pele não melanomas: basocelular e células escamosas. Ambos apresentaram um nítido gradiente dose-resposta e no caso de células escamosas, a maior dose da droga acumulada apresenta odds ratio de 7. Ou seja, estamos diante de grande força de associação, maior do que boa parte dos fatores de risco para doenças cardiovasculares ou cânceres. 



Por fim, é pouco provável que tenhamos um ensaio clínico desenhado para testar essa hipótese e estudos intervencionistas já realizados seriam de poder insuficiente e provavelmente carecem deste dado. A incidência desses cânceres de pele gira em torno de 1% ao ano, portanto um estudo de 5 anos teria uma incidência de evento menor do que a incidência de eventos usualmente testados por estudos prospectivos, que gira em torno de 10%-20%. Seria necessário um ensaio clínico de tamanho amostral em torno de 4 vezes maior do que os estudos usuais de anti-hipertensivos. 

Estes são três critérios sistêmicos a favor da ideia de causalidade. Mas precisamos ir no especifico e avaliar a qualidade do estudo observacional em questão. Trata-se de um estudo de caso-controle aninhado, proveniente de registros eletrônico dinamarquês. Guardando as limitações inerentes ao desenho, o estudo é bem realizado, na coleta e análise dos dados. Muito importante salientar que o estudo foi realizado tendo esta hipótese determinada a priori como o objetivo principal. Além disso, a escolha do tipo de antihipertensivo não tem grande potencial de carregar pacientes com maior risco de câncer de pele. 

Neste momento, vale reafirmar: aceitar efeito danoso de uma droga com base em estudos observacionais requer rigidez de avaliação, a qual não está presente da maioria das situações. Como comparação, podemos citar interessante exercício epidemiológico que mostrou associação entre uso de digoxina e morte em pacientes com fibrilação atrial. Aquele estudo tem grande potencial de efeito de confusão, pois a escolha por digoxina tende a carrear pacientes com disfunção ventricular esquerda e consequentemente maior risco de morte. Além disso, a associação não foi encontrada na análise usuários versus não usuários de digoxina, sendo percebida quando se migrou para uma análise baseada na concentração plasmática da droga (problema das múltiplas comparações). Por fim, a força de associação foi mais fraca do que observamos no presente caso dos tiazídicos (HR = 1.56). Trago este exemplo para exemplificar uma situação em que não julgo ser evidência suficiente para gerar uma advertência de risco.

Concluo portanto, com base em análise bayesiana que engloba a probabilidade pré-teste e a nova informação (força de associação, gradiente dose-resposta, qualidade do estudo), que devemos considerar possivelmente verdadeiro o conceito de causalidade entre tiazídicos e câncer de pele. Assim como ocorre com boa parte dos eventos adversos “estabelecidos”, que são baseados em dados observacionais.


Implicações e Lições


Nossa conclusão não deve implicar que evitemos os tiazídicos como antihipertensivos e a ANVISA não quis dizer isso. Devemos apenas considerar esta informação como mais um detalhe em nosso processo mental de decisão. Digo isso pois grandes tamanhos de efeito (odds ratio > 2) se deram com doses cumulativas a partir de 75.000 mg, o que corresponde a 16 anos de uso da dose de 12.5 mg. Vale salientar que não estamos falando aqui de desfechos graves como melanoma. Especialistas discutem até mesmo se é adequada a denominação de câncer para estes não-melanomas. 

Além disso, o câncer que gera preocupação se constitui em um desfecho probabilístico em futuro remoto, o que tem menor força no processo decisório do que o benefício obtido no presente: controle antihipertensivo e bom perfil de tolerabilidade da droga.

A ANVISA fez uma advertência com um critério adequado, como costuma fazer em muitas situações semelhantes. A diferença desta vez foi que a advertência foi contra uma pet drug (droga de estimação) de boa parte dos médicos, na qual me incluo. É droga de estimação de médicos baseados em evidências.

Podemos defender o valor dos tiazídicos, mas sem precisar negar este potencial efeito danoso. Se por um lado considero sensacionalista e inadequada a reação da imprensa, por outro lado foi a reação emocional com que parte da comunidade médica se posicionou que mais me chamou atenção neste caso. E em geral os que mais gritaram foram aqueles de mente analítica e científica. 

Este caso mostra que não são apenas os fantasiosos que se reunem em tribos apaixonadas. Temos que ter cuidado para que os científicos também não se dogmatizem em uma cega defesa de suas ideias. Esta é a principal lição deste caso.

6 comentários:

  1. Analiticamente foste bem; poderia obstar por várias razões, como tamanho de efeito, grande probabilidade de exposição populacional (que aumenta a probabilidade de associação com qualquer coisa), ausência de uma morte atribuível a anti-hipertensivos por câncer nas mega-meta-análises de tratamento farmacológico (se der câncer, não mata). Eu questionei a Anvisa, que aparentemente modificou o alerta, o primeiro era mais assustador, no segundo foram mais ponderados e citaram decisão de autoridade sanitária de alhures. O que deixaste de abordar foi o de competing causes of death and morbidity. Eu não divulgaria tal alerta, muita gente se assustou e o que sabemos do povo? Qual a alternativa, nem falo como primeira linha, mas como droga de rescue? Seria muito difícil calcular, mas uma eventual queda de uso de tiazídicos preveniria um punhado de canceres de pele benigno (eu, como meio mulato e meio gringo já tive três) por um punhadão de AVCs, viste o N Engl de hoje? Grande abraço e obrigado por me provocar por whats, colei esta resposta no blog, aproveitando para fazer propaganda: a teoria de causação da doença CV está em reta final de redação e provocará a humanidade, ou talvez, centenas de pessoas, ou talvez a ti, pois meus outros amigos concordam comigo, pelo respeito a seniority.

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  2. Excelente texto, @⁨Luis Correia⁩. Concordo plenamente com os preceitos científicos em assumir-se presumível causalidade de dano evidenciadas por estudos observacionais. Entretanto, em meu texto acima, com direcionamento alinhado a meu conforto cognitivo, assumo, entendi como preocupante aceitar a evidência primária para respaldo da recomendação. Explico-me:
    1 - a separação de grupos da HCTZ se da por dose acumulada, ou seja, depende do fator tempo de uso. Mesmo que o grupo controle tenha mesmo tempo de seguimento que o grupo CPNM, ao separar-se subgrupos dependentes do tempo, haveria novos “desemparelhamentos” entre grupos.
    2- além de diferenças absolutas de outros medicamentos com potencial fotossensibilizante apresentados na tabela 1, outros medicamentos são mais presentes no grupo CPNM do que no controle. Diferenças absolutas até maiores que a do HCTZ. Se, por exemplo, a hipótese conceitual fosse desenhada para inferir-se causa-efeito de corticosteoides para CPNM, o NNH seria metade do que o da HCTZ; Quase 3x menor para AINE’s. Semelhante para BCC e BRA’s. E, como demonstram nos suplementos, para HCTZ sem amilorida, o NNH saltaria dos 220 com os dados separamos por dose acumulada para mais de 1000 (10x menor do que para corticoides).
    3- no estudo da digoxina, houve possibilidade de emparelhamentos por mais de 30 cofatores através dos escores de propensão. Neste, da HCTZ, apesar do emparelhamento inicial, a separação posterior por tempo de uso (dose acumulada), poderia gerar potenciais novos desemparelhamentos (sobretudo de idade e, talvez, comorbidades). Fenômeno muito parecido com o que li recentemente em estudo que demonstra maior risco de CA de pulmão conforme tempo de uso de iECA’s.

    Gostaria de saber sua opinião sobre isso, se possível!

    Abraços

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  3. Uma análise interessante, caro Luis. Eu mesmo utilizo anti-hipertensivos (mas não este), e me interessa a questão.

    O que me inquieta, entretanto, é a resposta da nossa imprensa.

    Podemos considerar que haja evidência da associação, e que seja significativa. Vale fazer o alerta junto à população médica e farmacêutica, que são os profissionais que prescrevem e dispensam o medicamento.

    A população, é claro, deve conhecer os fatos.

    Entretanto não conhecemos fatos mais precisos sobre a nossa epidemiologia. A frequência real: incidência e prevalência, é ainda desconhecida. Os eventos adversos mencionados são de pouca gravidade. (embora de certo tom emocional para a população geral).

    Então, o que cabe perguntar é: como divulgar essa informação efetivamente à população geral?

    Ora, em Medicina Baseada em Evidências devemos considerar pelo menos três fatores: A Evidência Clínica, a Experiência profissional e as preferências do paciente.

    Onde quero chegar?

    Com as características da nossa população, corremos o risco de renunciar a uma medicação antiga, testada e efetiva por outra — mais cara, de efetividade diferente, e menos avaliada pelo uso.

    Sabemos que a prova final de uma droga é seu uso clínico. Quais serão os efeitos adversos da nova droga (qual/quais serão?)? O uso da droga atual poderia ser mantido, apenas com um ajuste de farmacovigilância e da monitorização dos efeitos pelo médico e paciente? (a propósito: o Brasil tem um Sistema Nacional de Farmacovigilância efetivo?)

    A minha opinião é a de que a droga tem utilidade clínica, apesar do efeito adverso constatado. Os resultados de estudos observacionais convidam-nos, não a interromper o seu uso, mas a estudá-lo melhor — quiçá compararemos com outras drogas usadas em similar indicação clínica.

    Concluo que a imprensa frequentemente nos presta um deserviço, ao apresentar de forma inadequada fatos e informações sobre a saúde:

    O "poder curativo" da "agua de quiabo" e da "Batata Yakon" na diabetes;
    os "efeitos miraculosos" de dietas;
    os efeitos nocivos das mesmas dietas;
    os "notáveis efeitos" (às vezes positivos, às vezes negativos) deste ou aquele suplemento nutricional;
    "a droga que cura todos os tipos de câncer"...

    É uma enumeração infinda. Não sou a favor de censura militaresca da imprensa, mas acho que uma mínima exatidão científica deveria ser prestada. Esse tipo de informação somente serve a complicar a nossa relação com os pacientes, e acaba se deixando levar por aquele nosso velho amigo o "vested bias" ou "viés oculto".

    Aí a gente muda nossa conduta sem saber bem porque (do ponto de vista científico).


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    1. Uma nota por um órgão ou autoridade em saúde, em temas tão debatidos nos entremeios populares, pra mim, visualmente comparando, é como um traço em duas retas paralelas: você tangencia e cria uma ligação entre elas, mas muitas vezes sem ver o que veio antes e o que repercute depois. Nisso, digo que os olhares lançados sempre são partes de um todo. E de "uns" "grandes" “todos”. Se pararmos pra analisar, no caso do anti-hipertensivo x câncer, a interseccionalidade é absurdamente grande. Tão grande que acaba sendo, pelo menos pra mim, perigoso o lançamento desses olhares midiáticos, porque podem, e muitas vezes beiram, tangenciar o um pouco o reducionismo, isso é: é complicado, explicar os fatores causais envolvidos no tema, sem antes trazer um dicionário com uma série de conceitos prévios, necessários pra esmiuçar o entendimento (sempre pensando no mais leigo dos públicos). E isso leva a uma caos cientifico. Se, no meio especializado, já é difícil debater desenhos de estudos, seus resultados e finalidades (isso tudo sem falar de vieses), imagina projetar isso pra grande lente da mídia. É um grande mar de miopias. Não que não deva serem nunca publicadas notas como esta, mas cabe de lição também ver como hoje tudo isso repercute e, com isso, saber ter cautela sem perder a elegância - e sobretudo a honestidade - científicas. Nisso, uma reflexão é sempre cabida na leitura de um texto/notícia como esse: ciência e mídia precisam se interpor mais, porém sem serem tão longínquos um do outro. Não dá somente pra dizer A x B = C, mas sim tornar lúdico, acessível, ainda que diluído em notícias, o processo de alfabetização-consciência, pouco a pouco, pra que notícias assim sejam contestadas, indagadas, digeridas e aceitas (ou não). Notícias assim, que mostram que a frase “Dr., eu li na internet/jornal…” são cotidianas deixam de alerta: precisamos quebrar tabus. Vários deles. Sentar pra discutir ciência com os nossos e com a população, assim como torna-se essencial educar uma criança. Mas, pra isso, precisamos de muitas ferramentas de auxílio. Um dos êxitos desse blog é aproximar essa distância.

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  4. https://goaltwo.blogspot.com/2012/01/10-claudio-caniggia-youre-gonna-know.html

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  5. ... e, a cega defesa de nossas ideias, a necessidade de estar certo em nossas convicções, em nossas práticas rotineiras, a incapacidade de traçar novas rotas, trilhar novos caminhos, é o maior conflito de interesses existente.

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