* Artigo de Luis Correia, publicado hoje no Jornal A Tarde.
Espantoso o volume do debate atual sobre o tema “telemedicina”. Mais espantosa é a escassez crônica de debate a respeito da mais importante tecnologia médica: o pensamento.
Pouco se discute o quanto adequada é a utilização da cognição médica. Vieses cognitivos são limitações intrínsecas da mente humana, que se refletem também no pensamento médico. Menciono neste texto dois vieses que se entrelaçam com a estranha intensidade da discussão sobre telemedicina.
O viés anti-econômico, demostrado pela ciência da economia comportamental: a mente tende a superestimar o benefício de nossas ações e subestimar o custo. A mente médica, humana que é, sofre do mesmo. Às vezes, condutas de alto custo pessoal são propostas em troca de benefícios modestos e duvidosos. Não é por mal, é porque somos humanos e carreamos esses vieses cognitivos de origem evolutiva, biológica. A mente anti-econômica está no cerne do uso inapropriado de condutas médicas.
Segundo, o vies da “troca da pele no jogo”. Sem sentir, decidimos mais por nós do que pelo paciente. Uma das razões da dificuldade cognitiva é a assimetria entre custo e benefício. Quando ocorre um benefício clínico, este também se reflete em benefício ao médico, que se sente realizado em sua profissão, passa a ser mais reconhecido por pacientes e por pares. Mas o custo da conduta predomina na “pele” do paciente. Quando se trata do “preço” a pagar, a nossa “pele” não está no jogo na mesma intensidade da “pele” do paciente.
Esses vieses não ocorrem por má intenção. Mas podemos ser melhor treinados a utilizar nossa tecnologia de pensamento.
A válida discussão sobre benefício versus malefício da telemedicina deveria estar presente em qualquer tecnologia (novos exames, novos tratamentos, novos processos). O que surpreende é um surgimento repentino da mente econômica para o tema telemedicina, não ocorrendo com outros assuntos mais críticos.
O motivo pode estar na “troca da pele no jogo”. Neste contexto, quando se fala em “uberização” da medicina pela telemedicina, estamos mais preocupados com os pacientes ou com nós médicos? Afinal, é taxista que não gosta de Uber. Suspeito que o segundo viés prevaleceu (troca da pele), corrigindo paradoxalmente o primeiro viés (anti-econômico).
Caberia a sugestão de discutir um pouco menos “telemedicina” e mais “medicina”: conflitos de interesse, práticas pseudo-científicas; superutilização de exames e intervenções; subutilização de condutas benéficas.
Exato. Acredito também que está na hora da reinserção da filosofia na medicina. Ela já fez parte na Grécia antiga, com pouquíssimas drogas e procedimentos precários, o cuidado de si era a principal recomendação feita pelos médicos, que consistia em dieta, sono, exercícios físicos e o aprofundamento nos conhecimento estéticos e éticos. O próprio Platão, tem este apelido ligado a grandes homoplatas pela prática de lutas greco-romanas entre uma pensada e outra. Na prática é adicionar saberes à medicina do estilo de vida.
ResponderExcluirPerfeito!
ResponderExcluirGarantir tal transparência seria essencial para aproximar médicos e pacientes. Como sempre, comentários de extrema sensatez. Abraços, Luis!
ResponderExcluirCaro Luis,
ResponderExcluirEntre os colegas daqui (é claro) dividiram-se entre os "pró" e os "contra".
- "os uns" dizem que os médicos já estão mesmo praticando algum tipo de "telemedicina muito próxima (i.e., com muito pouco contacto físico);
- Já "os outros" afirmam que a Medicina sem contacto e empatia é muito difícil ou impossível.
Defendem alguns que a telemedicina se adequaria a regiões remotas, ou de difícil acesso, onde não há possibilidade de um médico especializado e este pode ter o seu "surrogate" em algum profissional que fique próximo ao paciente, e que possa agir na ocasião de algum imprevistos; Uns casos cirúrgicos de exames radiológicos, outros assim.
Já outros ajuntam que certos atendimentos poderia ser realizados, cômodamente, na casa do próprio paciente (ou onde este estiver), utilizando-se de envio de imagem e som; Isso serviria, efetivamente, para esvaziar as conhecidas salas de emergência, sempre lotadas (de pacientes que nem sempre de emergência são); e, mais claramente, para simplificar e baratear custos de consultas.
Arriscaram mais alguns que localidades remotas não atendidas pelos "mais Médicos" poderiam ser remotamente supridas (pelos "maus médicos".
Os mais aventureiros me referiram a possibilidade de "tele-terapia" ou "tele-psiquiatria".
Eu por mim tive uma experiência elucidativa um desses dias - foi mesmo na semana passada: Ao "dar um Google" sobre uma doença rara, me vi direcionado, entre alguns outros, a um site curioso. Este me apresentou informações aparentemente válidas (pelo menos os temas que coincidiam com meu conhecimento básico coincidiam bem). Mas à medida que eu lia, surgiu de repente um "robô", parecido com estes que povoam os sies de telefonia brasileira. O tal se pôs a me fazer perguntas (em inglês), ativamente. Por curiosidade, segui uns quatro passos de seu algoritmo, até que me cansei: Entre fotos de termômetros, rostos de pessoas com icterícia, e até fotos microscópicas de exames de biópsia, ele se propunha a "me diagnosticar". Aí, parei.
Com isso quero dizer que algumas questões ainda não respondemos bem sobre o tema:
1. Aonde fica a ciência?
2. Quem (com que conflitos de interesse) elabora tais algoritmos? Opera os dispositivos? atualiza as informações?
3. Quais são as limitações éticas (onde vão parar as informações, o que é feito por elas, e se o algoritmo detectar algum surto ou condição de utilidade pública?)
4. o que fazer dos médicos? Vão virar operadores de computador? Continuar se movimentar para longe do paciente, e pra mais perto dos exames complementares?
Gosto muito do auxílio da tecnologia. Mas acho que em alguns casos o nome disso é "falta de humanidade". O homem precisa se voltar para si mesmo, do "ter humano" para retornar a "ser humano". Aí, poderemos encarar essas questões com mais serenidade e sabedoria.
Não se pode perder a essência da medicina:compaixão e acolhimento!
ResponderExcluir"Caberia a sugestão de discutir um pouco menos “telemedicina” e mais “medicina”: conflitos de interesse, práticas pseudo-científicas; superutilização de exames e intervenções; subutilização de condutas benéficas.", correto, mas acho que faltou o principal: a formação médica. Lá no começo. Qualquer médico hoje em dia que lida com residentes recém egressos da faculdade, ou que trabalha em rede com médicos que não passaram por residência (ou passaram por residências/especializações duvidosas...), como é o meu caso, percebe claramente grandes limitações técnicas, de coisas que deveriam ser sólidas em qualquer graduação em medicina. É muito preocupante.
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