sexta-feira, 2 de abril de 2021

O Conceito de "Excesso de Mortalidade": Brasil e COVID-19

 


Durante esta pandemia, parecem intermináveis os debates polarizados que comparam mortalidade por COVID-19 entre diferentes países, gerando inferências causais entre formas de condução da pandemia e a dimensão da tragédia. 


Do ponto de vista humanitário, para caracterizar uma tragédia, o número de mortes absolutas é a suficiente: as 259 mortes do desastre de Brumadinho não precisaram se tornam índices. Uma vida não tem preço e a simples soma das vidas perdidas é suficiente. 


Mas para fazer inferências causais, comparar países, precisamos ajustar para fatores de confusão. O mais óbvio fator de confusão na análise absoluta de mortes é o tamanho da população. Assim, muitos evoluem seus argumentos para a colocação da população no papel de denominador de uma fração, criando taxa de mortalidade por COVID-19.


Mas não basta ajustar para o tamanho da população, pois países são diferentes em uma infinidade de características. Quando falamos de pessoas, podemos selecionar milhares e randomizar, anulando diferenças entre amostras. Mas é impossível randomizar amostras de países. 


Como solucionar esta questão? Antes de comparar os países entre si, comparamos os países com eles mesmos, criando o "excesso de mortalidade". A comparação do número de mortes antes versus durante a pandemia ajusta para as características intrínsecas de cada país. 


Excesso de mortalidade é o crescimento do número de mortes durante a pandemia versus a média dos últimos anos antes da pandemia. Observem que esta técnica não é baseada nas notificações de causas da morte, simplesmente se considera que todo excedente se refere à pandemia, pois esta é a única grande diferença entre este ano e anos passados recentes.  


Esse excesso pode ser expresso de forma absoluta ou relativa (percentual de aumento). O excesso relativo é aumento percentual do número de mortes. As medidas relativas são as que expressão conceitos. Assim, excesso de mortalidade relativa é calculado por:


Mortes 2020-2021 - Média Anual das Mortes 2015-2019 / Média Anual das Mortes 2015-2019 x 100


Este excesso de mortes relativa é o que deve ser comparados entre os países. 


Excesso de mortalidade associada a pandemia tem duas virtudes. 


Primeiro, o ajuste para fatores de confusão, pois um país é comparado a ele mesmo, em dois momentos, relativamente próximos (2020 versus 2015-2019) que diferem apenas na existência de uma pandemia. O resto todo é parecido. 


Mas há uma segunda virtude. Excesso de mortes é uma medida sensível ao paradigma populacional, aquele dos fenômenos interconectados, sistêmicos. Podemos suspeitar que a pandemia causa mortes por outras causas que não COVID-19, por exemplo mortes cardiovasculares ou por câncer decorrentes do colapso do sistema de saúde. Ou imaginarmos que impacto econômico da pandemia pode aumentar mortalidade geral. Por outro lado, podemos pensar em redução de mortes por acidentes de carro. Ou, como alguns tem feito, argumentar que boa partes das mortes são de pessoas que já morreriam, o vírus foi apenas um gatilho para uma morte que já estava programada. 


Diferente da definição de cada morte por atestado médico, o excesso de mortes computa todos esses fenômenos de forma sistêmica, oferecendo um resultado final. Todas as causas de aumento ou redução de mortes decorrente direta ou indiretamente da pandemia são computadas, independente da notificação da causa específica. 


Portanto, esta é chave epidemiológica para comparar o desempenho de diferentes países no controle da pandemia. 


O site do CONASS (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde dos Estados) apresenta esta estatística de forma bem clara. Observem no gráfico do início desta postagem o número de mortes de 2020 durante a pandemia versus o número de mortes esperadas se não houvesse pandemia (média de 2015-2019). 


O excesso absoluto de mortes do Brasil em 2020 foi de 275.587, correspondendo a um crescimento relativo de 22%. 


Esse excesso brasileiro foi maior na região sudeste (38%), comparado a 32% no nordeste, 12% no norte, 10% no centro-oeste e 9% no sul. 


Como isso se compara com outros países? 


Nos Estados Unidos, país de maior número absolutos de morte, estima-se em 2020 um excesso relativo de mortes relativos de 13%. 


A melhor ferramenta que conheço para este objetivo é o site da Universidade de Oxford. Este site respeita o momento, portanto não mostra o excesso em toda a pandemia, mas sim a cada semana da pandemia. Os três MAPAS sequenciais abaixo representam uma semana de junho de 2020, dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, comparadas a médias das mesmas semanas em 2015-2019. 


Brasil - Junho 2020: 33% de excesso, maior que à maioria dos países.

Brasil - Novembro 2020: 22% de excesso, menor que Estados Unidos, Rússia e alguns países da Europa

Brasil - Fevereiro 2021: Brasil sobe para 38% de excesso de mortes, à frente da maioria dos países que apresentam a estatística para esse período. 







Estes dados indicam que o Brasil é um dos países de maior excesso de mortalidade e que estamos em nosso pior momento. Por outro lado, o Brasil nunca ultrapassou a marca de 50% (cor vermelha), fenômeno que já ocorreu com o Rússia, Itália, leste europeu, México, Colômbia, Equador e Chile. 


É fato que a nação não tem uma liderança a altura do problema que estamos vivendo, o que torna lamentável a condução sanitária desta epidemia. Como agravante, parte da sociedade continua a contestar medidas de distanciamento social, independente do agravamento progressivo da epidemia, enquanto alguns médicos continuam a promover um inusitado e interminável culto a drogas fantasiosas. 


Por outro lado, devemos ser científicos, e reconhecer nossa incerteza. Na falta do contrafactual (um Brasil melhor para compararmos com o atual), não sabemos ao certo o quanto desse excesso de 22% de mortalidade poderia ter sido evitado. Só podemos imaginar ... 


Mas estes números são suficientes para concluírmos que estamos em uma situação extrema, e para situações extremas não podemos usar de atitudes ou posicionamentos medíocres. 


Atualização: 13 dias depois de escrito este post, o site do Oxford é atualizado até a primeira semana de abril. Nesta semana o Brasil registrou 83% de excesso de mortalidade. 




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4 comentários:

  1. Katiuscia Cardoso Rodrigues6 de abril de 2021 às 08:12

    Excelente texto, compartilhando e incorporando às análises locais! Já tinha calculado a de meu município de forma instintiva, agora vou aperfeiçoar.

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  2. Só mais um comentário: esses números ainda não são comparáveis entre países, pois a diferença das populações não os tornam comparáveis (ex: perfil demográfico, pirâmide da idade - um país com população mais velha irá ter maior impacto pelo covid naturalmente). Então, ainda deveria ser aplicado um método de padronização para conclusões entre países.

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  3. De nada valerá o apego ao rigor técnico científico se o viés político tomar conta da avaliação em casos como este, que, de fato, trazem as emoções a flor da pele.

    Muitos pontos dos artigos sobre COVID-19 presentes neste blog se mostraram errôneos, ou, no mínimo, imprecisos. Por seu compromisso com uma visão pragmática é importante que seja feito um artigo com uma análise completa das medidas que foram eficazes e as que se demonstraram ineficientes durante a pandemia.

    Um exemplo de ação que já se provou ineficaz foi o próprio distanciamento social, que no presente artigo é defendido com veemência.

    Aguardo ansioso pelo artigo realmente pragmático sobre a pandemia e as ações usadas no seu combate.

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