sábado, 13 de agosto de 2022

"Defesa de Ciência" não é o mesmo que "Defesa de Saúde Pública"



Já fui defensor da ciência, mas ao longo dos anos fui mudando para defensor da saúde pública e da educação médica. Acho que me tornei defensor da razão, um processo que não é óbvio, que foge das convicções e valoriza a incerteza. Um processo que entende que o embasamento em evidência é uma condição necessária, mas insuficiente para a tomada de decisão. 

Mas até ao defender ciência, percebi que essa defesa pode ganhar um formato anticientífico ao assumir uma postura convicta. Convicção não combina com um pensamento profundo.  Convicção quase garante superficialidade. Talvez essa deva ser a primeira mensagem da educação científica.

Também passei a evitar a palavra “defesa”, pois para mim esta palavra remete a conflito, confronto, luta, combate, briga. Considero que conflitos são necessários em certas dimensões, mas neste campo de cunho mais intelectual, penso não ser a melhor forma. Afinal, não impomos razão.

O combate pode ser excitante, nos empoderamos com linguagem técnica, e quando escolhemos tópicos caricaturais (a terra não é plana) ganhamos a batalha de forma eloquente. Mas estamos melhorando a saúde pública com esta abordagem? Nossos interlocutores estão sendo sensibilizados por nossa fala, ou estamos falando apenas para nossa tribo?

O comunicador precisa reconhecer lugar de fala, descolar temporariamente de sua essência, e ser capaz de emoldurar a mensagem na perspectiva do outro. Afinal, se queremos promover "mudança", conhecimento não é suficiente. O que promove mudança é motivação e esta depende de percepções (diferente de conhecimento), relações interpessoais, fenômenos comunitários e ecológicos. 


Cultura científica é uma proposta de pensamento sofisticado, não a de 'chover no molhado' ou 'chutar gato morto'. O valor da ciência contemporânea não é demonstrar o óbvio (a terra é redonda), é detectar nuances. Nuances médicas são feitas de coisas que parecem ser verdade, mas não são, outras que parecem ser falsas, mas são verdades. Outras que são verdades em uma realidade (espaço, tempo ou pessoa) e falsas em outras circunstâncias. As nuances da verdadeira acurácia de um teste que se propõe retratar a realidade, da eficácia marginal de um tratamento, do conhecimento sobre mediadores de efeitos. Nesta a ciência faz diferença.


E assuntos como estes podem ser colocados de formas fácil, simples, com exemplos interessantes, sem o olhar de cima para baixo. O primeiro passo é o reconhecimento da incerteza. Depois fica fácil se combinarmos criatividade e afetividade. 


Defesa da ciência sem contexto perde propósito social, restando o propósito individual do defensor. Mas ao assumir o contexto da saúde, devemos reconhecer sua complexidade. 

Enquanto a epidemiologia da inferência causal remete ao biológico, medicina amplia para o biopsicossocial, e saúde pública assume um caráter ainda mais complexo ao lidar com processos sistêmicos. Nesta sequência hierárquica, a evidência científica é essencialmente importada para um sistema complexo.


A “defesa” da saúde pública não deve ser limitada à defesa de condutas médicas com arrazoados biológicos, mas passa pelo entendimento de decisões cujo beneficio pode ser mediado por determinantes sociais, culturais e comportamentais de saúde. Defesa da saúde pública é entender que há diferentes tipos de desfechos de eficácia, simultâneos ou futuros, que efetividade não depende apenas do biológico, que pensamento econômico diz respeito a “valor”, não exatamente a custo (pensamento financeiro), que o sistêmico não é o mesmo que a soma das partes.


Parafraseando uma amiga poeta, cardiologista nas horas vagas, "medicina [e saúde pública] clama por mais poesia. E desse encontro brota o verdadeiro saber, destituído de certezas." Acrescento, poesia baseada em evidências. 


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------


Link para Curso Online de MBE, Podcast, Canal do YouTube.


10 comentários:

  1. Pensar uma medicinal mais abrangente , focando na saude para todos! Parabéns pela lucidez!

    ResponderExcluir
  2. Essa foi a medicina que aprendi.
    Primeiro o ser ( o todo) depois o tratamento mais adequado. Sempre fui contraa medicina baseada em evidências, isso é o emburrecinento, falta de autonomia. Vimos na prática em relação a covid.
    Parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo que o conceito por vezes é colocado de forma inadequada. Por isso é importante definir do que se trata medicina baseada em evidências ( = medicina). http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2021/01/medicina-baseada-em-evidencias-nao-pode.html

      Excluir
    2. Excelente, professor!

      Excluir
    3. Luis, isso aqui é emblemático. Aliás, é potencialmente desemperador. Porque faz pensar seriamente sobre a possibilidade da 'mente maniqueísta' ser uma "programação original", havendo potencial impermeabilidade em quem justamente precisa minimizá-la mais. Como alguém foi ser capaz de entender o que entenderam acima do teu texto? Não reconhecemos também boas soluções para trabalhar o fenômeno. Tudo isto junto talvez inverta o jogo. Talvez o tribalismo, que eu tanto critiquei durante quase toda pandemia, não seja exatamente uma estratégia (e equivocada). Talvez seja uma condição humana. Talvez "solução" passe por melhor organização de grupos com posicionamentos "tribais" - forma, quem sabe, de definir melhor escopos de "projetos", e mais fácil atingir objetivos. Aí é torcer para o surgimento de ferramentas que favorecem isso de forma mais inteligente do que o tribalismo de hoje funciona...

      Excluir
    4. Talvez haja então espaço para todo mundo: os agressivos nas mensagens (que tento me incomodaram na pandemia), os amenos, etc. Até o grupo dos "confusos", dos que gostam de incerteza e de nuances, restaria como mais um grupo, apenas. E importante passaria a ser o estabelecimento de mecanismos de convivência, cada um promovendo algum valor, sempre em pequena escala pelas limitações próprias da realidade. Quem sabe buscando alguns "saltos" ao trabalharem zonas de convergência, se conseguirem... Se conseguirmos....

      Excluir

  3. Gasta-se tanta energia intelectual $ monetária em busca de certezas no âmbito de uma suposta ciência dissociada do essencial: a comunidade de homens & mulheres que não tem plano de saúde privada e carece de um melhor atendimento público ou complementar de saúde. Parabéns pela sua visão profissional & humanista!

    ResponderExcluir
  4. Obrigado pelo texto, Dr. Luis. Quando adentrei no mundo da MBE achei que encontraria ali todas as respostas para uma medicina com mais certeza e melhores resultados. Hoje, percebo que ela ainda é a melhor ferramenta que temos para navegar em meio às incertezas. Contudo, por melhor que seja, um estudo nunca conseguirá simular a complexidade da vida real, com múltiplas variáveis contribuindo para o mesmo desfecho. É um desafio a aplicabilidade dos conceitos científicos na vida real.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Rafael, obrigado pela reflexão. Isso que você fala é inerente à ciência. Um estudo experimental é a melhor forma de retratar a "vida real" do ponto de vista dos conceitos de causalidade. Conceitos bem estudados se reproduzem no mundo real. Mas o desfecho final não é conceitual, é o resultado de vários vetores. Portanto o desfecho é não determinístico, daí surge incerteza. Incerteza não é exatamente um problema, assim é a natureza. O erro está em não fazer uso da incerteza no processo de decisão.

      Excluir
  5. Rafael Berlezi Machado24 de janeiro de 2023 às 22:26

    Não entendi exatamente ao que o senhor se refere quando fala em "Saúde Pública", queria entender um pouco mais. Te referes ao senso comum que usa o termo para trazer a ideia de ingerência estatal na saúde; ou, de fato, te referes à saúde pública como a saúde do povo, dessa forma abrangente, que muitas vezes nos obriga a abandonar a evidência para termos eficácia nas melhorias propostas?

    Vejo que a interferência de entes políticos na economia da saúde tem gerado muitas distorções prejudiciais ao nosso povo, e torço o nariz quando vejo as pessoas se referindo a "saúde pública" como sinônimo de intervenção governamental na gerência do setor. Enquanto a ideia do "primum non nocere" norteia nosso raciocínio clínico, e nos recomenda não agir quando não temos certeza das condutas, vejo que a interferência política na saúde tem o princípio de "primeiro intervir", depois colher evidências. Não é a toa que vivemos uma eterna crise na saúde pública de fato, quando optamos por fazê-la sinônimo de saúde estatal.

    Grande abraço!

    ResponderExcluir