quarta-feira, 14 de março de 2012

Análise Crítica da Relevância Terapêutica


Da Série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia - Segunda Postagem

Na primeira postagem desta série discutimos como avaliar a veracidade da informação científica sobre terapia. Uma vez definido um grau aceitável de veracidade, devemos instituir o tratamento? Não exatamente, pois para que se justifique um tratamento, o tipo de informação trazido pelo trabalho (mesmo que verdadeira) precisa ser relevante.

A relevância deve ser analisada de duas formas. Primeiro, aquela informação verdadeira realmente garante benefício clínico ao paciente? Segundo, o benefício clínico trazido é de magnitude suficiente que justifique os esforços (custo, risco, às vezes desconforto) para se instituir a terapia?

A primeira questão diz respeito ao tipo de desfecho analisado. E a segunda questão ao famoso número necessário a tratar (NNT), que melhor descreve a magnitude de um benefício.

Inicialmente devemos analisar qual é o tipo de desfecho que foi definido como primário. E aí entra a importante distinção entre desfecho clínico e desfecho substituto (surrogate, em inglês).

Desfecho clínico é o verdadeiro impacto da doença na vida do paciente. É o que paciente sente, é morbidade (qualidade de vida) ou mortalidade (tempo de sobrevida). Teoricamente, morte é o evento clínico mais importante na hierarquia de relevância. Abaixo de morte, estão AVC, infarto, angina, internamento por ICC, qualidade da visão em paciente com catarata, fratura em paciente com osteoporose. Para que uma evidência sobre terapia seja suficiente para recomendar a utilização da mesma, se faz necessário que o desfecho avaliado seja de caráter clínico.

Desfechos substitutos são variáveis laboratoriais ou fisiológicas que são utilizadas em estudos que não têm poder estatístico para avaliar desfechos clínicos. Por exemplo, no tratamento anti-hipertensivo, redução da pressão arterial é um desfecho substituto da redução de AVC (desfecho clínico). Melhora da densidade óssea na densitometria é um desfecho substituto, enquanto redução da incidência de fratura é um desfecho clínico. Desfecho substituto é apenas uma informação obtida em um exame complementar, a qual o paciente não sente. Ao fazer um Doppler de carótidas, podemos demonstrar aterosclerose. Se o paciente for assintomático, essa aterosclerose observada é um desfecho substituo de um futuro AVC que poderá acontecer. Mas não há garantia alguma que irá acontecer. Da mesma forma, não há garantia de que um tratamento que melhore esta aterosclerose reduza a probabilidade de AVC.

Como desfechos substitutos são em geral variáveis numéricas, se consegue poder estatístico para detectar mudança destes desfechos mesmo em estudos de porte modesto. Isso justifica a utilização de estudos com desfechos substitutos antes dos ensaios de desfechos clínicos.

Conceitualmente, espera-se que a influência do tratamento no desfecho substituto se reflita em benefício clínico. O problema é que a história da ciência médica está repleta de situações nas quais um aparente benefício em desfecho substituto não causa benefício clínico e às vezes causa até malefício: vernarinona é um inotrópico positivo que melhora fração de ejeção (desfecho substituto), mas aumenta mortalidade; flecainide é um anti-arrítmico que reduz extrassístoles (desfecho substituto), mas aumenta mortalidade; torcetrapib aumenta em 70% o HDL-colesterol (desfecho substituto), mas aumenta mortalidade; doxazozin, um anti-hipertensivo testado no estudo ALLHAT, aumentou eventos cardiovasculares; rosiglitazona reduz glicemia, porém há evidências de que aumenta eventos cardiovasculares; vitaminas podem ter demonstrado efeito anti-oxidante em partículas de LDL (desfecho substituto), mas não alteram risco de infarto. Isto ocorre porque os sistemas biológicos são do tipo complexo, o que torna impossível prever o verdadeiro efeito de uma intervenção, baseado na lógica. Por mais lógico que possa ser.

Há ainda alguns desfechos que podem ser interpretados como clínicos no que dizem respeito a qualidade de vida, porém são substitutos em relação à eventos que levam a risco de vida. Por exemplo, redução de peso é um desfecho clínico, pois melhora qualidade de vida em obesos. Por outro lado, a redução de peso não é garantia de redução das conseqüências clínicas da obesidade, tal como eventos cardiovasculares. De fato, sibutramina reduz peso (embora pouco – apenas 5 Kg em ensaios clínicos randomizados), porém aumenta risco de eventos cardiovasculares.

A indústria farmacêutica costuma tentar (e consegue) convencer médicos da utilização de substâncias de benefício clínico não comprovado, utilizando apenas argumentos de desfechos substitutos. Isso é muito com anti-hipertensivos, como o tal do Aliskireno, droga já comentada neste Blog. Observem:

Diuréticos, inibidores da ECA e antagonistas dos canais de cálcio possuem comprovação científica de que sua utilização promove redução do risco de eventos cardiovasculares, tipo infarto, AVC, óbito. Estas classes de drogas possuem efeito anti-AVC, anti-infarto, anti-morte. Quanto ao Aliskireno, por enquanto esta é apenas uma droga anti-hipertensiva. Mas estes são desfechos substitutos, sem garantia de benefício clínico. Portanto, o Aliskireno não pode ser usado como alternativa a drogas que possuem comprovação de proteção quanto a desfechos clínicos. Não podem ser colocadas como drogas de primeira linha, tal como sugerido na atual Diretriz de Hipertensão da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Para complicar, no final do ano passado o estudo ALTITUDE foi interrompido (ainda não publicado). Este era um ensaio clínico randomizado para Aliskireno ou placebo, em hipertensos diabéticos que já vinham em uso de IECA ou BRA. Houve aumento na incidência de AVC com o Aliskireno, o que motivou à interrupção do estudo. Vejam só, a droga reduz pressão (desfecho substituto), porém pode ser que aumente AVC (desfecho clínico). É o paradoxo dos desfechos, um fenômeno frequente.

Portanto, um estudo de desfecho substituto tem relevância limitada à geração da hipótese de benefício, servindo de degrau para a realização de ensaios cujos desfechos sejam clínicos. Estes sim tem o poder de modificar nossa conduta.

Mas os desfechos clínicos também devem ser analisados criticamente quanto a sua importância. Primeiro quanto a sua hierarquia. Eventos cardiovasculares, por exemplo, temos em ordem decrescente de valor: morte, AVC, infarto, internamento por angina...

Mas não é só isso. Precisamos avaliar a definição do desfecho. Vejamos o caso do infarto. Há estudos cuja definição de infarto garante que o evento é clinicamente importante (dor precordial, corrente de lesão do eletrocardiograma, ...), enquanto há estudos cuja definição de infarto se aproxima mais de um desfecho substituto: por exemplo, elevação de marcador de necrose após angioplastia. E AVC: temos variações de eventos transitórios até eventos com alto grau de seqüela.  Tudo isso deve ser considerado.

Portanto, em primeiro lugar, precisamos avaliar a qualidade do desfecho. Em segundo lugar, precisamos fazer uma avaliação quantitativa do grau de redução do desfecho. Esse é o assunto da próxima postagem: a magia do NNT.

4 comentários:

  1. Professor, vez por outra tenho algumas discussões com alguns colegas acerca da transposição de resultados de estudos americanos ou europeus, em centros de referência, para a realidade do SUS. Na nossa realidade, os pacientes não terão o mesmo grau de atenção e acesso a rede de saúde dos ensaios clínicos controlados. Será que tratamentos que, em centros de referência, tiveram "apenas" impacto em reinternação ou angina, teriam impacto em mortalidade no Brasil? Será que estes deveriam merecer um nível de recomendação "maior"?
    Davi J. F. Solla

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  2. Davi, esta é a análise de Aplicabilidade, que vem depois da análise de relevância. Chegaremos lá.

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  3. Excelente texto! estou estudando a disciplina de MBE na faculdade de medicina, aqui em Recife, eo sr. é uma de nossas maiores referências.
    Marcelo

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  4. Parabéns pelas aulas, são excelentes

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