Em um dos mais hábeis movimentos de sequestro da medicina baseada em evidências, o Entresto é aprovado pelo SUS para utilização em pacientes com insuficiência cardíaca. O sequestro de um conceito ocorre quando este é transformado em sua própria caricatura, a ponto de romper a barreira da racionalidade, dando suporte a condutas paradoxais ao próprio conceito original.
Medicina baseada em evidências propõe que conceitos científicos confiáveis sejam utilizados no processo de racionalidade que define de condutas médicas individuais. No processo de “sequestro” a evidência domina a racionalidade. A recomendação torna-se refém da evidência. E ao dominar o processo, a evidência deixa de ser questionada quanto a sua confiabilidade.
Explicaremos nesta postagem como se deu o sequestro no caso do Entresto, nome comercial que contém o Sacubitril. A molécula do Sacubitril inibe a enzima neprilisina, que é responsável pela degradação de boas moléculas, como o peptídeo natriurético e a bradicinina. Desta forma, ao inibir a neprilisina, o sacubritil aumenta a concentração destas boas moléculas, que têm ação vasodilatadora e natriurética.
Portanto, existe plausibilidade biológica para benefício, cabendo avaliar se esta plausibilidade se traduz em eficácia clínica. Assim surgiu o ensaio clínico randomizado PARADIGM-HF, publicado em 2014 no New England Journal of Medicine.
PARADIGM-HF, a engenhosa assimetria do grupo controle
Após o sucesso da demonstração de eficácia dos inibidores da angiotensina, antagonistas da aldosterona e dos betabloqueadores em insuficiência cardíaca, na última década moléculas com diferentes efeitos neurohumorais falharam em demonstrar eficácia, gerando sucessivos ensaios clínicos negativos. Em meio ao vazio da percepção de que teríamos alcançado o “teto” farmacológico na insuficiência cardíaca, parece ter surgido uma ideia na mente dos “pesquisadores”: inventar um novo método “científico”.
O método científico original, proposto por Ronald Fisher, consiste de uma inovação experimental: a existência de um grupo controle. Este método foi importado para a medicina pelo estatístico Bradford Hill. Em seu artigo seminal no Lancet, Hill escreveu:
“the essence of the method lies in the determination that we are really comparing like with like. We must endeavor to equalize the groups we compare in every possibly influential respect, except the one factor at issue.”
“the essence of the method lies in the determination that we are really comparing like with like. We must endeavor to equalize the groups we compare in every possibly influential respect, except the one factor at issue.”
Seguindo essa lógica, ensaios clínicos comparam nova droga versus placebo, mediante um background de tratamento igual em grupos idênticos. Isto permite o teste da eficácia intrínseca da nova molécula, pois nada além dela é diferente entre os dois grupos.
O desenho do estudo PARADIGM-HF viola a própria definição de grupo controle, como se criasse um “novo” método científico. Neste método, surge o advento da dupla molécula: a nova droga seria combinada a uma molécula comprovadamente eficaz, resultando em um nome que conota engenhosidade farmacológica. Nasce o LCZ696, a fusão do sacubitril com um vasodilatador de eficácia comprovada, em dose máxima (valsartana 320 mg ao dia). Neste novo método, ao invés de testar a nova molécula, estamos testando a combinação de uma molécula comprovadamente eficaz com uma molécula de benefício desconhecido. E agora vem a maior engenhosidade: o grupo controle consistia de um outro vasodilatador, enalapril em dose moderada.
Precisamos perceber a diferença entre o que foi feito e o método científico tradicional: não foi comparado sacubitril versus placebo, sendo o resto do tratamento igual entre os grupos, como sugeria Bradford Hill (like with like). Na verdade, foi comparado sacubitril versus placebo, sendo o tratamento adjuvante melhor no grupo sacubitril. E para garantir que o adjuvante fosse de fato melhor, a molécula do valsartana dose máxima foi colada no Sacubitril (LCZ 696) e a dose do enalapril no grupo controle foi congelada em 20 mg ao dia.
Sofismas foram utilizados pelos pesquisadores para justificar a “inovação” de promover esta heterogeneidade entre os grupos. A primeira justificativa era que sacubitril não poderia ser usado como inibidor da ECA (angioedema). Embora isso tenha convencido parte da tribo, não é uma justificativa para tamanha assimetria, pois isso poderia ser resolvido se o protocolo de ambos os grupos contra-indicasse o uso de inibidor da ECA, priorizando os bloqueadores da angiotensina. Poder-se-ia fixar sacubitril-valsartana versus placebo-valsartana.
Porque não fizeram isso e preferiram a ideia esdrúxula de fixar sacubitril-valsartana dose máxima versus enalapril dose metade?
Outro sofisma foi utilizado para justificar porque fixaram em metade da dose de enalapril: “pois esta foi a dose média dos estudos com enalapril”. Ora, dose média resulta da liberdade do médico de ajustar de acordo com a tolerância do paciente. Dose média traz consigo a ideal customização de dose em cada paciente individual. Dose média é muito diferente de dose fixa! Além disso, o teste de hipótese não necessita que sejam copiadas doses de estudos prévios, o que é necessário é a homogeneidade de tratamento entre os grupos.
A violação do método científico do caso do PARADIGM-HF é tão grosseira que não consta de nenhum checklist de avaliação de risco de viés em ensaio clínico. Por este motivo, se aplicarmos qualquer ferramenta de critical appraisal ao estudo PARADIGM-HF, este viés não será detectado. Assim, foi criado um estudo de pseudo baixo risco de viés.
Na verdade, o PARADIGM-HF não testou diretamente a eficácia do sacubitril.
A Comoção
Após sucessivos adventos redutores de morbimortalidade na insuficiência cardíaca, como vasodilatação e bloqueio do sistema angiotensina-aldosterona nas décadas de 80-90, bloqueadores beta-adrenérgicos na década de 90, ressincronizadores e desfibriladores implantáveis na década de 2000, cardiologistas expressavam inquietude e frustração pela ausência de novidade nos últimos anos. Este pano de fundo que chamo de “comoção” nos deixa mais predispostos a “acreditar” em novidades.
Melhor ainda se a comoção também for provocada nos pacientes. O melhor cenário é um sinergismo entre o entusiasmo do médico em prescrever uma medicação e o desejo do paciente em receber aquela prescrição. Portanto, havia a necessidade de convencer pacientes da importância de lutar com novas armas para insuficiência cardíaca.
De repente, desperta-se um interesse da Novartis, fabricante do Entresto, em “educar” o público quanto ao problema da insuficiência cardíaca. Folders são preparados e colocados nas salas de espera dos consultórios e ambulatórios, conscientizando o público da gravidade do problema. Utiliza-se a estratégia de provocar o medo, sentimento que torna qualquer tipo de solução desejada.
Uma caricatura da estratégia foi o evento denominado Coração Fraco, promovido este ano pela Folha de São Paulo, financiado pela Novartis, aberto ao público geral que queira se inteirar sobre o problema. Naquele evento, insuficiência cardíaca foi caracterizada como uma "epidemia" por alguns dos especialistas. Estranho usar a palavra epidemia, que significa "doença de caráter transitório, que ataca simultaneamente grande número de indivíduos em uma determinada localidade". Soa sensacionalismo.
De fato, insuficiência cardíaca é um problema sério, mas se formos analisar epidemiologicamente, a morbimortalidade da insuficiência cardíaca vem diminuindo ao longo das últimas décadas no Brasil e no mundo. Fica a pergunta: por que justamente agora despertar para esse problema? Não parece inusitada a coincidência temporal com a consulta pública do Entresto no SUS? Ou não é coincidência?
Vale conferir artigo da jornalista Cláudia Colluci na Folha, intitulado "Mortalidade por insuficiência cardíaca cai na última década", onde ela traz a discussão quanto à "epidemia", ouvindo opiniões divergentes entre cardiologistas.
O Parecer
CONITEC é o orgão técnico que avalia as solicitações de padronizações de medicamentos pelo SUS. A Novartis solicitou a aprovação do Entresto para o SUS e o CONITEC gerou um parecer. Neste parecer, o CONITEC sugere a não implementação do Entresto.
Mas o CONITEC baseia a recomendação contrária no argumento de custo ao sistema de saúde, ao passo em que reconhece a eficácia da droga "demonstrada" pelo PARADIGM-HF. Deixar de oferecer algo muito bom por falta de dinheiro é diferente do que deixar de oferecer algo de benefício duvidoso.
A Consulta Pública
Após a rejeição técnica da incorporação do Entresto pelo SUS, nada como uma consulta pública que democratize a discussão. A consulta ao público está no protocolo da CONITEC. Coloco aqui o link das manifestações na consulta pública. Em resumo, de 185 manifestações técnico-científicas, em que predominam profissionais de saúde, não houve registro de opinião a favor do relatório da CONITEC, que rejeitava a aprovação. Quase todas opiniões discordavam da CONITEC e uma minoria era neutra. Mas o bom mesmo são as 1.956 contribuições sobre "experiência ou opinião" sobre a incorporação. Nestes predominam opinião de pacientes. Houve 1.956 opiniões sobre a recomendação preliminar da CONITEC, sendo 1.797 contrárias e 159 a favor. Somente 1.303 opiniões foram consideradas por descreveram os motivos pela discordância em relação à recomendação preliminar da CONITEC.
Será que democracia se aplica a incorporação de medicamentos?
A Grande Virada
Após a consulta pública, o parecer contrário do CONITEC transforma-se em um parecer a favor.
Aparentemente, a interação entre um parecer técnico que (embora sugira não incorporação) reconhece sua eficácia e uma manifestação democrática a favor da droga resultou na decisão pela incorporação do Entresto pelo SUS.
Para amenizar, essa decisão trouxe consigo uma pseudorracionalização: a restrição de uso em pacientes com mais de 75 anos, simulando uma decisão criteriosa.
Vale salientar que essa restrição não está embasada em uma análise correta da evidência, pois na análise de subgrupo não houve interação de idade e eficácia da droga. Um erro de interpretação, que viola o princípio da complacência. Não se considerou o conceito científico de que “interação é um fenômeno raro” e que subgrupos não devem ser analisados pela significância intragrupo, mas sim pela significância da interação. Esta restrição promove uma injustiça científica. Se for para liberar o uso para um indivíduo de 74 anos, que se libere para o de 76 anos também.
Epílogo
Assim se deu o sequestro da medicina baseada em evidências. Um paradigma que propõe evidência como o guia de conceitos é usado para promover a influência de uma pseudo-evidência na recomendação de uma nova droga. Um ensaio clínico que viola a essência do método científico (grupo controle) promove a aprovação de uma droga de alto custo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil.
O SUS que é o mais surpreendente sistema do mundo, pois consegue (de maneira insuficiente, mas elogiável) suprir universalmente mais de 200 milhões de pessoas, em um país pobre. Observem que os sistemas de saúde que são exemplos no mundo cobrem populações bem menores que as nossas, sem falar que pertencem a países ricos. Precisamos nos orgulhar do SUS, tentar preservar e incrementar sua eficiência.
Mas o que discuto aqui não diz apenas respeito ao custo monetário dessa droga. Há um custo maior, que é a transformação da medicina em uma profissão guiada por estudos de validade questionável. Uma coisa é dizer que precisamos de evidências, outra é termos evidências fabricadas e publicadas com base em conflitos de interesse.
Não podemos afirmar que Entresto não é superior ao tratamento tradicional. Mas também não podemos afirmar que seja. Simplesmente, não sabemos o suficiente.
O SUS que é o mais surpreendente sistema do mundo, pois consegue (de maneira insuficiente, mas elogiável) suprir universalmente mais de 200 milhões de pessoas, em um país pobre. Observem que os sistemas de saúde que são exemplos no mundo cobrem populações bem menores que as nossas, sem falar que pertencem a países ricos. Precisamos nos orgulhar do SUS, tentar preservar e incrementar sua eficiência.
Mas o que discuto aqui não diz apenas respeito ao custo monetário dessa droga. Há um custo maior, que é a transformação da medicina em uma profissão guiada por estudos de validade questionável. Uma coisa é dizer que precisamos de evidências, outra é termos evidências fabricadas e publicadas com base em conflitos de interesse.
Não podemos afirmar que Entresto não é superior ao tratamento tradicional. Mas também não podemos afirmar que seja. Simplesmente, não sabemos o suficiente.
O paradigma é sequestrado … os pacientes têm suas drogas trocadas com base questionável … predomina o viés do otimismo, seguido do viés de confirmação que nos faz perceber "como a droga está funcionando bem", embora isso seja imperceptível ao olho clínico (vide explicação). E assim vivemos em um mundo de fantasia, imediatista, que negligencia uma análise criteriosa das evidências como base do pensamento científico. O prejuízo da cultura pseudocientífica é maior do que o desperdício monetário.
Precisamos de inconformismo com a cultura tribal, em que prevalência de opinião é confundida com evidência. A racionalidade deve prevalecer sobre a opinião das massas que aplaudem de pé resultados positivos, transformando especialidades médicas em religiões ou torcidas organizadas.
Precisamos perceber a diferença entre invenção e inovação.
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Comentário do Prof Jairnilson Pain:
Precisamos perceber a diferença entre invenção e inovação.
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Comentário do Prof Jairnilson Pain:
Caro Luís,
Parabéns pela oportuna e bem fundamentada análise crítica sobre a atuação de um laboratório privado com relação a uma agência do governo, criada com as melhores das intenções na época, por defensores do SUS. O sequestro da MBE para atender interesses é tão repugnante quanto à consulta pública para legitimar uma decisão questionável cientificamente.
Mesmo a democracia na política não significa apenas a manifestação da opinião/vontade da maioria, mas fundamentalmente o respeito e a defesa das minorias. Certamente aquela maioria que mandou sacrificar Jesus Cristo e libertar o criminoso ao seu lado, em detrimento dos seguidores daquela liderança subversiva, hoje poderia ser questionada. Mas a consulta pública, sem informações e conhecimentos suficientes, além de manipulada, deu no que deu!
Caro Luis,
ResponderExcluirDefinitivamente, sem comentários!...
'Tá parecendo o "Samba do Arnesto", veja aqui...
https://www.letras.mus.br/adoniran-barbosa/43968/
Cito uma parte: (...)
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O ENTRESTO nos convidou pra um samba, ele mora no BIAS
Nós fumos, não encontremos ninguém
Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez, nós num vai mais
No outro dia encontremo com o ENTRESTO
Que pediu desculpas, mas nós não aceitemos
Isso não se faz, ENTRESTO, nós não se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta
Um recado assim ói: "Ói, turma, NUM DEU PRA ESPERÁ
Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância
Assinado em cruz porque não sei escrever".
ENTRESTO
(...)
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- Eu chamo pra contribuir o nosso velho amigo o "Vested Bias". E o pior é que não demora a vir o "uso off-label" em alguma indicação alheatória.
- Diriam os Germânicos: "so ist das Leben"; ou os franceses: "C'est la vie".
O autor do artigo classifica o SUS como insuficiente.... então outros adjetivos não se aplicam.
ResponderExcluirolá professor Luis , muito bom o artigo . Percebeu que no estudo Declare ( dapagliflozina) houve uma mudança no desfecho primário com o estudo em andamento?
ResponderExcluirExcelente argumentação. Precisamos proteger a medicina e o SUS da BigPharma.
ResponderExcluirParabéns professor! Como sempre uma avaliação transparente e muito bem escrita à luz da ciência. Pena que nossos grandes serviços privados e universitários anunciam os resultados do sacubitril de maneira quase milagrosa. Mas aos poucos vamos divulgando a MBE. É uma luta que venceremos devagar...
ResponderExcluirEssa é uma reflexão muito importante, professor! Hoje tive uma aula sobre tratamento da IC e pude perceber que infelizmente nem todos os profissionais/médicos enxergam e pensam dessa forma, o que acaba repercutindo no ensino dos estudantes, que são condicionados a acreditar no que lhe é dito. Apesar disso, acredito que aos poucos reflexões como essa serão mais frequentes no nosso cotidiano.
ResponderExcluirParabéns pelo excelente texto!
Sem sombra de dúvidas a classe médica se tornou refem da indústria farmacêutica
ResponderExcluirMuito boa a discussão! Parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirGostaria de acrescentar algo:
- De fato, a dose de Enalapril no CONSENSUS era de até 40 mg/ dia; porém, no SOLVD, que foi um estudo bastante maior do que o CONSENSUS, a dose máxima era 20 mg/ dia.
Parabéns mais uma vez Luis.
ResponderExcluirVemos ultimamente no nosso país um conformismo diante de muitas transgressões à ética, antes não imaginadas. Devemos compartilhar esse seu texto como uma resistência à subestimação da inteligência e senso crítico de nós cardiologistas.
Excelente!!!
ResponderExcluirExímia demonstração de racionalidade e ponderação de evidências. Exemplar!!!
ResponderExcluirExcelente Luis. Você discute com propriedade e muita clareza o tema. Estamos vivendo a medicina de mercado, que se aproveita das evidências científicas que também aos poucos vai se transformando em evidências de mercado. Discussões como esta que você nos trouxe são muito importantes. Parabens
ResponderExcluirLuiz fiquei com uma dúvida, talvez por não ser cardiologista. A dose utilizada é a da bula e a indicada na III Diretriz Brasileira de ICC. Como afirmar que há subdose?
ResponderExcluirCongratulações pela exímia exposição. A Novartis depois de dar um "tiro no pé" com alisquireno, precisava de algo para alavancar o faturamento. É como comparar abacaxi com tangerina....e lembrando que os fármacos para ICFER são dose dependentes. Os estudos são desenhados para dar certo, jamais para culminar em prejuízo.
ResponderExcluirAlém da doutrinação em sala de espera, os chamados speakers (corrompidos com crm que faturam alto para falar bem de medicamento), chegam a sugerir que se interrompam outos fármacos para poder usar o entresto.
Tempos estranhos.....