segunda-feira, 31 de maio de 2010

Copa do Mundo e Coração


Geralmente em vésperas de Copa do Mundo surgem questionamentos por parte da mídia ou de pacientes a respeito do potencial efeito maléfico das fortes emoções provocadas pelos jogos do Brasil. Na Copa passada tudo não passava de especulação. Porém hoje há uma interessante evidência científica a respeito do impacto cardiovascular dos jogos da Copa. Recentemente, fui lembrado por meu aluno Rodrigo Viana a respeito do artigo intitulado Cardiovascular Events during World Cup Soccer, publicado no New England Journal of Medicine, em 2008.

Este foi um estudo realizado durante a Copa da Alemanha, nos arredores de Munique, o qual quantificou o número de atendimentos por síndromes coronarianas agudas nos dias de jogos da Alemanha, comparando com dias em que a Alemanha não jogou e com épocas fora da Copa do Mundo. Interessante a observação de que a incidência de eventos cardiovasculares em dias de jogo da Alemanha foi em média 2.6 vezes maior quando comparado aos dias sem jogos da Alemanha. Mais interessante ainda é observar um gradiente crescente entre a incidência de eventos de acordo com a dificuldade do jogo. Por exemplo, os jogos que se associaram a maior risco foram as quartas de final (Alemanha x Argentina) e a semifinal (Alemanha x Itália), comparados aos jogos da primeira fase. Já o jogo que disputou o terceiro lugar na Copa (Alemanha x Portugal) não apresentou aumento na ocorrência de eventos cardiovasculares, pois aí não tinha mais emoção. Isto é o que se chama de relação dose-resposta (dose de estresse e resposta de eventos), que é um dos critérios de causalidade. Interessante notar que os eventos decresciam em número na medida em que as horas passavam depois do jogo, ou seja, a maior concentração de eventos ocorreu próximo ao jogo. Por tudo isso, os achados parecem consistentes.

Este é um tipo de estudo denominado ecológico, ou seja, se descreve a frequência geral de eventos, sem levar em conta o paciente individualmente. Serve para comparar dados epidemiológicos entre populações ou tendência temporal em uma mesma população, com o foi o caso deste trabalho. Claro que se fosse um estudo de coorte prospectiva, que levasse em consideração características individuais dos pacientes, os dados seriam mais consistentes. Mas para o caso aqui presente, este desenho seria impraticável, pois a probabilidade de eventos em um dado dia da vida de um paciente é ínfima, o que tornaria quase inexistente o surgimento de eventos em uma coorte com número determinado de indivíduos.

Os autores tiveram o cuidado de computar apenas os eventos que ocorreram em moradores da região estudada, para evitar o viés de aumento de eventos decorrente do aumento de pessoas na cidade, maior que em época fora da Copa.

Desta forma, podemos considerar esta evidência como provavelmente verdadeira, sendo o melhor que podemos obter em termos de dado científico. Mas além de avaliar a veracidade da informação, devemos avaliar a relevância.

Neste sentido, os autores concluíram “In view of this excess risk, particularly in men with known coronary heart disease, preventive measures are urgently needed.” Baseado nisso, poderíamos considerar que nossos pacientes cardiopatas não deveriam assistir a nenhum jogo do Brasil, ou deveriam assistir com a ambulância do SAMU na porta. Porém isso seria um exagero, provocada pela exagerada conclusão apresentada no artigo.

Baseado neste estudo, podemos inferir em termos relativos que o risco de apresentar um infarto durante o jogo do Brasil é 2-3 vezes maior do que fora do jogo. No entanto, o estudo não fez quantificação de risco absoluto. Nem poderia fazer, pois como um estudo ecológico, os autores apenas contaram quantas pessoas se apresentaram nas emergência com síndrome coronariana aguda, sem considerar o denominador, ou seja, sem calcular risco (número de eventos/número de indivíduos expostos). Sendo assim, não temos a probabilidade de um indivíduo que está assistindo a um jogo apresentar um infarto neste momento.

Na verdade, mesmo sendo 2-3 vezes maior do que em outros momentos, o risco de um indivíduo apresentar um infarto durante o jogo é ínfimo, pois aqui estamos nos referindo a apenas um dia na vida do paciente. Imaginem, quando a gente estima risco baseado no Framingham, consideramos 10 anos. Mesmo uma pessoa de alto risco em 10 anos (risco = 20%), tem uma probabilidade pequena de ter um evento cardiovascular em um dia específico de sua vida = 0.005% (20%/3650 dias). Além disso, uma pessoa não apresenta um infarto porque teve um momento de estresse, mas sim porque tem uma doença coronariana vulnerável. O estresse é apenas o gatilho. Se o gatilho não decorrer do jogo da Copa, vai decorrer de outro momento na vida da pessoa.

Afinal, a vida é feita de emoções. Este é o raciocínio que devemos aplicar quando nos questionam se um idoso cardiopata deve ir à formatura do neto, pois a emoção poderia causar um evento cardiovascular. Salvo situações de extrema instabilidade, estas pessoas devem participar da vida, devem ir à formatura, assim como assistir ao jogo do Brasil na Copa.

O artigo discutido é interessante, tem valor científico, mas seria um erro aplicar este conhecimento para limitar os pacientes de ver os jogos. Sejamos razoáveis.

Por falar nisso, este Blog entrará em recesso para assuntos científicos durante a Copa. Se conseguirmos conexão de internet na África do Sul, faremos uma cobertura da Copa on line, sempre sob o paradigma baseado em evidências.

domingo, 9 de maio de 2010

Chocolate Traz Benefício Cardiovascular?

No filme Mandela, sobre o longo período de Nelson Mandela no presídio de Robben Island, há uma marcante passagem: Mandela consegue que um guarda do presídio passe para Winnie Mandela uma pequena barra de chocolate, como presente de Natal. Aquele fato teve um grande impacto político, pois representou a insistente luta de Mandela pelo que ele acreditava, a despeito da adversidade. Recentemente Adelina relatou em seu Blog sua surpresa ao ser presenteada no sinal de trânsito com um Sonho de Valsa. Chocolate é de fato um alimento especial, é nome de filme, nome de música, tendo uma evidente conotação romântica.

Estes sentimentos aparentemente são despertados também em cientistas. Pela lógica, chocolate seria deletério ao sistema cardiovascular, por ser rico em gordura saturada. No entanto, está publicado ahead of print no European Heart Journal o artigo intitulado Chocolate consumption in relation to blood pressure and risk of cardiovascular disease in German adults. Este é um subestudo da coorte do European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition. Os investigadores realizaram questionário alimentar em 19000 indivíduos saudáveis, realizando seguimento prospectivo de 8 anos, o que demonstrou associação entre consumo de chocolate e menor risco de infarto e AVC. Os autores então concluem: Chocolate consumption appears to lower CVD risk, in part through reducing BP. The inverse association may be stronger for stroke than for MI. Further research is needed, in particular randomized trials. Percebam o cuidado nas palavras, cuidado muitas vezes sugerido pelos revisores dos trabalhos. Este cuidado se deve à obvia limitação do estudo, o desenho observacional.
Tal como mencionamos na postagem do benefício do álcool, este tipo de estudo gera uma hipótese, que precisa ser testada em ensaios clínicos randomizados. Sempre que falamos de estudos sobre hábitos de vida há grande probabilidade de efeito de confusão denominado usuário saudável. Pode ser que as pessoas com mais predisposição de doença evitem chocolate. Por isso a importância da análise multivariada, que ajusta para estas covariáveis. Mesmo assim, nenhuma análise multivariada garante ausência de fatores de confusão residuais.

Por outro lado, este trabalho tem duas características metodológicas que o fazem uma evidência um pouco mais consistente do que a maioria dos estudos observacionais que testam o valor de hábitos de vida. Primeiro, o estudo avalia a associação com uma possível variável intermediária na relação entre chocolate e proteção cardiovascular. Ficou demonstrado que os paciente que ingerem mais chocolate têm pressão arterial mais baixa. Portanto, o estudo vai um pouco além e calcula no modelo multivariado o quanto da proteção do chocolate se deve ao seu efeito hipotensivo. Segunda característica que diferencia este estudo é a demonstração da associação linear entre quantidade de chocolate consumido e risco cardiovascular. A avaliação utilizando variáveis contínuas tem mais consistência estatística.

O trabalho é sem dúvida interessante, porém por enquanto o interesse é do ponto de vista científico. Esta não é uma informação para ser aplicada clinicamente, nem divulgada na imprensa leiga como uma descoberta de impacto clínico. Porém como de praxe, a imprensa leiga veiculou a informação de forma determinística. Vejam alguns exemplos da notícia na imprensa leiga:

BBC News: “Chocolate can cut blood pressure and help heart”
The Guardian: “It's official: Chocolate is good for you”
Daily Express:
One piece of chocolate a day could save your heart

Precisamos testar com metodologia adequada o impacto clínico não só de drogas, mas também de hábitos de vida. Estes estudos podem mudar paradigmas de prevenção em alguns casos e em outros casos reforçar a necessidade de alguns hábitos de vida.

Enquanto isso, podemos comer chocolate de forma romântica e moderada, para talvez no futuro comermos de forma cientifica.
Declaração de Conflito de Interesse: sou chocólatra.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O Benefício Cardiovascular do Álcool: Mito ou Realidade?

É comum médicos afirmarem na televisão ou imprensa escrita que o consumo moderado de vinho oferece benefício na prevenção de doenças cardiovasculares. Pouco comum é ouvir um comentário ponderado de que no fundo não sabemos a resposta para esta questão.

As evidências a respeito do teórico efeito benéfico do álcool são provenientes da análise de desfechos em estudos observacionais ou análise de efeitos fisiológicos. A mais citada referência é aquela que descreveu o paradoxo francês, termo que se refere à baixa prevalência de doença cardiovascular entre os franceses, apesar da alta ingestão de gordura saturada. De forma apenas hipotética, se atribui este paradoxo ao hábito quase diário dos franceses em consumir vinho de forma moderada. Este é um estudo do tipo ecológico, onde se compara a prevalência de doença entre populações, sem levar em conta os participantes de forma individual. Por este motivo, o nível de evidência de um estudo ecológico é bem menor do que um estudo de coorte prospectiva.

Há também estudos de coorte sugerindo associação entre uso moderado de álcool e menor risco cardiovascular. O grande problema é que estes estudos são vulneráveis ao efeito do usuário saudável, onde o uso de vinho seria apenas um marcador de bons hábitos de vida ou de melhor status social. Mesmo após ajuste por análise multivariada, sabe-se que pode haver efeito residual de variáveis de confusão, provocando associações não verdadeiras. O maior exemplo do efeito do usuário saudável é o da terapia de reposição hormonal. Esta terapia possui plausibilidade biológica de ser benéfica (tal como o álcool) e estudos observacionais sugerindo efeito protetor contra doença cardiovascular (tal como o álcool). Mesmo assim, quando os ensaios clínicos randomizados foram realizados, verificou-se que esta terapia não só carece de benefício, como também traz malefício cardiovascular.

Um estudo de coorte que ilumina nossas mentes a respeito deste assunto é a publicação do Prof. Flávio Fuchs no American Journal of Epidemiology 2004, com dados provenientes da coorte do ARIC (Atherosclerosis Risk in Communities Study). Flávio observou que em brancos americanos o consumo moderado de álcool é associado menor risco cardiovascular, porém em negros esta observação não está presente. Isto sugere que o álcool pode ser apenas um marcador da condição de saúde, hábitos de vida e melhor status social. A minoria negra americana tem pior status social e carece de bons hábitos de vida. Por isso o álcool não consegue ser marcador de boa condição de saúde em negros.

Este mesmo estudo demonstrou que não há associação entre o tipo de bebida e risco cardiovascular, sugerindo que a particularidade do vinho é o perfil das pessoas que fazem uso, não um efeito protetor específico.

No número corrente do Circulation, foi publicada uma revisão sobre o efeito do álcool em pacientes portadores de doença cardiovascular. Neste caso de prevenção secundária, há também evidências epidemiológicas de associação com melhor desfecho cardiovascular. No entanto, o artigo chama atenção de que esta é uma população mais vulnerável aos efeitos maléficos do álcool: piora controle pressórico, causa hipertrigliceridemia, predispõe a obesidade, fibrilação atrial, reduz limiar para fibrilação ventricular, pode ter efeito aditivo com aspirina para provocar sangramento digestivo, aumenta a atividade do citocromo P450. Por isso tudo, também há plausibilidade biológica para efeito cardiovascular maléfico do álcool.

O ideal seria a realização de um ensaio clínico randomizado. Só que seria muito difícil de realizar, pois pessoas que fazem uso corrente de álcool não vão aceitar se forem randomizadas para não tomar mais nenhum drink por vários anos. Da mesma forma, pessoas abstêmias, não vão querer ser randomizadas para tomar drinks com certa freqüência. A única possibilidade seria randomizar para diferentes doses de álcool e ver a relação dose-resposta. Mas convenhamos que seria difícil controlar isso na prática.

Sempre que se levanta esta discussão surge o legítimo argumento de que não podemos esperar ensaios clínicos para tomar conduta em todos os casos. Isso é verdade, o que precisamos fazer é avaliar quais os casos em que se justifica considerar uma verdade científica baseada em estudos observacionais e os casos em que não se justifica. Por exemplo, tabagismo. Aqui a pessoa já fuma e o ensaio clínico randomizaria pacientes para parar ou não parar de fumar. Porém a força de associação é muito grande entre tabagismo e doença cardiovascular/câncer nos estudos observacionais e há nítido gradiente dose-resposta, tornando bem provável que a associação seja verdadeira. Além disso, existe mais plausibilidade do efeito maléfico do tabagismo do que do efeito benéfico do álcool. E não há plausibilidade de efeito benéfico para tabagismo, enquanto há plausibilidade de efeito maléfico do álcool. Desta forma, julga-se que não é necessário um ensaio clínico para acreditar que tabagismo é um fator de risco. Percebam que a medicina baseada em evidências propõe uma análise discriminatória entre os casos em que se deve almejar um ensaio clínico e casos em que nos contentamos com o estudo observacional.

Desculpem-me os amantes do vinho. Reconheço que é mais divertido curtir um bom vinho pensando no benefício cardiovascular. Talvez depois de duas taças de vinho eu venha concordar com evidência a favor do álcool. Porém como dia de quarta-feira geralmente não bebo, hoje considero um mito o benefício cardiovascular do álcool.