O fenômeno de regressão à média é um dos processos menos compreendidos entre leigos e médicos e esta incompreensão provoca interpretações inadequadas de observações científicas. Esta falta de entendimento não decorre de complexidade, pois este é um fenômeno simples. Decorre da regressão à média ser dependente do acaso e da mente humana não estar condicionada a considerar o acaso como um importante componente dos eventos universais.
Por uma questão evolutiva, de sobrevivência, acostumamos a encontrar alguma relação de causa-efeito para qualquer fato com o qual nos deparamos. Nossos ancestrais, na tentativa de criar um ambiente favorável à sobrevivência, procuravam associar todo fato positivo e todo fato negativo a uma causa específica. É freqüente a observação “peguei uma gripe, pois tomei um vento forte ontem”. Na verdade adquirir ou não uma infecção viral é puraobra do acaso, ou azar de ter respirado um ar momentaneamente contaminado por um vírus. O azar ou a sorte diferencia pessoas que ficaram ou não doentes durante um surto de gripe. No entanto, nosso pensamento inato não funciona assim. Por isso que o fenômeno de regressão à média não é intuitivo.
A regressão à média define que em qualquer série de eventos aleatórios, há uma grande probabilidade de um acontecimento extraordinário ser seguido, em virtude puramente do acaso, por um acontecimento mais corriqueiro. Tentarei ilustrar isto com exemplos cotidianos, depois utilizarei o exemplo de um ensaio clínico para demonstrar a importância disto na prática científica.
Imaginem um aluno mediano, daquele que tira sempre a nota mínima para passar de ano, digamos 5,0. Um belo dia esse aluno chega em casa com uma nota 9,0 em matemática (sem ter colado na prova, ou seja, nota verídica). Os pais ficam felizes, elogiam e até lhes compram um belo presente, na intenção de que o incentivo perpetue aquele extraordinário desempenho do garoto. No entanto, na prova seguinte, o aluno volta a seu padrão mediano, recebendo uma nota 6,0. Os pais pensam: não se pode elogiar, temos que ser mais duros com ele. Mas não foi a moleza dos pais que provocou a queda do aproveitamento, foi o fenômeno de regressão à média. Na verdade, o normal do garoto é tirar notas medianas, a nota 9,0 foi obra meramente do acaso e o acaso tende a não se repetir. Por isso que no próximo teste o garoto vai regredir à média de suas notas ao longo do ano.
Outro dia, o aluno top da turma por acaso tira uma nota 6,0 em matemática. Os pais, bastante rígidos, o colocam de castigo. Na prova seguinte, ele tira nota 10, como de costume. Raciocínio dos pais? Temos que ser duros com ele, assim dá resultado. Nada disso, a nota 6,0 foi um acaso, ele regrediria a sua nota 10 de qualquer jeito.
Assim surgiu o mito de que quanto mais rígida a escola, melhor o desempenho do aluno. A palmatória, usada na época de nossos avós, surgiu exatamente da falta de entendimento da regressão à média. O bom aluno, quando falhava, melhorava após a punição. O aluno medíocre, quando tinha um bom desempenho, não poderia ser premiado, pois após a premiação, seu rendimento cairia. Quanto sofrimento poderia ter sido evitado pelo conhecimento da regressão à média.
Às vezes um bom jogador de futebol (porém não espetacular), após boas temporadas pelo campeonato brasileiro, joga um campeonato extraordinário (artilheiro), se tornando um ídolo. Daí se cria um mito, um novo Pelé. O jogador é rapidamente vendido para um clube europeu por milhões de Euros. Lá não corresponde às expectativas. Daí surgem várias explicações: não se adaptou ao frio, tem saudade dos amigos, só quer saber de balada... Nada disso, simplesmente regressão à média. Claro, as baladas atrapalham, mas craque é craque, que diga Romário.
Lembro de Adriano, bom jogador, que se tornou um ídolo após ter feito um gol na final da Copa América contra a Argentina, aos 47 minutos do segundo tempo. Brasil campeão, por acaso. Adriano se tornou um mito depois daquele jogo, sendo inclusive comparado a Ronaldo Fenômeno. Foi para Europa e regrediu à sua média de bom jogador. Até concordo que houve outras causas, mais um grande fator foi a sua valorização excessiva após algo ocorrido pelo acaso. Com certeza, regressão à média foi um importante componente.
A figura acima ilustra porque pais muito baixos tendem a ter filhos mais altos que eles e pais extremamente altos tendem a ter filhos um pouco mais baixos que eles. Esse é um dos mais usados exemplos de regressão à média. Os pais eram tão baixos ou tão altos por acaso.
Entrando na ciência médica, o fenômeno de regressão à média explica porque é imprescindível a presença de um grupo controle para avaliar se uma intervenção é benéfica. Recentemente foi publicado no
Journal of American College of Cardiology um ensaio clínico randomizado, avaliando o efeito do transplante de células-tronco na melhora da fração de ejeção em pacientes com miocardiopatia isquêmica. Metade dos pacientes recebeu células-tronco e a outra metade não, servindo de grupo controle. Interessante notar que a média da fração de ejeção no grupo controle apresentou um aumento de 7% em termos absolutos, sem que nada fosse feito. O grupo transplantado apresentou uma melhora maior, a qual foi estatisticamente superior ao grupo controle, concluindo-se que a terapia influenciou positivamente na função ventricular. Agora imaginem se o tratamento não servisse para nada e os autores fizessem um estudo sem grupo controle. A melhora de 7% entre antes e depois, estatisticamente significante, lhes faria concluir que a terapia teria funcionado. Mas essa melhora decorreu do fenômeno de regressão à média. Isso ocorre quando uma amostra é selecionada com base em uma característica anormal, no caso, fração de ejeção muito baixa. Alguns desses pacientes estão com valores tão baixos por acaso. Quando é feita uma segunda medida, eles tendem a regredir à média, elevando a média geral do grupo.
É por este mesmo motivo que ensaios clínicos de drogas anti-hipertensivas e anti-lipidêmicas precisam de grupo controle, não basta medir antes e depois, pois a segunda medida da pressão arterial e do colesterol sempre tenderá a ser menor, uma vez que a seleção da amostra foi feita com base na variável de interesse sendo anormal.
Como este fenômeno é mal compreendido, vemos com freqüência pessoas insistindo em avaliar efeito de uma estratégia terapêutica simplesmente medindo a variável de desfecho antes e depois. O paciente nunca pode ser seu próprio controle, pois a média do grupo tende sempre a melhorar. É um equívoco testar efeito terapêutico sem grupo controle.
Enfim, na vida cotidiana e científica devemos considerar o acaso com um dos componentes da realidade multifatorial responsável pelos fenômenos a nossa volta. Isso evitará interpretações equivocadas de nossa realidade e desenhos metodológicos incorretos. A noção do fenômeno de regressão à média é um dos componentes da maturidade científica.
* Esta é a primeira postagem da série Curiosidades Estatísticas de Utilidade Científica.