Ainda não publicado, o estudo FAME-II já
está servindo de argumento para os lobistas anti COURAGE Trial, aqueles de mentalidade do médico ativo, que
procuram justificar revascularizações em pacientes sem indicação
deste procedimento. O estudo FAME-II tem um desenho semelhante ao COURAGE, no
sentido de que randomizou pacientes com doença coronária estável (sintomáticos
e assintomáticos) para implante de stent + tratamento clínico otimizado versus tratamento clínico otimizado. A
diferença é que a intervenção coronária foi guiada por fractional flow reserve (FFR), ou seja, tinha comprovação
hemodinâmica de redução de fluxo. Digamos, uma escolha mais criteriosa de que
lesões seriam tratadas.
Apos incluir 1.219 pacientes, o FAME-II foi interrompido pois “mostrou um claro benefício da estratégia intervencionista”. Aí está, mais um estudo truncado por benefício. Mais um
resultado com possibilidade de ser decorrente do erro tipo I (acaso), por de ter sido interrompido
antes da hora.
Mas mesmo que não houvesse truncamento, precisaríamos discutir estes resultados mais a fundo. Devemos nos perguntar se este resultado
traz algo de novo, se contraria os dados “conservadores” do COURAGE, como
alguns estão argumentando.
Claro que não, é exatamente o contrário, pois
o FAME-II não mostrou redução de mortalidade, nem redução de infarto –
exatamente como o COURAGE. O que reduziu foi apenas incidência de hospitalização por
sintomas e necessidade de revascularização. Exatamente como o COURAGE, que
mostrou apenas melhora dos sintomas.
Portanto, o FAME-II confirma os dados do
COURAGE.
Outro aspecto é que o desfecho
revascularização do FAME-II foi definido como necessidade de revascularização urgente, conotando um tipo de desfecho
aparentemente mais importante do que simplesmente revascularização. Ou seja,
sugerindo que seria um desfecho instável. No entanto, não faz tanto sentido que
um desfecho que caracteriza instabilidade seja reduzido, se infarto não
apresentou redução. Digo, uma verdadeira necessidade
de revascularização urgente significa o extremo de gravidade de pacientes
com síndromes coronarianas agudas. Qual a lógica do tratamento prevenir este
desfecho, se não previne infartos em geral? Precisaremos ler a
definição deste desfecho no artigo a ser publicado futuramente.
Outro aspecto importante é que os dois únicos desfechos que mostraram
benefício da estratégia intervencionista são susceptíveis ao viés de aferição,
devido à característica aberta do estudo. Isso mesmo, o estudo não é cego, pois é difícil cegar estudos de intervenção versus tratamento clínico. Os dois
desfechos (internamento por angina e revascularização) são eventos que decorrem
de decisão médica. Ou seja, se internar ou ter uma revascularização indicada
depende da vontade do médico. Desta
forma, ao saber que seu paciente foi randomizado para não fazer intervenção
coronária, o médico fica
com a impressão de maior vulnerabilidade do paciente e fica mais propício a
indicar internamento ou revascularização a qualquer sintoma. Daí surge uma tendência de que estes
desfechos sejam mais frequentes em pacientes randomizados para o tratamento não
intervencionista. Aí está uma típica combinação de desfechos moles (softs) com um estudo aberto, o que predispõe a falsos resultados.
Sendo assim, pelo caráter truncado e
potencial viés de aferição, é possível que este aparente benefício seja falso.
Segundo, mesmo sendo verdadeiro, este resultado está de acordo com o COURAGE: o
que a intervenção faz é controlar sintomas, sem impacto sobre eventos de maior gravidade.
Porém desde já tenho ouvido argumentos
utilizando este estudo contra o paradigma do estudo COURAGE. É Possível que o
FAME-II se alie ao esdrúxulo subestudo nuclear do COURAGE, um dos mais citados
pelos que gostam de defender o tratamento intervencionista.
Este subestudo avaliou um subgrupo de
pacientes do COURAGE que fez cintilografia miocárdica antes e depois do
tratamento. Mostrou que pacientes que apresentavam redução da isquemia com o
tratamento (seja clínico, seja intervencionista) tiveram melhor prognóstico.
E com isso, muitos começam a sugerir
que se houver isquemia, o paciente deve ser revascularizado. Qual a lógica
disso?
Observem que esta análise em momento
algum comparou angioplastia versus
tratamento clínico, portanto não pode falar em tratamento. Pacientes que melhoram a isquemia (com qualquer tratamento)
são de menor risco, menor complexidade da doença coronária, e provavelmente por
isso têm melhor prognóstico. De acordo com isso, ao ajustar (análise
multivariada) para as características clínicas, a significância estatística
desta diferença prognóstica desapareceu totalmente. No entanto, este estudo é citado
com muita frequência em encontros médicos, como uma evidência a favor da
intervenção coronária. Tenho uma nítida sensação que este estudo não está sendo
lido pelas pessoas, que apenas repetem o que ouvem falar ser o significado de
seus resultados. Se lessem com o mínimo de atenção, chegariam a mesma conclusão
que aqui exponho.
Mas podem esperar: o FAME-II vai se
juntar (já está se justando) ao esdrúxulo subestudo nuclear do COURAGE, como mais uma evidência a
favor da mentalidade do médico ativo.
Isto predispõe ao fenômeno descrito na
língua inglesa como medical reversal.
Este fenômeno é caracterizado por criarmos falsos paradigmas que em pouco tempo
são revertidos por evidências
científicas. E isso não é bom, pois muitas vezes estes falso paradigmas
promovem condutas desnecessárias, às vezes até maléficas.
Em fase inicial está o estudo ISCHEMIA,
semelhante ao COURAGE, porém limitado a pacientes com isquemia miocárdica moderada
a severa. Só espero que daqui a alguns anos o ISCHEMIA não seja truncado por
aparente benefício.