sábado, 7 de julho de 2012

Mundo Univariado versus Mundo Multivariado



Nosso mundo é multivariado, no sentido de que vários fatores influenciam simultaneamente a ocorrência de um evento. No entanto, nossa mente é mais condicionada a pensar de forma univariada, o que gera alguns equívocos científicos. Na realidade, não existe uma causalidade cartesiana, aquela na qual um único fator determina um desfecho. Principalmente em se tratando de sistemas biológicos, que são tradicionalmente classificados como sistemas complexos, representados pela figura acima.

Um exemplo destes equívocos é a conclusão da meta-análise publicada esta semana no Journal of the American College of Cardiology, cujo titulo é  Invasive or Conservative Strategy in Patients With Diabetes Mellitus and Non–ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndromes: A Collaborative Meta-Analysis of Randomized Trials. Os autores do trabalho concluíram que “These data support the updated guidelines that recommend an invasive strategy for patients with diabetes mellitus and non–ST-segment elevation acute coronary syndromes.”

Ou seja, se for diabético, a estratégia deve ser invasiva. Será?

Esta é uma meta-análise dos 9 principais ensaios clínicos que compararam a conduta invasiva versus conversadora em síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do segmento ST. Em uma análise de subgrupo, os autores da meta-análise nos mostram dados sugerindo que a estratégia invasiva é melhor do que a conservadora na prevenção de infarto nos pacientes diabéticos; por outro lado, nos não diabéticos, as estratégias são semelhantes. Portanto, se o paciente é diabético, devemos preferir a estratégia invasiva, segundo os autores. 

Não quero fugir do tema da postagem, entrando em aspectos metodológicos do estudo que reduzem a confiabilidade desta análise. Mas só para registrar, esta é uma conclusão tirada a partir de análise de subgrupo e de apenas um desfecho, o que foi significativo (infarto), pois os demais não mostraram diferença.

Voltando ao tema, o grande problema da conclusão do trabalho é que este raciocínio é puramente univariado. Como se só existisse uma característica a ser avaliada nesta decisão (diabético ou não). Este raciocínio implica que todo diabético é de alto risco e necessita de estratégia invasiva. No mundo real, multivariado, há diabéticos de baixo a alto risco, pois outras variáveis (multi) atuam juntamente com diabetes, determinando o risco final do paciente. Da mesma forma, não diabéticos podem ser de baixo a alto risco. Portanto, é de baixo risco um diabético jovem com angina instável, sem alteração de eletrocardiograma, troponina negativa, sem sinais de congestão pulmonar, estável hemodinamicamente, boa função renal.  Ao passo que um não diabético idoso, com infradesnível do segmento ST, troponina positiva, com congestão pulmonar é de alto risco.

Em nosso mundo multivariado, não podemos considerar apenas uma variável na determinação do risco do paciente. Esta determinação deve ser multivariada, tal como se faz quando usamos um escore de risco validado, que considera todas as variáveis conjuntamente, dando o peso que cada variável merece, calculado a partir de uma análise multivariada (regressão logística ou regressão de Cox, as mais comuns).

O próprio estudo demonstra que a diferença de benefício da estratégia entre diabéticos e não diabéticos depende apenas do risco basal do paciente. Isto porquê a redução relativa do risco de infarto com a estratégia invasiva é igual nos diabéticos e não diabéticos. Ou seja, o tratamento tem o mesmo efeito redutor de risco nos dois grupos. O que difere é a redução absoluta de risco. Quando a redução absoluta do risco com o tratamento difere entre os grupos (diabéticos vs. não diabéticos), mas a redução relativa é constante, não é o tratamento que tem melhor efeito no tipo de paciente, é simplesmente porque sendo o risco absoluto maior, a redução absoluta do risco será maior.

Portanto, o resultado é decorrente do grupo de diabético ser de maior risco na análise univariada. Porém sabemos que no mundo multivariado (mundo real) diabetes não é preditor independente de risco. Querem ver uma coisa? Por que diabetes não faz parte do escore GRACE? Porque naquele grande estudo de coorte, após ajuste para os outros fatores de risco, diabetes perdeu significância.


Sozinha, a informação diabetes não quer dizer nada. A questão é que os diabéticos tem mais troponina positiva, piores alterações eletrocardiográficas, maior idade, pior função renal, etc. Isto já está computado no modelo multivariado (tipo GRACE), portanto neste contexto seria redundante e errado analisar diabetes como um único fator determinante do risco. 


Se a idéia a primeira vista parece estranha, é porque não estamos acostumados a lidar com o pensamento multivariado. Daí a importância dessa discussão.

Portanto, (1) se a interação do tipo de estratégia e diabetes só ocorre com a redução absoluta de risco (não a relativa), (2) a superioridade do tratamento invasivo no diabético depende apenas do fato de que este grupo é de alto risco; (3) porém, no mundo real (multivariado) o simples fato de ser diabético não garante ser o paciente de alto risco; (4) portanto, não é verdadeira a conclusão de que o diabético deve ser sempre (ou quase sempre) submetido à estratégia invasiva.


Quando um ensaio clínico mostra que pacientes com troponina positiva apresentam benefício de estratégia invasiva, não quer dizer que isso ocorrerá em todos os pacientes. Em média, há superioridade desta estratégia, mas análises de subgrupo confirmam que nos pacientes de baixo risco o benefício absoluto é menor ou inexistente. Como mencionei na postagem anterior, critério de inclusão de um trabalho não é exatamente um guia para determinação de que pacientes devem ser submetidos à conduta.

Em síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do ST temos duas opções razoáveis: fazer estratégia invasiva de rotina (CAT seguido de procedimento de revascularização em todos) ou individualizar a decisão de acordo com seu risco basal do paciente (estratificação). Se optamos pela segunda forma (minha preferência), devemos considerar simultaneamente os preditores independentes, para estimar de maneira acurada o risco basal do paciente e decidir pela estratégia.

O que tem ocorrido na prática é que as recomendações (guidelines americano e europeu) sugerem fazer estratificação, porém colocam uma série de critérios univariados, que quando isoladamente presentes, devem determinar uma estratégia invasiva. E assim, eles indicam diabetes como critério de invasividade. Na verdade, são tantos os critérios univariados que não sobra quase ninguém para a estratégia conservadora. No fundo, isso é como dizer para ser invasivo de rotina, independente do risco do paciente. Digo independente do risco, pois simplesmente ser diabético não é suficiente para determinar um risco alto. Depende de uma conjunção multivariada de fatores. Seria mais razoável que estes guidelines assumissem a estratégia invasiva como escolha, especificando raras exceções. No fundo, é isso que estão fazendo, porém querem parecer estar estratificando. Isso não é estratificação, pelo contrário.

Uma dos maiores exemplos desse equívoco é o uso isolado da troponina na decisão. Quando consideramos, por exemplo, a análise multivariada realizada na coorte do GRACE, percebemos que (1) troponina é um preditor independente de risco; (2) troponina é apenas um fator na determinação do risco dentre muitos outros, tais como idade, desvio do ST; (3) o peso da troponina positiva não é suficiente para que sozinha esta implique em alto risco. Por exemplo, o peso da troponina é metade do peso do infradesnível de ST.

Sendo assim, temos que pensar em avaliação prognóstica como um processo multivaraiado. O correto é usar troponina, eletrocardiograma, idade, etc, conjuntamente, considerando o peso de cada uma destas variáveis merece após ajuste para as demais. Isto é o que faz um  escore multivariado tipo do GRACE.

Portanto, generalizar que todo paciente diabético deve ser submetido à estratégia invasiva é uma visão reducionista. Limitada a um pensamento univariado, o qual é inadmissível considerando o status atual de conhecimento científico.

Esta discussão exemplifica a necessidade de reconhecermos o mundo como multivariado, evitando assim equívocos científico que podem determinar inadequada utilização dos recursos médicos.

É só olhar ao nosso redor e perceber que o mundo é multivariado. Os exemplos cotidianos, deixo para vocês mencionarem nos comentário do Blog. São muitos ...

8 comentários:

  1. Saiu na ediçao de ago-dez (n 23) de 2010 na revista "olhar" (uma revista do centro de educaçao e ciencias humanas da UF de Sao Carlos), uma publicaçao com o seguinte titulo: A epistemologia da comlexidade - de Gaston Bachelard e Edgar Morin. o autor é André Santana de Mattos.
    Por coincidencia lí este artigo por esses dias e tem tudo a ver com o que voce tras nesta analise. Tentei acessar via internet para colocar o link aqui, mas nao consegui.
    Parabens mais uma vez pelas reflexoes, este trabalho que voce faz é muito educativo para todos nós!

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  2. ...assusta-me também o fato de que as conclusões desse artigo foram baseadas de análises de subgrupo, as quais são usadas principalmente para gerar hipóteses. Quando são usadas para testar hipóteses (o caso do artigo em discussão), com certeza isso deve ser feito com muito cuidado, pois a causalidade cartesiana (que não existe) poderá ser estabelecida pelo fenômeno da regressão à média. O artigo de JT BIGGER, "Issues in Subgroup Analyses and Meta-Analyses of Clinical Trials (J Cardiovasc Electrophysiol 2003;14:S6-S8)" pode oferecer uma discussão interessante sobre isso.

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  3. Quem estuda e conhece um pouquinho de Física quântica sabe que todo evento que aconteça é probabilístico e nunca determinístico, dependendo portanto do observador. A vida é um junção de moléculas sub atômicas que são observadas e portanto de evetos multivariados. Acompanho e divulgo esse blog.
    Abraço

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  4. APROVEITANDO O TEMA DIABETES, GOSTARIA DE TIRAR UMA DÚVIDA:
    APÓS O ESTUDO "MORTALITY FROM CORONARY HEART DISEASE IN SUBJECTS WITH AND WITHOUT TYPE 2 DIABETES [HAFNER 1998]", O DM FICOU ESTABELECIDO NAS DIRETRIZES COMO EQUIVALENTE DE IAM PARA EVENTOS CARDIOVASCULARES. NO ENTANTO, A ANÁLISE MULTIVARIADA NÃO MOSTROU SIGNIFICANCIA ESTATISTICA E MESMO ASSIM GRANDES NOMES REPETEM TAL INFORMAÇÃO. QUAL SUA ANÁLISE DESSA PROPOSTA ESTABELECIDA PELA DIRETRIZES?
    ATT,
    FÁBIO

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  5. Concordo Fábio. Considerar todo diabético de alto risco é uma proposta ingênua, no mínimo.

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  6. Esse post me lembrou muito a 'Teoria do Tudo' ou 'Teoria Unificada' proposta por Einstein. Quando ele tentou unificar a física quântica e a relatividade geral em apenas uma expressão matemática. De fato ele não conseguiu, chegando, inclusive, a expressar posteriormente que esse foi o seu maior erro. Não que haja relação direta com o assunto postado, mas achei interessante e resolvi comentar.

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  7. Acredito que deve haver um subgrupo de diabéticos de muito alto risco que deveria ser diferenciados dos diabéticos ´comuns´. Certa feita vi uma análise onde separava-se os diabéticos em insulino-dependente e não insulino dependente, mostrando que os 1os tinham um risco cardiovascular bem mais elevado. A necessidade do uso de insulina seria um marcador de tempo evolutivo do DM2. Segundo o guideline 2012 da ADA: "The chronic hyperglycemia of diabetes is
    associated with long-term damage, dysfunction, and failure of different organs,
    especially the eyes, kidneys, nerves, heart,
    and blood vessels." Seria interessante realizar análises multivariadas separando o DM sem uso de insulina (fase inicial) do diabético em fase avancada ou quase terminal (ja em uso de insulina)?

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