Recentemente publicada no British Medical Journal uma interessante descrição da frequência do uso de medidas de associação
relativas versus absolutas em artigos
científicos. Naquele trabalho, foi estudada uma amostra de 334 artigos publicados durante o ano
de 2009 nas principais revistas de impacto, de escopo médico (NEJM e Lancet) ou epidemiológico. Em 75%
dos artigos apenas medidas relativas foram descritas, em 18% apenas medidas
absolutas e em 7% ambas.
A partir daí, devemos refletir sobre o
porquê da predileção pelo relativo, se isso é bom ou ruim. Neste contexto,
faremos uma revisão destas medidas de associação, apontando vantagens e desvantagens do uso do
relativo e absoluto.
No cotidiano, as pessoas tendem a
valorizar mais o relativo do que o absoluto, como se o relativo representasse
uma forma “maior” de pensar. O termo “isso é relativo” é muito usado no intuito
de propor um pensamento mais avançado a respeito de uma dada questão; “vamos
relativizar” indica uma percepção de que as coisas devem ser analisadas de
acordo com seu contexto. É como se o pensamento relativo fosse a palavra final
ou uma palavra mais equilibrada no julgamento das coisas.
Por outro lado, no raciocínio médico
baseado em evidências, o absoluto é mais valorizado quando julgamos a magnitude
do benefício de uma conduta ou a magnitude do dano causado por um fator de
risco. Em várias postagens deste Blog, enfatizamos a importância da redução absoluta de risco como a medida
mais adequada na análise de relevância de um tratamento.
Inclusive esta é usada para calcular o NNT. Já as medidas relativas
podem gerar falsa impressão, uma impressão mais favorável ao tratamento do que
é a realidade.
Mas antes de avançar nesta discussão, vamos revisar estes
conceitos.
O risco
relativo (RR) é calculado pela razão entre o risco do tratamento / risco do
controle, por exemplo, risco da droga / risco da placebo. RR < 1 indica efeito protetor do tratamento, pois o risco deste
(numerador) é menor do que o risco do controle (denominador). Um RR > 1 indica
efeito deletério do tratamento, sendo também usado para avaliação de fatores de
risco. Por exemplo, risco de câncer dos expostos a tabagismo / risco dos não
expostos é maior do que 1, indicando dano.
Em um ensaio clínico, se o grupo droga apresenta mortalidade de 3%
e o grupo placebo de 10%, o RR (3/10) será 0.30. A partir do RR, podemos calcular a redução relativa do risco (RRR) pela
fórmula 1 – RR. Ou seja, 1 – 0.30 = 0.70, que significa 70% de redução relativa de risco. Essa é a
mensuração do benefício relativo.
Já a redução absoluta do risco é a
simples subtração do risco no grupo controle pelo risco no grupo de tratamento
ativo. No exemplo acima, 10% - 3%, indica 7% de redução absoluta de risco.
Observem que numericamente o relativo (70%) impressiona mais do que o absoluto (7%).
Quando falamos de fatores de risco, essa
medida seria o aumento absoluto do risco, calculado pela subtração do risco nos
expostos ao fator pelo risco nos não expostos.
De acordo dados citados no
Jornal Nacional, empresas aéreas brasileiras são fatores de risco para
acidentes de avião, quando comparadas a empresas americanas. Dividindo a
probabilidade de acidente no Brasil pela probabilidade nos Estados Unidos,
chegamos a 6.8 de risco relativo no Brasil em relação aos Estados Unidos, um
aumento relativo de 5.8, ou seja, 580%. Viajar de avião na TAM (por
exemplo) aumenta em 580% o risco quando comparado à American Airlines. Isso poderia dar uma boa propaganda para a AA. Mas quando
olhamos o aumento absoluto do risco, verificamos que este é ínfimo. Na verdade,
o risco absoluto de acidente nos Estados Unidos é muito baixo (0.26 acidentes
por 1 milhão de vôos). Mesmo que a gente multiplique isso por 6.8 (risco
relativo), o Brasil continua com um risco absoluto muito baixo, equivalente a
apenas 1.76 acidentes/1 milhão do vôos. Ou seja, em termos absolutos a mudança
é mínima, embora pareça uma grande mudança se falarmos em 580% de aumento. Viajar pela TAM incrementa apenas 1.5 acidentes a cada 1 milhão de vôos.
Parêntese: usei TAM e a AA apenas como exemplo do Brasil e Estados Unidos, para o texto ficar mais atraente. Eu poderia ter falado em Gol e Delta. TAM, por favor não tire minhas milhas.
A indústria farmacêutica sempre faz isso.
Ao mostrar o efeito benéfico de uma droga, prefere usar risco relativo, dando
uma boa impressão. Uma vez vi uma propaganda em que o benefício era descrito em
redução relativa de risco, mas o malefício da droga (efeito adverso) era
descrito em redução absoluta de risco.
A indústria faz os médicos de idiotas a
todo momento com manipulações deste tipo. Primeiro, dão uns presentinhos aos
médicos (de almoço em congressos a passagens aéreas), tornando-os susceptíveis
a ouvir baboseiras. Com um
presentinho no bolso (ou uma caixinha de lanche no colo) e uma quase proposital
ignorância em relação a simples medidas de risco, os médicos passam a acreditar
em contos de fada, aceitando argumentos baseados apenas no relativo. De fato, o
mundo é relativo, a depender do nosso interesse, acreditamos mais ou menos nas
coisas.
Mas não é só a indústria que prefere as
medidas relativas. Os autores as preferem também, tal como
evidenciado pelo artigo do British Medical Journal, onde 75% dos artigos não descrevem o
absoluto, apenas o relativo. Independente do autor ter ou não vinculo com a
indústria, o texto fica mais atraente ao usar o relativo. O estudo COMMIT mostrou que Clopidogrel reduz desfechos
cardiovasculares em pacientes com infarto. A redução relativa do risco foi de
9%, enquanto a redução absoluta do risco foi de 1%. Qual você usaria no resumo
do artigo? Imaginem a frase, Clopidogrel reduz em 1% o risco de eventos
cardiovasculares. Mas a realidade é essa, ou seja, o NNT é de 100.
Até este ponto, reforçamos a crítica relativo, relembrando que a verdadeira relevância está no absoluto. O que precisamos discutir agora é o valor do risco relativo e da redução relativa de risco.
Se criticamos as medidas relativas, por que elas existem, onde está sua utilidade? Na verdade, elas são muito úteis também.
O efeito intrínseco de uma terapia (ou fator de risco) está no relativo e não no
absoluto. Isto porque a redução absoluta do risco não depende apenas da
terapia, mas também do risco basal do paciente. Esta medida, assim como o NNT, varia de paciente para paciente. Para uma mesma terapia,
pacientes de alto risco apresentam um NNT melhor (menor), enquanto pacientes de
baixo risco apresentam um NNT pior (maior).
Já o efeito relativo do tratamento não é influenciado pelo risco basal do paciente.
Aí está o valor de saber a redução
relativa do risco, pois aplicando esta medida ao risco basal do paciente,
saberemos qual o NNT específico daquele tipo de paciente. Por exemplo, sabemos
que anticoagulação na fibrilação atrial promove uma redução relativa do risco
de AVC de 60% (resultado de ensaios clínicos). Imaginem um paciente cujas características
clínicas indiquem 12% de probabilidade
anual de AVC de acordo com o escore CHADS. Assim, 60% x 12% = 7% de redução absoluta. Isso dá um NNT de 14.
Por outro lado, se for um paciente com risco basal de apenas 3%, multiplicando 60% x 3% teremos 1.8% de redução absoluta de risco, com NNT de 56. Percebam como muda a redução absoluta de risco, de um benefício de grande magnitude para um de pequena magnitude.
Sabendo então o real benefício absoluto que paciente vai receber com a terapia, podemos tomar melhor decisões de risco/benefício ou custo/benefício. Aí entra o julgamento clínico na decisão, tal como descrito em postagem anterior.
Quando analisamos a relevância de uma
terapia em um ensaio clínico, devemos saber que aquele NNT calculado se refere
à média dos diferentes pacientes avaliados no trabalho. Seria um NNT médio. Mas
devemos ter em mente que nos extremos este NNT tende a ser melhor ou pior. Em postagem prévia, concluímos que o Ticagrelor não é nenhuma panacéia, pois o
NNT do estudo Plato (para eventos combinados) é de 52.
Desta forma, se esta droga tiver que ser usada, que seja feita apenas
nos pacientes de alto risco de acordo com o Escore GRACE, pois neste caso o NNT
seria otimizado.
Isto é o que podemos chamar de árvore de decisão clínica, a qual deve
ser feita nesta sequência:
1) Calculamos o risco absoluto do
paciente, baseado nas estimativas de modelos probabilísticos validados (escores
de risco).
2) Identificamos com base em
evidências científicas de qualidade qual a redução relativa do risco com o
tratamento.
3) Aplicamos (multiplicação) esta redução relativa ao risco absoluto, encontrando a redução absoluta
do risco naquele paciente.
4) Calculamos o NNT (100/RAR).
5) No caso de haver um lado ruim
da terapia, devemos fazer o mesmo procedimento acima. Ou seja, começamos
calculando o risco basal do efeito adverso.
6) Aplicamos o aumento relativo
do risco de efeito adverso com a terapia a este risco basal, encontrando o
aumento absoluto do risco e o NNT para dano, que também é chamado de NNH (number needed to harm).
7) Depois comparamos o NNT com o
NNH e decidimos se naquele paciente específico o benefício supera o risco. Isso
pode variar de paciente a paciente.
Desta forma, fica claro a utilidade do
relativo. O relativo é a propriedade intrínseca da droga. Esta propriedade
usualmente é constante em diferentes tipos de paciente, tal com pode ser
demonstrado por análises de subgrupo que indicam consistência do efeito de um
tratamento benéfico.
A redução relativa do risco está para a
acurácia (sensibilidade e especificidade) de um exame, assim como a redução
absoluta do risco está para o valor preditivo do resultado deste exame. Lembram
que o valor preditivo do método depende não só do resultado do exame, como
também na probabilidade pré-teste. Da mesma forma, a redução absoluta do risco
depende não só do efeito do tratamento (redução relativa), mas também do risco
basal do paciente (pré-tratamento).
Muito interessante como o relativo
interage com o absoluto em prol de um pensamento médico mais aprimorado,
individualizando as características do paciente para uma decisão mais
acertada. Quem disse que medicina baseada
em evidência não individualiza o paciente? Existem ferramentas que
proporcionam nossa capacidade de sair da leitura do artigo científicos e
aplicar o conhecimento de forma diferente em pacientes diferentes. Foi o que fizemos nesta postagem.
Portanto, ambos tem seu valor, o relativo
e o absoluto se complementam. E se os autores apenas reportarem o relativo ou o
absoluto (como fazem 83% dos artigos), é fácil calcular o outro, não precisa
ser gênio. Apenas se acostumar a pensar de forma científica e ordenada.
Parece pouco intuitivo, pois estamos acostumados a pensar que o relativo conota variação de acordo com a situação. Mas é a aplicação do relativo como uma constante que nos mostra a variação do absoluto a depender de cada situação. Como Einstein diria, E = M x C2 é a mesma para cada situação, o que muda é a massa da matéria, tal como muda o risco basal do paciente. A massa na física corresponde ao risco do paciente calculado com base nos escores. É a "massa do risco".
RR é o salão de festas de Olmesartanas e afins....
ResponderExcluirÓtimo post...
Quando o desfecho é por exemplo MORTE o RR pode tornar algo interessante principalmente quando já tem uma polifarmácia agindo...exemplo IC sistólica. Foi ´muito mais fácil´ mostrar que iECA reduz morte do que B-bloqueador. Por que? iECA foi testado em monoterapia (para morte). B-bloq foi testado adicionado ao iECA... assim o RR torna-se compreensível em casos onde já existem outras linhas de tratamento que não é o placebo. De qualquer forma foi mais uma excelente postagem.
ResponderExcluirArtigo cristalino.
ResponderExcluirParabéns!!! Excelente poster!!
ResponderExcluirParabéns! Post bem didático e esclarecedor.
ResponderExcluirEstou lendo um artigo sobre dispepsia funcional:
A meta-analysis of seven studies that included 3725 patients found that PPIs were significantly more effective than placebo for reducing symptoms (RRR 10 percent, 95% CI 2.7-17.3).
Como você interpreta esses dados?
Desde já agradeço
Ótimo artigo, com foco específico na cardio.
ResponderExcluirpenso, o grande diferencial é sempre entre o médico conscencioso, diligente e o paciente diante dele. "Quem são eles"
estudos e investigações esses sim , sempre relativos .
Arte médica é sempre um RR.
De um modo ou de outro sempre somos condenados, e gostamos !
Excelente postagem, como sempre!
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