A maioria de nós possui um apreço
especial pela mudança de ano, a despeito da realidade
permanecer a mesma após a meia-noite do dia 31 de dezembro. O que faz da passagem
de ano um momento especial é um outro tipo de mudança: a que ocorre com nossa perspectiva.
Consciente ou inconscientemente, este é
um momento reflexivo, avaliamos os acertos e erros no ano passado, imaginamos
novos objetivos, assumimos novas perspectivas.
Isso é suficiente para promover certa sensação de temporária de plenitude, mesmo que a realidade permaneça igual.
Perspectiva é diferente de realidade e a primeira tem
maior impacto do que a segunda. Nossa satisfação depende mais da perspectiva do que da realidade. Isto está demonstrado cientificamente
e o experimento que descreverei me permitirá fazer um link entre perspectiva e prática médica.
Cientistas analisaram experimentalmente o
comportamento de dois macacos (vários experimentos seqüenciais com diferentes
pares de macacos), confinados em jaulas diferentes. Em ambos os casos, o chão
das jaulas disparava choques elétricos simultâneos e intermitentes.
Na jaula esquerda havia um botão para o macaco desligar a descarga elétrica,
interrompendo o choque. A jaula da direita não possuía esta botão, porém sempre
que o macaco da esquerda apertava o botão, a eletricidade era também desligada
na jaula da direita. Isso fazia com que os tempos de choque dos dois macacos fossem
idênticos. A realidade dos choques
era idêntica nos dois macacos. No entanto, o macaco da esquerda (o que apertava
o botão) permaneceu saudável, ativo, feliz, enquanto o macaco da direita se
tornou deprimido, emagreceu e adoeceu. Se os dois recebiam a mesma
quantidade de agressão física, por que a resposta clínica foi diferente?
A diferença é que o macaco da esquerda
tinha a impressão de controle sobre os choques, enquanto o macaco da direita
ficava a mercê do choque ser desligado pela vontade de outrem. Nós humanos
somos iguais a estes macacos. A perspectiva
de falta de controle sobre nossa realidade
incomoda bastante a mente humana. Por algum motivo, talvez instinto de
sobrevivência, não aceitamos a perda de controle. Isto ocorre a despeito da realidade de
que não temos controle absoluto sobre nosso destino, o qual é regido
prioritariamente pelo acaso social (encontros e desencontros) e acaso biológico
(interações moleculares de um sistema complexo). Ou, sob outra ótica, regido por uma “força maior” que se
traduz com aparência de acaso.
E é exatamente esse fenômeno mental que nos distancia do paradigma da medicina
baseada em evidências. Mesmo que não tenhamos controle, ter a perspectiva de controle é suficiente para nossa
satisfação, tal como no caso do macaco que desligava o choque, mas não tinha
controle sobre a quantidade de choques ou quando eles surgiam.
Em medicina, muitas condutas não mudam a realidade do indivíduo. Porém dão ao
paciente e a seu médico a perspectiva
de estar fazendo alguma coisa, a ilusão de controle sobre o desfecho. Por
este motivo, tratamentos complexos, dolorosos e de alto custo são usados mesmo
que não mudem o desfecho (realidade) do paciente; exames desnecessários são utilizados,
promovendo o fenômeno do overdiagnosis,
prejudicando o paciente. Tudo isso para que tenhamos uma perspectiva de controle sobre nossa realidade.
Nestes casos, estamos nos comportando como os macacos dos experimentos. Perdemos a racionalidade.
Tratamentos quimioterápicos são usados
até o último momento em pacientes terminais, pois o maior sofrimento seria a
sensação de perda de controle, de jogar a toalha. Assim como angioplastias
coronárias (desprovidas de benefício clínico) são realizadas em pacientes
assintomáticos, apenas para trazer ao paciente e seu médico a falsa sensação de ter resolvido o
problema.
Na
esfera diagnóstica, nos traz uma reflexão neste sentido o recente artigo publicado no New England Journal of Medicine, intitulado Effect of Three Decades of Screening Mammography on Breast-Cancer Incidence. O trabalho descreveu as incidências de
câncer de mama em estágio inicial e em estágio avançado ao longo dos últimos 30
anos nos Estados Unidos, demonstrando o impacto da introdução da triagem de
câncer na população. De fato, houve uma aumento relativo de 100% no diagnóstico
de “câncer” em estágio inicial, de 122 para 234 casos diagnosticados a cada
100.000 mulheres. Com tantos “cânceres” diagnosticados em estágio inicial,
seria de se esperar uma redução substancial dos cânceres em estágio avançado,
pois estes passariam a ser diagnosticados mais precocemente. Porém a incidência
de câncer avançado sofreu mínima redução, de 102 para 94 casos a
cada 100.000 mulheres. Por que
isso? O fato é que vários desses “cânceres” diagnosticados precocemente são
“lesões” que não irão evoluir para um verdadeiro câncer. Esses “cânceres”
precoces não são os precursores dos cânceres verdadeiros, aqui denominados de
avançados. Por isso, ao diagnosticar e tratar um “câncer” em estágio inicial,
não houve impacto sobre os verdadeiros cânceres (avançados). Porém este
tratamento deve ter promovido piora da qualidade de vida nas mulheres, agora
rotuladas de portadoras de um câncer, sendo submetidas a terapias agressivas,
quimioterapia, radioterapia, mastectomias. É brincadeira?
O
screening do câncer de mama serve
para nos dar uma perspectiva de
controle sobre essa doença. Quase que apenas isso, pois na prática a realidade
não muda. O risco de morte por câncer de mama permanece o mesmo. É baseado
neste raciocínio que o US Prevention Task Force contra-indicou screening
anual para câncer de mama entre os 40 e 50 anos de idade, gerando revolta por
parte de médicos que realizam o procedimento de mamografia.
Na
mesma linha de raciocínio está a
ilusão da pesquisa de doença coronária no indivíduo assintomático, comentada na
última postagem deste Blog. Sabe-se que (salvo extremos de gravidade) encontrar doença
subclínica não reduz risco, pois procedimentos invasivos não
trazem benefício. Trariam controle dos sintomas, se necessário, mas controle de
sintomas no assintomático não é necessário.
Na esfera prognóstica, propagamos a idéia
de que precisamos encontrar uma forma de predizer exatamente quem terá e quem
não terá um infarto. Julgamos que nossas ferramentas atuais são fracas porque
erram algumas vezes e determinamos a necessidade de novos biomarcadores. Novos
biomarcadores surgem e são incorporados na clínica a despeito de pouco valor
incremental do ponto de vista científico: proteína C-reativa, microalbuminúria,
espessura médio-intimal de carótidas. Na verdade, predizer o futuro é um grande
desafio, é natural errar algumas vezes, e nunca teremos um modelo perfeito de
predição. A utilização sem base em evidência de novos biomarcadores serve para
nos dar a falsa perspectiva de
controle sobre nosso destino. Se pensarmos que a realidade nunca será totalmente previsível, ficaremos mais satisfeitos
com ferramentas clínicas como o escore de Framingham e seremos mais racionais
na análise critica de novos biomarcadores.
A realidade
é que não temos controle absoluto sobre desfechos clínicos e devemos evitar uma busca frenética por este controle, em detrimento da valorização
de evidências científicas. Ao escrever isso, é meu hemisfério cerebral
esquerdo (racional) que fala.
No entanto, o marketing do excesso de exames (check-up das revistas da TAM e GOL),
da indústria farmacêutica e de materiais médicos não trabalha com o cérebro esquerdo.
O marketing do consumismo trabalha
com o nosso hemisfério cerebral direito, intuitivo, sentimental, mais
facilmente seduzido.
O que é mais sedutor: “faça exames para
diagnosticar sua doença antes que ela complique sua vida, melhor prevenir do
que remediar” ou “check-up cardiovascular no indivíduo assintomático não muda
desfecho. Se contente com a imprevisibilidade da vida (insustentável leveza do ser, segundo Milan Kundera), apenas adote
medidas de controle dos seus fatores de risco e torça para não ser um azarado
que terá morte súbita.” Claro que a primeira opção é mais sedutora.
Portanto, nossa necessidade de controle é um dos mecanismos mentais que nos leva a negligenciar princípios científicos, a procura da
ilusão de que estamos tratando (mesmo sem tratar) e de que estamos prevenindo (mesmo
sem prevenir).
Precisamos mudar de perspectiva. Podemos pensar na perspectiva da qualidade de vida. Com
certeza, submeter pacientes assintomáticos a exames e tratamentos agressivos compromete
qualidade de vida. E isso nem sempre é compensado por melhora de sobrevida.
Meus votos para 2013 é o de mudança de perspectiva. Refiro-me à idéia de que a
eliminação de testes e tratamentos desnecessários pode melhorar nossa qualidade
de vida, evitando efeitos adversos indesejados. Só precisamos separar o que é conduta
médica benéfica e a que serve apenas de ilusão. Essa mudança de perspectiva será favorável ao raciocínio
clínico científico.
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