domingo, 20 de janeiro de 2013

Postagem de Ano Novo: Perspectiva versus Realidade



A maioria de nós possui um apreço especial pela mudança de ano, a despeito da realidade permanecer a mesma após a meia-noite do dia 31 de dezembro. O que faz da passagem de ano um momento especial é um outro tipo de mudança: a que ocorre com nossa perspectiva.

Consciente ou inconscientemente, este é um momento reflexivo, avaliamos os acertos e erros no ano passado, imaginamos novos objetivos, assumimos novas perspectivas. Isso é suficiente para promover certa sensação de temporária de plenitude, mesmo que a realidade permaneça igual.

Perspectiva é diferente de realidade e a primeira tem maior impacto do que a segunda. Nossa satisfação depende mais da perspectiva do que da realidade. Isto está demonstrado cientificamente e o experimento que descreverei me permitirá fazer um link entre perspectiva e prática médica.

Cientistas analisaram experimentalmente o comportamento de dois macacos (vários experimentos seqüenciais com diferentes pares de macacos), confinados em jaulas diferentes. Em ambos os casos, o chão das jaulas disparava choques elétricos simultâneos e intermitentes. Na jaula esquerda havia um botão para o macaco desligar a descarga elétrica, interrompendo o choque. A jaula da direita não possuía esta botão, porém sempre que o macaco da esquerda apertava o botão, a eletricidade era também desligada na jaula da direita. Isso fazia com que os tempos de choque dos dois macacos fossem idênticos. A realidade dos choques era idêntica nos dois macacos. No entanto, o macaco da esquerda (o que apertava o botão) permaneceu saudável, ativo, feliz, enquanto o macaco da direita se tornou deprimido, emagreceu e adoeceu. Se os dois recebiam a mesma quantidade de agressão física, por que a resposta clínica foi diferente?

A diferença é que o macaco da esquerda tinha a impressão de controle sobre os choques, enquanto o macaco da direita ficava a mercê do choque ser desligado pela vontade de outrem. Nós humanos somos iguais a estes macacos. A perspectiva de falta de controle sobre nossa realidade incomoda bastante a mente humana. Por algum motivo, talvez instinto de sobrevivência, não aceitamos a perda de controle. Isto ocorre a despeito da realidade de que não temos controle absoluto sobre nosso destino, o qual  é regido prioritariamente pelo acaso social (encontros e desencontros) e acaso biológico (interações moleculares de um sistema complexo).  Ou, sob outra ótica, regido por uma “força maior” que se traduz com aparência de acaso.

E é exatamente esse fenômeno mental que nos distancia do paradigma da medicina baseada em evidências. Mesmo que não tenhamos controle, ter a perspectiva de controle é suficiente para nossa satisfação, tal como no caso do macaco que desligava o choque, mas não tinha controle sobre a quantidade de choques ou quando eles surgiam.

Em medicina, muitas condutas não mudam a realidade do indivíduo. Porém dão ao paciente e a seu médico a perspectiva de estar fazendo alguma coisa, a ilusão de controle sobre o desfecho. Por este motivo, tratamentos complexos, dolorosos e de alto custo são usados mesmo que não mudem o desfecho (realidade) do paciente; exames desnecessários são utilizados, promovendo o fenômeno do overdiagnosis, prejudicando o paciente. Tudo isso para que tenhamos uma perspectiva de controle sobre nossa realidade.

Nestes casos, estamos nos comportando como os macacos dos experimentos. Perdemos a racionalidade.

Tratamentos quimioterápicos são usados até o último momento em pacientes terminais, pois o maior sofrimento seria a sensação de perda de controle, de jogar a toalha. Assim como angioplastias coronárias (desprovidas de benefício clínico) são realizadas em pacientes assintomáticos, apenas para trazer ao paciente e seu médico  a falsa sensação de ter resolvido o problema.

Na esfera diagnóstica, nos traz uma reflexão neste sentido o recente artigo publicado no New England Journal of Medicine, intitulado Effect of Three Decades of Screening Mammography on Breast-Cancer Incidence. O trabalho descreveu as incidências de câncer de mama em estágio inicial e em estágio avançado ao longo dos últimos 30 anos nos Estados Unidos, demonstrando o impacto da introdução da triagem de câncer na população. De fato, houve uma aumento relativo de 100% no diagnóstico de “câncer” em estágio inicial, de 122 para 234 casos diagnosticados a cada 100.000 mulheres. Com tantos “cânceres” diagnosticados em estágio inicial, seria de se esperar uma redução substancial dos cânceres em estágio avançado, pois estes passariam a ser diagnosticados mais precocemente. Porém a incidência de câncer avançado sofreu mínima redução, de 102 para 94 casos a cada  100.000 mulheres. Por que isso? O fato é que vários desses “cânceres” diagnosticados precocemente são “lesões” que não irão evoluir para um verdadeiro câncer. Esses “cânceres” precoces não são os precursores dos cânceres verdadeiros, aqui denominados de avançados. Por isso, ao diagnosticar e tratar um “câncer” em estágio inicial, não houve impacto sobre os verdadeiros cânceres (avançados). Porém este tratamento deve ter promovido piora da qualidade de vida nas mulheres, agora rotuladas de portadoras de um câncer, sendo submetidas a terapias agressivas, quimioterapia, radioterapia, mastectomias. É brincadeira?

O screening do câncer de mama serve para nos dar uma perspectiva de controle sobre essa doença. Quase que apenas isso, pois na prática a realidade não muda. O risco de morte por câncer de mama permanece o mesmo. É baseado neste raciocínio que o US Prevention Task Force contra-indicou screening anual para câncer de mama entre os 40 e 50 anos de idade, gerando revolta por parte de médicos que realizam o procedimento de mamografia.

Na mesma linha de raciocínio está  a ilusão da pesquisa de doença coronária no indivíduo assintomático, comentada na última postagem deste Blog. Sabe-se que (salvo extremos de gravidade) encontrar doença subclínica não reduz risco, pois procedimentos invasivos não trazem benefício. Trariam controle dos sintomas, se necessário, mas controle de sintomas no assintomático não é necessário.

Na esfera prognóstica, propagamos a idéia de que precisamos encontrar uma forma de predizer exatamente quem terá e quem não terá um infarto. Julgamos que nossas ferramentas atuais são fracas porque erram algumas vezes e determinamos a necessidade de novos biomarcadores. Novos biomarcadores surgem e são incorporados na clínica a despeito de pouco valor incremental do ponto de vista científico: proteína C-reativa, microalbuminúria, espessura médio-intimal de carótidas. Na verdade, predizer o futuro é um grande desafio, é natural errar algumas vezes, e nunca teremos um modelo perfeito de predição. A utilização sem base em evidência de novos biomarcadores serve para nos dar a falsa perspectiva de controle sobre nosso destino. Se pensarmos que a realidade nunca será totalmente previsível, ficaremos mais satisfeitos com ferramentas clínicas como o escore de Framingham e seremos mais racionais na análise critica de novos biomarcadores.

A realidade é que não temos controle absoluto sobre desfechos clínicos e devemos evitar uma busca frenética por este controle, em detrimento da valorização de evidências científicas. Ao escrever isso, é meu hemisfério cerebral esquerdo (racional) que fala.

No entanto, o marketing do excesso de exames (check-up das revistas da TAM e GOL), da indústria farmacêutica e de materiais médicos não trabalha com o cérebro esquerdo. O marketing do consumismo trabalha com o nosso hemisfério cerebral direito, intuitivo, sentimental, mais facilmente seduzido.

O que é mais sedutor: “faça exames para diagnosticar sua doença antes que ela complique sua vida, melhor prevenir do que remediar” ou “check-up cardiovascular no indivíduo assintomático não muda desfecho. Se contente com a imprevisibilidade da vida (insustentável leveza do ser, segundo Milan Kundera), apenas adote medidas de controle dos seus fatores de risco e torça para não ser um azarado que terá morte súbita.” Claro que a primeira opção é mais sedutora.

Portanto, nossa necessidade de controle é um dos mecanismos mentais que nos leva a negligenciar princípios científicos, a procura da ilusão de que estamos tratando (mesmo sem tratar) e de que estamos prevenindo (mesmo sem prevenir).

Precisamos mudar de perspectiva. Podemos pensar na perspectiva da qualidade de vida. Com certeza, submeter pacientes assintomáticos a exames e tratamentos agressivos compromete qualidade de vida. E isso nem sempre é compensado por melhora de sobrevida.

Meus votos para 2013 é o de mudança de perspectiva. Refiro-me à idéia de que a eliminação de testes e tratamentos desnecessários pode melhorar nossa qualidade de vida, evitando efeitos adversos indesejados. Só precisamos separar o que é conduta médica benéfica e a que serve apenas de ilusão. Essa mudança de perspectiva será favorável ao raciocínio clínico científico.
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