sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O Politicamente Correto e as Recomendações de Hábitos de Vida



Nós médicos, em especial cardiologistas, vivemos recomendando exercício físico e dieta saudável (pobre em gordura saturada, ricas em frutas, vegetais, peixes) para prevenção cardiovascular. No entanto, poucos param para pensar no nível de evidências a respeito destas recomendações. Independente do nível de evidência, soa bem, é politicamente correto falar em hábitos de vida saudáveis, mesmo que o médico não os obedeça pessoalmente ou que em alguns casos a recomendação deixe o cliente mais frustrado do que protegido contra um infarto.

Nesta postagem, faremos uma revisão dos níveis de evidência destas recomendações, o que nos levará a uma análise crítica de seu impacto global.

Vale salientar que se tenho um conflito de interesse pessoal, este é a favor de atividade física e alimentação adequada, quem me conhece sabe disso. No entanto, meu aparente entusiasmo por estes hábitos se baseia mais na qualidade de vida que estes me proporcionam, do que na convicção de que estes fazem bem ao meu coração.

No meu caso, os hábitos me agradam, me servem de lazer, me tornam mais sociável. Porém imaginem uma pessoa que não gosta de fazer exercício. Por exemplo, um cientista amigo nosso, inteligência privilegiada, blogueiro, há alguns anos me falou que não gosta de se exercitar, não gosta mesmo. Será que como cardiologista devo dizer que ele perderá a oportunidade de reduzir seu risco cardiovascular se não se exercitar? Onde está a evidência disso?

A verdade é que isto não está definitivamente demonstrado. A maioria das evidências se resume a estudos observacionais e a história está repleta de exemplos indicando que estudos observacionais possuem grande possibilidade de errarem quanto ao impacto de hábitos de vida. Nestes estudos, aparentes benefícios são normalmente mediados por fatores de confusão que se associam aos hábitos. Estudos observacionais demonstram que chocolate faz bem ao coração, que café e vinho reduzem mortalidade geral e cardiovascular, que uso de suplementos vitamínicos reduzem câncer e doença cardiovascular e que terapia de reposição hormonal reduz risco de doença cardiovascular. Nos dois últimos casos, temos ensaios clínicos que contradizem estas observações, mostrando que estes efeitos não são verdadeiros, haviam sido mediados por fatores de confusão. Nos três primeiros casos, permanece a grande dúvida.

Considerando o potencial para fatores de confusão, é muito possível que estudos randomizados venham a contradizer os observacionais. Foi exatamente o que aconteceu com a idéia de prescrição de exercício em pacientes com insuficiência cardíaca. Ao contrário da expectativa, o ensaio clínico HF-ACTION  não demonstrou benefício de programas de atividade física. 

Em prevenção primária, não há ensaio clínico randomizado avaliando se exercício reduz risco cardiovascular. Todos são estudos observacionais, repletos de fatores de confusão, pois quem se exercita é muito diferente do que aqueles que não se exercitam. É certo que o grupo que se exercita tem um perfil de saúde melhor do que os sedentários. Pode ser exatamente esse perfil que os faz (ou os permite) se exercitarem. E não o contrário. 

Vale salientar que os estudos observacionais utilizam de análise multivariada a fim de ajustar para estes fatores. Porém, sabe-se que sempre fica efeito de confusão residual. Esta solução estatística não é suficiente. Neste caso, seria essencial o método intervencionista randomizado, para anular os fatores de confusão. Quando randomizamos, os grupos tornam-se idênticos, não há mais confusão. Infelizmente, não há este desenho de estudo avaliando o impacto da atividade física em desfechos cardiovasculares. 

Portanto, não sabemos: exercício pode ser bom (como se espera), neutro ou ruim (inesperado, mas foi o caso da terapia de reposição hormonal; assim como da vitamina E aumentando risco de câncer de próstata).

No entanto, médicos ficam por aí superestimando o benefício destas medidas, tal como ouvi no rádio um dia desses: “se você se exercitar, reduzirá seu risco de infarto em 90%”. Puxa vida, nunca vi um tratamento que praticamente anule o risco.


US Prevention Task Force

Na semana passada, o US Prevention Task Force publicou as indicações sobre dieta e exercício para prevenção cardiovascular, definindo-as como grau de recomendação C. O Task Force utiliza o Sistema GRADE de recomendação, já comentado neste Blog. Só para lembrar, graus A e B recomendam a conduta, grau C é usado quando a conduta não é recomendada em geral, mas individualmente pode ser considerada, enquanto grau D é contra-indicação. Ou seja, o Task Force não contra-indica, porém chama atenção de que estas recomendações não são obrigatórias, podendo ser recomendadas a depender do caso.

Esse baixo nível de recomendação é justificado pela excelente revisão sistemática feita pelo Task Force: não existe ensaio clínico em exercício e, para desfechos clínicos, existe apenas um ensaio clínico em dieta saudável. Este é o Women’s Health Initiative, que randomizou 48.000 mulheres para aconselhamento intenso sobre dieta versus conduta padrão, não demonstrando tendência alguma a prevenção de desfechos cardiovasculares.

O restante dos ensaios clínicos avaliaram desfechos substitutos, como medida de colesterol, pressão arterial e adiposidade. A revisão demonstra que há melhora estatisticamente significante destes desfechos, porém de mínima magnitude, sem relevância clínica. Por exemplo, a redução do LDL-colesterol com medidas de hábitos de vida é da ordem de 5 mg/dl.

Neste contexto, aproveito para analisar o Lyon Diet Heart Study, um ensaio clínico randomizado que sugeriu ser a dieta do mediterrâneo capaz de prevenir reinfarto, com redução absoluta do risco de infarto de 16% (NNT = 6), um efeito impressionante, nunca alcançado por uma terapia farmacológica. Este é mais um exemplo da falta de poder estatístico fazendo com que o acaso promova resultados impressionantes em estudos pequenos. Este estudo tinha apenas 400 pacientes e nem mesmo cita o cálculo do poder estatístico. Além disso, este foi um estudo truncado, agravando ainda mais o risco (quase certo) deste inverossímil resultado ter sido obra do acaso. É um bom exemplo de um ensaio clínico cuja informação tem alta probabilidade de ser falsa.

Baseado nestes argumentos, o grau de recomendação C significa o seguinte: se for conveniente, recomende; do contrário, não encha o saco de seu paciente. 

Pessoalmente, eu faço exercício pois me é conveniente; se não fosse, eu não faria. Quanto à dieta, deve ser sugerido um padrão saudável, porém sem radicalismo ou sem a demonização de certos alimentos que fazer parte de nossa cultura do lazer. Acarajé, não devemos comer todo dia, até porque é muito calórica. Mas no domingo, não há problema. Se a pessoa tem colesterol elevado, deve usar estatina, isso sim. Parece óbvio o que estou falando, porém muitas vezes perdemos a perspectiva da evidência e sustentamos excessivamente nossa recomendação neste tipo de medida.

Que mal faria sermos politicamente corretos e enaltecermos (de forma falsa) o benefício dos hábitos de vida no consultório e na imprensa?

O Task Force traz esta reflexão:

Potential Harms: Harms may include the lost opportunity to provide other services with a greater health effect.

Em nome do politicamente correto, é comum a conduta de primeiro tentar medidas de hábitos de vida, em detrimento de terapias com eficácia comprovada. Ou seja, “se você ajustar os hábitos de vida, não será necessário o uso de remédio por enquanto (estatina, anti-hipertensivo).” Ora, seria trocar um tratamento cujo benefício clínico é largamente comprovado (e de grande magnitude em alguns casos), por outro cujo benefício clínico não está comprovado. E essa cultura prevalece no consciente coletivo, de forma que o paciente usualmente prefere tentar primeiro resolver o problema de forma mais natural. 

Natural é desenvolvermos doença cardiovascular na medida que a envelhecemos. Se não queremos esse natural, temos que usar medidas mais agressivas do ponto de vista preventivo, mesmo que soem como não anti-naturais. Se há condutas preventivas comprovadas, estas devem ser adotadas para quem precisa, e não ficar a mercê do politicamente correto.

Usualmente falo contra a medicalização da sociedade. Veja que nesse momento o discurso parece diferente. Tentar manter o mesmo discurso neste momento soaria como politicamente correto, mas o que importa é o benefício para o paciente. Quando a droga é benéfica, deve sim ser utilizada. 

Perda de Peso

Essa discussão pode ser ampliada para o problema da obesidade. Claro que é melhor não ser obeso e a recomendação de perda de peso deve ser feita nos consultórios médicos. No entanto, sabemos que as medidas dietéticas e farmacológicas para perda de peso são pouco eficazes (ensaios clínicos) e muito pouco efetivas (mundo real) em relação à magnitude da perda ponderal. Em crianças, educação alimentar pode remodelar definitivamente o biótipo da pessoa, ter o foco no peso é muito importante. Porém, são poucos os gordinhos que (sem cirurgia bariátrica, cujo impacto em desfechos clínico ainda precisa ser testado) conseguem se tornar definitivamente magros. Ou melhor, alguma dieta maluca até consegue isso temporariamente, porém a maioria volta ao seu estado natural tempos depois. 

Reconheço esse discurso como niilista, mas é assim mesmo. Essas pessoas passam a vida se martirizando, sentindo-se culpadas, inferiores. Os amigos e parentes passam a vida censurando essas pessoas. Obesidade não é bom. No entanto, não há demonstração clínica de que a perda de peso reduza eventos clínicos cardiovasculares.

Em outubro de 2012, resultados preliminares do ensaio clínico Look AHEAD foram anunciados na página do NIH, patrocinador do trabalho. Trata-se de uma ensaio clínico que randomizou 5.000 diabéticos obesos para programa intenso de dieta e exercício versus terapia padrão. Não houve redução de eventos cardiovasculares. Além disso, o impacto da perda de peso no controle do diabetes foi modesto.

Se fala tanto no problema epidemiológico da obesidade, porém a mortalidade cardiovascular está progressivamente diminuindo no Brasil e no mundo ocidental. Isto porque maior impacto está no controle do colesterol e da pressão arterial.

Observem bem, não estou defendendo a obesidade. A recomendação de perda de peso deve existir.  Porém deve existir na proporção da evidência que a suporta e não baseada na impressão visual ao ver uma pessoa acima do peso. Precisamos contextualizar o caso, quando se trata de uma pessoa que sempre foi acima do peso. Precisamos mudar o foco para qualidade de vida. E qualidade de vida depende de auto-estima. Portanto, se esta pessoa dormir bem (não tiver apnéia do sono), tiver colesterol controlado (com droga ou sem droga) e pressão normal, deixe ela ser feliz. Não diga “obesidade é uma doença”. Obesidade não é doença, é fator de risco. E como fator de risco é mediada por outros, que podem ser controlados. Se estas coisas estiverem bem, não precisamos demonizar o biotipo da pessoa.

O fato de uma fator ser associado a risco não é condição suficiente para que seu controle reduza o risco. Isso tem que ser demonstrado.

Medidas de hábitos de vida e perda de peso devem existir no diálogo com os pacientes, porém de forma inteligente e contextualizada.

Pensar no nível de evidência que suporta nossas recomendações pode trazer mais empatia ao diálogo com nossos pacientes. Temos quer ser mais enfáticos no controle do colesterol e da pressão arterial e na recomendação contra do tabagismo. Já nas recomendações sem comprovação de benefício, estas devem se basear mais na qualidade de vida que elas proporcionam. E se uma conduta traz qualidade de vida, isso depende muito do estilo e crença de nosso paciente.

No raciocínio medico, o politicamente correto serve de marketing pessoal. Um marketing medíocre.