Parece até que
foi resposta à nossa última postagem, quando
discutimos a respeito do contraste entre o entusiasmo depositado em dieta
saudável e a ausência de evidências definitivas de benefício
cardiovascular. Naquela postagem, estendemos essa observação à dieta do
mediterrâneo, tendo em vista a baixa qualidade científica do estudo de Lyon.
Poucas semanas
após nossa postagem, foi publicado online o New England Journal of Medicine o estudo PREDIMED (financiado pelo governo espanhol), o qual
randomizou 7.447 indivíduos de alto risco cardiovascular para dieta do
mediterrâneo versus dieta controle
(hipolipídica), demonstrando que o grupo mediterrânico apresentou redução na
incidência de eventos cardiovasculares.
Fui tomado por
entusiasmo, pela primeira vez uma dieta de benefício cardiovascular
demonstrado. A primeira impressão era excelente, um ensaio clínico randomizado
e de grande tamanho amostral. No dia em que vi a notícia, mesmo antes de ler o
artigo, cheguei a recomendar para um de meus pacientes de consultório a dieta
do mediterrâneo, comentando sobre a publicação do estudo. Agora eu poderia
indicar dieta baseada em evidências.
No domingo
seguinte, assisti no programa Fantástico
reportagem de 5 minutos dando a boa notícia. O Fantástico foi até a Europa,
mostrou do que se tratava a dieta, entrevistou donos de restaurantes ou de
lojas de comida. Mais do que isso, o Fantástico fez uma apresentação formal de artigo científico, com critérios de inclusão,
definição de desfechos, resultados encontrados.
Mas o que é
mesmo essa tal dieta do mediterrâneo? Em resumo, consiste em grande quantidade
de azeite de oliva, nozes, amendoim, frutas, vegetais, legumes, peixes, mariscos,
preferência por carne branca e estímulo ao consumo moderado de vinho. Na
verdade, uma dieta prazerosa, embora de custo mais elevado do que o brasileiro
médio está acostumado.
Confesso que me
deixei tomar pelo entusiasmo, até mesmo porque ceticismo científico não é
torcer contra a demonstração de benefícios. Esta postura científica apenas
sugere a aceitação de verdades com base em critérios pré-definidos que definam
a evidência como suficiente para rejeitar a premissa inicial da hipótese nula.
Uma vez essa hipótese rejeitada, devemos acreditar no fenômeno, como algo
demonstrado frente ao mundo de incertezas que nos rodeiam. E foi com este
espírito que comecei a ler o estudo PREDIMED, seguindo nosso tradicional check-list
de erros sistemáticos ou aleatórios.
Análise de Erros Sistemáticos
Primeiro, um
grande ensaio clínico randomizado, o que promoveu amostras idênticas, sem
diferenças clínicas. Isso previne que fatores de confusão expliquem os
resultados encontrados, como ocorre comumente em estudos observacionais. Esse
problema não existe no PREDIMED. O desfecho primário foi o combinado de morte,
AVC e infarto, desfechos duros (hards),
pouco susceptíveis ao viés de aferição que ocorre com desfechos subjetivos,
moles (softs). Como este é um estudo
aberto (impossível cegar dieta), haveria maior risco de viés de aferição se os
desfechos fossem softs, pela sua
subjetividade. Mas sendo os desfechos hards,
fica minimizada a possibilidade de interpretação enviesada dos investigadores
quanto a ocorrência de desfechos. A análise foi corretamente por intenção de
tratar e houve boa aderência à dieta proposta, dando confiabilidade aos
resultados.
Desta forma, me
parecia ser um estudo de qualidade no que diz respeito a vieses.
Análise de Erros Aleatórios (Acaso)
O valor de P nos deixa confortáveis quando a um menor risco de erro tipo I,
aquele em que uma falsa diferença é encontrada. O valor de P foi significativo
em relação ao desfecho primário. Sendo a conclusão baseada no desfecho
primário, reduz-se a probabilidade do erro aleatório. Até então estávamos indo bem.
De repente, me surpreendi com a leitura
de uma sentença: on July 22, 2011, the data
and safety monitoring board recommended stopping the trial on the basis of end
points documented through December 1, 2010. Trata-se de um estudo truncado!
Estudo Truncado
Ao perceber isso, tentei rapidamente
encontrar argumentos para me convencer que este seria uma problema menor. Afinal, sendo um estudo de dieta, eu
estava inclinado a ser menos rígido em minha análise. Já comentamos sobre
estudos truncados várias vezes neste Blog.
Sabe-se que quando o número de desfechos é maior do que 500, o estudo fica
menos sujeito ao erro tipo I causado pelo truncamento. Ansiosamente, procurei
na tabela este número e para minha frustração foram apenas 288 desfechos no
estudo, tornando o estudo vulnerável ao erro tipo I.
Estudo truncado é aquele que é
interrompido precocemente devido à demonstração de benefício. O problema é que
antes de terminado o estudo, o resultado favorável tem maior risco de ser
decorrente do acaso. Se este for o caso, ao truncar, perde-se a possibilidade
de corrigir o acaso com o progredir do estudo. Embora o estudo tenha
randomizado o número planejado, o seguimento dos pacientes foi reduzido pela
metade, reduzindo o número de desfechos para muito abaixo do inicialmente
planejado. O cálculo amostral foi baseado na expectativa de 12% de desfechos no
grupo controle, no entanto se alcançou apenas 4.4% de eventos, o que reduz o
poder estatístico. O plano era de 6 anos de acompanhamento para todos os
pacientes, porém mais da metade teve menos de 5 anos de acompanhamento (mediana
= 4.8 anos). O estudo portanto tem um poder estatístico menor, aumentando a
possibilidade do resultado ser decorrente do erro tipo I.
Além do problema da redução de poder
estatístico, todo estudo truncado é tendencioso por ser interrompido apenas
quando o resultado está sendo favorável à hipótese.
Lembrem-se do estudo truncado do
Xigris, cujo truncamento promoveu uma inverdade que durou anos, até a
publicação de um estudo completo, que negou o benefício daquela droga.
Por que apenas AVC?
Ainda
inconformado com a bobagem de terem interrompido esse marcante estudo, me
deparei com uma outro problema que me deixou intrigado. A redução do desfecho
combinado foi decorrente apenas da redução de AVC, sem redução numérica de
morte ou infarto.
Havia dois
grupos de dieta do mediterrâneo, um com mais azeite de oliva e outro com mais
nozes.
A incidência do
desfecho combinado foi 3.8% no grupo azeite versus
4.4% no grupo controle. Essa diferença foi decorrente do desfecho AVC (1.9% versus 2.4%), sem diferença em infarto
(1.5% versus 1.6%) ou morte
cardiovascular (1.0% versus 1.2%).
A incidência do
desfecho combinado foi 3.4% no grupo nozes versus
4.4% no grupo controle. Essa diferença foi decorrente do desfecho AVC (1.3% versus 2.4%), sem diferença em infarto
(1.3% versus 1.6%) ou morte
cardiovascular (1.3% versus 1.2%).
Quanto a morte,
é compreensível a dissociação com os outros desfechos, pois é mais difícil
reduzir morte do que eventos não fatais. Por outro lado, os tratamentos que
reduzem AVC, reduzem infarto também (estatina, anti-hipertensivo). Por que
neste caso, houve redução apenas de um desses componentes? Isso é uma pista de
que o achado pode ter realmente decorrido do acaso.
Além do acaso,
há outra possibilidade, embora esta não se possa ser demonstrada. AVC é um
desfecho particularmente prevenido por redução de pressão arterial. Por ser
aberto, este é um estudo que pode sofrer de performance bias, visto que o
número de visitas com nutricionista, reuniões, enfim, a atenção dada ao grupo
mediterrâneo foi maior do que ao grupo controle. Isso pode ter resultado em
melhor controle da pressão, seja por medidas não farmacológicas ou até
farmacológicas decorrentes de um melhor acompanhamento multidisciplinar destes
pacientes. Neste caso, seria importante que os autores comparassem o nível de
controle da pressão arterial durante o estudo entre os dois grupos. Isso iria
tirar essa dúvida. Porém este dado não foi fornecido.
O grupo da dieta
do mediterrâneo tinha reuniões motivacionais com a equipe controladora da dieta
a cada 3 meses, enquanto o grupo controle apenas recebia panfletos em casa
durante os primeiros 3 anos do estudo. No meio do estudo, os autores decidiram
mudar o protocolo para uma maior número de visitas no grupo controle, com
receio de que isso representasse um viés. É interessante notar que a diferença
entre os grupos surgiu precocemente, coincidindo exatamente com esse
período inicial de melhor atenção dada ao grupo mediterrâneo. O protocolo foi
mudado, mas o estrago já estava feito...
Toda esta
análise demonstra que não basta que o estudo seja randomizado e tenha grande
tamanho amostral. Independente do tamanho amostral, o acaso pode ocorrer quando
o número de desfechos é pequeno e o estudo é interrompido tendenciosamente a
favor do benefício. Além disso, o estudo ideal é o cego, pois previne efeito
placebo, interpretação duvidosa de desfechos e performance bias. A diferença
nítida de atenção entre os grupos, coincidindo com a precocidade do benefício
justamente antes da correção parcial deste problema, gera muita preocupação.
Enfim, para
minha frustração ao final da leitura, percebi que estava com um estudo com
baixo nível de veracidade, demonstrando uma nítida dissociação entre entusiasmo
e evidência.
Magnitude do Benefício
Na fantástica
reportagem do Fantástico, foi mencionado por um dos especialistas que “o
benefício da dieta foi tão grande que o estudo precisou ser interrompido
precocemente.” Como se avalia magnitude do benefício mesmo? Simples, calculando
o NNT. O NNT foi de 166 para dieta com mais
azeite e 100 para dieta com mais nozes. Ou seja, a redução de risco não foi
grande, pelo contrario, foi pequena (NNT > 50 à custa de evento não fatal).
De uma certa forma, isso é compatível com o impacto de um medida não
farmacológica.
Conversa com o Cliente
Como conversar
com nossos clientes sobre dieta após o estudo PREDIMED? Acredito que possa ser
mencionado que seria de bom tom a preferência por azeite do oliva em relação ao
óleos saturados, além de frutas, saladas, peixes, etc. Utilizar um pouco da
definição de dieta mediterrânea para explicar o que é um comportamento saudável
pode fazer sentido.
No entanto, isso
é diferente de recomendar esta dieta como terapia preventiva. Ou seja, não
temos embasamento para dizer ao cliente que use pelo menos 4 colheres de sopa
ao dia de azeite, nozes, 3 porções de frutas ao dia, 2 porções de salada ao
dia, peixe 3 vezes por semana, 7 taças de vinho por semana. Isso dá trabalho e custa dinheiro para ser recomendada sobre a premissa de benefício. O que
devemos sugerir é que a pessoa tenha hábitos saudáveis e este tipo de dieta
pode ser um exemplo de saudável.
Reflexão
Interessante
perceber o tipo de entusiasmo de “especialistas” a respeito deste estudo. É um
entusiasmo baseado no resultado do trabalho, porém desprovido de análise
metodológica. Por exemplo, observem o vídeo de
cinco minutos em que Eric Topol fala sobre o estudo PREDIMED no
Medscape. Em nenhum dos cinco minutos há uma análise da metodologia do
trabalho, apenas elogio ao tamanho amostral. O entusiasmo a respeito de um
trabalho deve guardar relação com o nível de evidência que este oferece e não
apenas com o resultado apresentado pelo estudo.
Lembremos da frase de Peter Gann: Epidemiology
teaches that every association has only 3 possible explanations: bias, chance
and cause. Antes de considerar a relação causal, precisamos afastar viéses e acaso.
Mas por que será
que falta análise critica? Francis Bacon dizia que "somos muito mais movidos
pelas afirmações do que pela negação". Ou seja, nossa mente é tão atraída por resultados positivos,
que rejeitamos facilmente a dúvida. Aceitamos argumentos fracos. A mente humana
apaixona-se pelas associações positivas. E como se sabe, paixão é cega. Alguém
apaixonado não vê as falhas do objeto da paixão, apenas as virtudes. Somos sentimentais, usamos nosso cérebro
direito quando na análise de evidências deve prevalecer o hemisfério cerebral
esquerdo.
A dieta do
mediterrâneo deve ser vista como uma hábito alimentar razoável, porém não como
um tratamento preventivo. Não temos este nível de evidência.
Não basta ser grande e randomizado. Em medicina baseada em evidências, a primeira impressão nem sempre fica.
Não basta ser grande e randomizado. Em medicina baseada em evidências, a primeira impressão nem sempre fica.