A mente humana
tem propriedades que parecem adequadas, mas que podem nos trair. Aqui me refiro
ao fenômeno da mente crente, termo que reflete nossa tendência de nos excitarmos
mais por afirmações do que por negações. Temos um interessante
tropismo pela crença, mesmo que a idéia tenda mais para a fantasia
do que para realidade. Em contraste com essa nossa tendência, o pensamento
científico moderno prega o ceticismo: a crença deve depender da prova,
principalmente quando estamos tomando decisões racionais.
Somos crentes
por duas razões evolutivas. Primeiro, a necessidade de entender como o universo
funciona. No início, quando quase nada sabíamos, tendíamos a fazer conexões
causais desprovidas de lógica, em uma incessante tentativa de entender os
fenômenos a nossa volta. Era compreensível que nossos ancestrais acreditassem
no absurdo (p.e., a dança para atrair chuva). Em segundo lugar, havia o
instinto de sobrevivência. Quando o vento balançava as árvores, era mais seguro
achar que poderia ser um animal perigoso se aproximando e correr. Facilmente
acreditávamos no perigo e em suas soluções fictícias.
Com a evolução
científica, deveríamos ter nos tornado mais rigorosos no acreditar, porém nosso
processo mental ainda guarda características primitivas. Por este motivo que
acreditamos facilmente que coisas inocentes fazem mal e acreditamos que falsos
tratamentos fazem bem. Assim surgem os mitos relacionados a assuntos de saúde.
Dizem que frango
de granja é deletério à saúde, devido a sua grande quantidade de hormônios (o
que poderia provocar câncer), gerando o culto
à galinha caipira. Isso não faz sentido, pois uma dose de hormônio custa
mais caro do que o frango inteiro. Na verdade, o frango de granja é maior
porque é condicionado a comer mais, de forma confinada. Porém, prefere-se um
frango caipira, este mais vulnerável a doenças infecciosas por ter contato
livre com outros tipos de animais e por se alimentar de qualquer coisa que acha pela frente. Mesmo assim, alguns preferem pagar
mais caro pelo mito.
Vejam o mito de
que adoçante artificial causa câncer. Essa idéia foi negada de forma
consistente por grande conjunto de estudos epidemiológicos, publicados em
revistas médicas de alto impacto, demonstrando que adoçante não causa câncer,
independente do tipo de produto (New Engl J Med 1980;302:537-41). No
entanto, o poder de afirmações é maior do que negações, permanecendo o mito, em
detrimento do conhecimento científico. Essa crença predispõe à preferência por utilizar
açúcar, predispondo à obesidade, este sim um problema real.
Também adoramos
atribuir falsos benefícios a coisas inertes ou maléficas.
Parece lógico
pensar que vitaminas trazem benefício à nossa saúde, pois estas tem ação anti-oxidante
e oxidação faz parte do mecanismo de doenças. Sendo assim, a lógica diz que o
uso de vitaminas traz benefício à saúde. Essa lucrativa crença sobrevive ao
longo de décadas. No entanto, todos os grandes ensaios clínicos demonstram que
vitaminas não previnem câncer, nem doença cardiovascular. Não servem para nada, a não ser para dar lucro.
Acima usei o
exemplo de homens acreditando que a dança influenciava na probabilidade de
chuva. Isto parece absurdo, o que nos faz pensar que naquela época éramos muito
mais ingênuos. Mas pensando bem: qual a
diferença entre esta crença (dança-chuva) e a crença de que a posição dos
astros no exato momento do nascimento de uma pessoa vai influenciar nos
acontecimentos de toda uma vida? Qual o pensamento mais absurdo? Os dois
exemplos me parecem desfrutar do mesmo grau de realismo fantástico, os dois
representam crenças não comprovadas por trabalhos que utilizam paradigmas da
metodologia científica contemporânea. Seria fácil e interessante realizar um
estudo de coorte prospectiva, multicêntrico, avaliando o valor preditor de
informações astrológicas. Por que será que isso não é realizado?
Esta comparação
mostra que nossa mente hoje em dia aceita o absurdo de forma semelhante à mente
de nossos ancestrais há milhares de anos atrás. É o fenômeno da mente
crente.
Por outro lado,
em relação a coisas como astrologia, há um atenuante. Neste caso, as pessoas
não estão comprando astrologia achando que isto é ciência. Isto é
bastante diferente de um cliente recebendo aconselhamento médico, situação na
qual o coitado acredita que a conduta recomendada é algo estabelecido
cientificamente. Astrologia não é algo que se compra sob a premissa de que a
atividade tem comprovação científica. Está mais para religião, crença ou fé,
e como diz o ditado popular, “religião não se discute”.
Por outro lado,
quando falamos de atividade profissional em serviços de saúde,
a coisa fica mais séria: “vender” um
falso benefício ou um benefício não devidamente estudado (como se fosse algo
comprovado) se aproxima da desonestidade. Ou pelo menos é ignorância do
profissional que aceita presunções sem questionamento.
O maior exemplo
é a homeopatia. Do ponto de vista do pensamento científico moderno, não há
lógica alguma: Para curar um problema, nós precisamos administrar uma substância que cause este mesmo problema. Segunda regra, antes de administrar nós devemos diluir tanto essa substância que não sobre nenhuma molécula na solução. Desta forma, a solução (água) terá um efeito curativo e quanto mais diluído, melhor. À luz da ciência do século XXI: claro que não, isso é ridículo. Mas de onde veio uma idéia tão estranha. Dá para explicar, essa idéia foi criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann em 1796, época em que a medicina parecia mais uma fábrica de horrores. Fazer nada muitas vezes era melhor do que as terapias propostas na época.
Em segundo
lugar, está comprovado cientificamente que homeopatia não possui efeito ativo além do
placebo. Portanto, não se pode vender isso como uma conduta médica. Seria
aceitável apenas se isso fosse classificado como uma atividade religiosa,
espiritual. Aquele tipo de coisa que não precisa ser tratado pela ciência
moderna.
Se quiser considerar homeopatia
como ato médico, esta terá que passar pelo mesmo crivo das terapias clássicas.
O crivo científico, com ensaios clínicos de fase I, II e III. Do contrário,
estará mais para religião ou fanatismo.
Na história
médica recente, várias condutas mitológicas foram aplicadas a pacientes
críticos, sendo abandonadas quando ensaios clínicos apropriados mostraram
ausência de benefício ou até mesmo malefício: terapia de reposição hormonal
para prevenção cardiovascular na mulher menopausada, levosimedan na ICC
descompensada, Xigris no choque séptico, controle intensivo da glicemia, transfusão
saguínea liberal, uso de cateter de swan-ganz,
apenas para citar alguns.
Como disse o historiador Richard Gordon, “A história da medicina é, em grande parte, a substituição da ignorância por mentiras.”
O Prejuízo do Fanatismo
Pagamos um preço
alto pelo fanatismo médico e esta é a razão de evitarmos este tipo de postura.
Abaixo enumero os principais custos da prática não embasada em evidências.
Primeiro,
podemos fazer algo maléfico sob a crença de benefício. A incerteza existe para os dois lados, por isso que a análise
estatística dos trabalhos é sempre bicaudal. Quando não sabemos se algo é benéfico, não sabemos também se é
maléfico. Os exemplos da terapia de reposição hormonal, do tratamento
agressivo da glicemia em pacientes críticos ou da transfusão sanguínea liberal
são condutas que se provaram maléficas no final das contas.
Segundo, ao
focar em um tratamento complexo e inútil, desfocamos de condutas benéficas, que
fariam muita diferença se fossem corretamente aplicadas. Inúmeras publicações
evidenciam grandes lacunas entre a comprovação do benéfico e a correta aplicação
destas condutas. Portanto, antes de adotar condutas fantásticas e não
comprovadas, poderíamos nos preocupar com a qualidade assistencial.
Gerenciamento de risco e adoção de protocolos sistematizados trazem a
efetividade (mundo real) mais próxima da eficácia demonstrada nos ensaios
clínicos. Há razões para acreditarmos que a correta implementação do que já
sabemos tem maior impacto potencial do que a invenção de novos tratamentos, os
quais usualmente possuem NNT modesto.
Terceiro, um
tratamento de eficácia não comprovada pode não fazer mal à saúde do paciente,
mas pode causar sofrimento sem a garantia de benefício. Amigdalectomia foi realizada de forma indiscriminada na década de 70 (eu fui uma dessas crianças).
Não sai sequelado, porém me lembro que não foi muito agradável o internamento,
o medo que senti da cirurgia, o pós-operatório. Só valeu mesmo por alguns dias
livres da escola.
Quarto, o custo
financeiro. Quanto se gastou com Xigris desnecessariamente? Muitas dessas novas
terapias têm alto custo, gerando grande prejuízo ao sistema de saúde.
Quinto, o
prejuízo científico. É o fenômeno de medical
reversal, termo que ilustra como o conhecimento científico muda a toda
hora, em um vai e vem incessante, uma hora a coisa é boa, daqui a pouco já não
é mais. Muito acreditam que isto ocorre porque a ciência evolui rapidamente, porém a verdade é que as idéias são criadas
de forma precipitada, sem a evidência científica adequada. São verdades criadas
sob alicerces tão fracos que qualquer vento que passa as derruba.
Isso
causa desorganização no processo de acúmulo do conhecimento científico,
confundindo os médicos em relação à verdade científica. Embora criados sob fracos alicerces, certas coisas são tão repetidas que
passam a se tornar verdade no consciente coletivo. “Uma mentira repetida muitas
vezes vira verdade.” Estes mitos são tão consolidados pela repetição, que
evidências científicas demonstrando falta de benefício não são suficientes para
derrubar tais falsos paradigmas. Por este motivo que os médicos continuam
abrindo tardiamente artérias em paciente com infartos instalados, continuam
fechando forâmen oval patente, continuam fazendo angioplastias em pacientes com
isquemia silenciosa, mesmo com a demonstração de que nada disso tem benefício.
Reflexão sobre a Medilândia
Reconheço que o
discurso que aqui faço não é sedutor. Imaginem um profissional de educação
física sendo entrevistado por Ana Maria Braga em seu programa matinal e, ao ser
perguntado sobre benefícios cardiovasculares, responder que não há comprovaçãode que exercício físico previne infarto.
E ainda mais, dizer que exercício físico não reduz peso, nem pressão arterial,
nem colesterol, de acordo com ensaios clínicos randomizados. Na verdade, esta
crença vem da ilusão criada por efeitos de confusão de estudos observacionais.
Se a resposta fosse honesta
e acurada, o programa perderia audiência, o profissional perderia clientes e
nunca mais seria convidado para aparecer na Globo. Nada sedutor.
Porém o que
temos que perceber é que a verdade não
existe para ser sedutora. Por acaso, quando estamos a seduzir uma mulher
(ou um homem), somos totalmente transparentes? A fantasia, esta sim, é apaixonante. Esta paixão é adequada quando estamos
em lugares como Disneylândia. Por outro lado, é inadequada quando estamos no consultório
médico ou à beira do leito de um paciente. Nestas
situações, não podemos adotar o paradigma da Disneylândia. Não podemos adorar a medilândia.
No âmbito
espiritual, a fé pode ser benéfica. Seja por efeito psicológico,
seja porque de fato energias cósmicas podem vir a nos beneficiar. Sendo assim, ter fé pode ser uma boa opção e dependerá da escolha de cada um. Por outro lado, no âmbito
profissional, não podemos ser fanáticos, não temos este direito.
Em algum
momento, temos que fazer esta reflexão e decidirmos entre duas opções. A
primeira é a opção por uma postura equilibrada, pouco emotiva, adotando
condutas demonstradas cientificamente. A segunda opção é pelo fanatismo,
optando por condutas médicas embasadas em fantasia. Qual destas duas opções nos
parece mais adequada?
É a escolha
entre medicina baseada em evidências e medicina baseada em fantasia (medilândia).