Embora a visão seja um atributo essencial à percepção da realidade, a cegueira exerce importante
função científica e clínica. Função científica, como parte da metodologia de
trabalhos científicos. Função clínica, na medida em que o pensamento
diagnóstico deve levar em conta certas variáveis, porém deve fazê-lo de forma
cega em relação a outras variáveis confundidoras. Explicaremos nesta postagem o
valor clínico da cegueira, o qual é em geral pouco compreendido.
Um dos mais influentes pensadores, Immanuel
Kant (século XVIII), nos trouxe a perspectiva de
que a imagem que construímos do mundo a nossa volta não se baseia apenas no que
existe, mas também do que nós criamos mentalmente. Ou seja, nossa percepção
da realidade resulta da interação entre visão
e mente. E quando falo em visão, me
refiro aos sentidos em geral.
Realidade =
sentidos + mente.
A neurociência confirma a visão de Kant, demonstrando
cientificamente que os sentidos não são suficientes para construir uma noção
completa da realidade. Portanto, faz-se necessário que ações mentais completem as
lacunas deixadas pelos sentidos. Este é um processo mental necessário, porém esta dependência da mente na
construção da realidade torna subjetiva a percepção desta mesma realidade, nos
sujeitando a armadilhas de nosso inconsciente. Estas armadilhas surgem
quando interpretamos nossos sentidos com base em pré-conceitos da
realidade.
O Raciocínio Clínico
Analisemos o raciocínio diagnóstico. Este
é feito com base em um conjunto de informações que devem se somar, nos
convencendo de que o paciente é portador de uma dada condição clínica. Neste
caso, para que uma nova informação tenha valor incremental à informação prévia, estas duas devem ter caráter independente.
Por exemplo, eu posso desconfiar
(suspeita diagnóstica) que um indivíduo está com um quadro de insuficiência
cardíaca com base da história clínica (primeira informação). Em seguida, este
paciente é examinado e ausculta-se uma terceira bulha (segunda informação). A
informação da presença da terceira bulha deve incrementar nossa desconfiança de
que o paciente tem insuficiência cardíaca. No entanto, percebam que a terceira
bulha só vai incrementar a suspeita de insuficiência cardíaca, se esta segunda
informação for obtida de forma independente da primeira. Do contrario, ela é
redundante, não incrementa.
Informações
obtidas de forma independente possuem caráter incremental muito mais forte do
que informação obtidas de forma dependente. Se a ausculta da terceira bulha é
realizada com o conhecimento de uma forte suspeita de insuficiência cardíaca, a
dependência das duas informações fazem da terceira bulha um informação
redundante à primeira. Ou seja, corremos o risco de não estar confirmando a
suspeita, apenas repetindo o mesmo conceito prévio, de forma não incremental.
Esta é a diferença entre informação redundante e informação incremental.
Faz sentido, não?
Mas por que auscultar o paciente sob
conhecimento da suspeita de insuficiência cardíaca torna a terceira bulha
redundante? A resposta está em nosso
inconsciente. Observem que ausculta é algo muito subjetivo, mais ainda no
paciente taquicárdico. Ao crer que um paciente tem insuficiência cardíaca,
nossa percepção da presença da terceira bulha fica fortemente influenciada. E é
impossível controlar a ação do inconsciente.
O exemplo da terceira bulha é uma
forma de mostrar a influência de uma informação prévia na leitura de uma nova
informação. No entanto, na prática clínica é difícil dissociar a história do
exame físico, pois ambas são feitas pela mesma pessoa. Nos resta fazer um
esforço consciente para auscultar tentando não se impressionar pela história
clínica.
Uma provocação reflexiva é se não deveríamos fazer o exame físico antes da história clínica (se isso for socialmente possível). Pois o exame provém dos nossos sentidos, enquanto a história é o relato do paciente. Portanto o exame físico é mais influenciado por nosso inconsciente do que a história clínica.
Uma provocação reflexiva é se não deveríamos fazer o exame físico antes da história clínica (se isso for socialmente possível). Pois o exame provém dos nossos sentidos, enquanto a história é o relato do paciente. Portanto o exame físico é mais influenciado por nosso inconsciente do que a história clínica.
Por outro lado, o que aqui discutimos tem
bastante aplicação na leitura de exames complementares, pois estes são usualmente
realizados por médico diferente do clínico do paciente,
sendo possível que a leitura do exame seja cega. Quando o exame complementar é lido
sem o preconceito gerado pela noção do quadro clínico, seu valor incremental se
torna otimizado.
O Erro Histórico
A despeito da lógica apresentada no
raciocínio acima, historicamente os médicos foram treinados a considerar o quadro
clínico na leitura dos exames. É isso que chamo de erro histórico do
treinamento médico, o qual provoca heurísticas na interpretação clínica,
tornando-a menos acurada.
Erradamente, os médicos pensam que devem
saber o quadro clínico do paciente antes de ler um exame de imagem, por exemplo.
Pensam que isso aumenta a probabilidade de acerto. Mas o que aumenta é a
probabilidade do exame concordar com a suspeita clínica, o tornando redundante.
Assim, o exame fica mais como um algo confirmatório de uma suspeita, que pode
estar certa ou errada.
Com isso não estou dizendo que a clínica
não é importante, nem muito menos negando a tradicional frase “a clínica é
soberana”. Mas a clínica deve ter uma função diferente da situação descrita
acima. A falta desta percepção provoca o tal erro histórico. Vamos então esclarecer
como a clínica deve ser utilizada.
Em primeiro lugar, o valor da clínica está em apresentar ao médico realizador do
exame o conhecimento do motivo de sua realização. Ao ler uma tomografia de abdômen, é útil que o radiologista saiba
que o objetivo do exame é pesquisar dor abdominal aguda, pois ele vai olhar o apêndice e vesícula de forma atenta, em meio a todas as estruturas abdominais. No entanto, ele
não deve saber a probabilidade clínica de apendicite: baixa, média ou alta.
Pois se ele souber que é uma alta probabilidade, tenderá a descrever como
espessado apêndices que em outras circunstâncias nem chamariam a atenção.
Percebam a
diferença entre saber o motivo do exame versus
saber a probabilidade pré-teste do diagnóstico. Não podemos confundir os dois.
Um bom exemplo são os exames não
invasivos de pesquisa de isquemia miocárdica. Digamos, cintilografia
miocárdica. Ao receber um paciente para estudo da perfusão miocárdica, já está
implícito o motivo do exame, claro que é pesquisa de doença coronária. Daí o
médico não precisa saber mais nada, do contrário ele tenderá a ver isquemia nas
subjetivas imagens cintilográficas de pacientes cuja suspeita é forte ou
desconsiderar certos achados em pacientes com fraca suspeita. Percebam que neste caso o exame perde valor incremental, se aproximando de uma postura redundante
em relação ao quadro clínico. No entanto, é comum que o médico, antes de
interpretar a imagem, procure saber se o paciente tem dor típica e observe
cuidadosamente o eletrocardiograma de esforço do paciente. Este equívoco mutila
em grande parte o valor da imagem, cuja interpretação passa ser influenciada
por informações de menor acurácia, como sintomas e teste ergométrico. Principalmente quando as imagens tem caráter intermediário, o que é muito comum.
Correto é o médico interpretar a imagem
evitando informações prévias que gerem preconceito mental. Evitando a influência
do inconsciente.
E onde fica o quadro clínico então,
desprezado? De jeito nenhum, pois no raciocínio probabilístico (já muito
comentado neste Blog), o médico do
paciente fará o cálculo da probabilidade de doença, com base na
probabilidade pré-teste e no resultado do teste. Isso é o raciocínio Bayesiano, o qual pressupõe que as duas informações
tenham caráter independente.
Desta forma, a segunda utilidade do
quadro clínico está no cálculo da probabilidade pré-teste, que cabe ao médico
do paciente. De fato, a clínica é
muito importante.
Assim, há duas funções do quadro clínico.
Em
primeiro lugar, o médico operador deve saber o objetivo da solicitação, quando
se trata de um exame que avalia múltiplas variáveis, como o ecocardiograma, por
exemplo. Neste caso, a técnica correta é
realizar o exame inicialmente cego e após ter criado sua imagem mental da realidade do paciente, procurar saber o
motivo do exame. Isto para confirmar se ele deu devida atenção às valvas quando a suspeita for endocardite; ou se ele olhou direito o septo interventricular quando a suspeita for CIV.
Em segundo lugar, o médico que receber
o resultado do exame deve fazer o raciocínio probabilístico, o qual considera
do quadro clínico (probabilidade pré-teste).
Desta forma, fica clara a importância da clínica, a qual não deve ser confundida com permissividade da influência do inconsciente na leitura de uma informação. Para evitar a força do inconsciente, devemos utilizar da cegueira.
Desta forma, fica clara a importância da clínica, a qual não deve ser confundida com permissividade da influência do inconsciente na leitura de uma informação. Para evitar a força do inconsciente, devemos utilizar da cegueira.
Por que Pensamos
Errado ?
Devemos analisar os motivos que
distanciam o pensamento médico do valor da cegueira. Estes motivos
também residem em nosso inconsciente.
Como já comentado em nossa última postagem, nossa mente tem um
tropismo especial por informações positivas. Nos sentimos melhores médicos
quando damos um laudo positivo. Este tropismo ocorre em detrimento da
importância de laudos negativos. Lembremos que um exame acurado deve ter duas
propriedades, sensibilidade (encontrar os doentes) e especificidade
(encontrar os saudáveis). Em nossa mente, prevalece o valor da sensibilidade
sobre a especificidade. Não queremos que nenhum achado passe desapercebido por
nossos experientes olhos, enquanto nos preocupamos menos com as consequências
de uma falsa afirmação. Desta forma, o ecocardiografista quer saber se o
paciente tem alta probabilidade clínica de TEP, pois assim seu exame será mais capaz de encontrar uma mínima dilatação do
ventrículo direito (verdadeira?); o ecocardiografista quer saber se o paciente
teve um infarto, para que nenhuma alteração segmentar deixe de ser descrita,
mesmo hipocinesias discretas (verdadeiras?). Aqui uso exemplos de
ecocardiografia, não por achar que esta especialidade é mais equivocada do que
as demais, mas porque faço este exame em minha prática clínica, tornando mais fácil achar
exemplos. Porém enfatizo que isso não é um fenômeno limitado à ecocardiografia. É
geral.
Além do tropismo pelo positivo, quando o
laudo de um exame concorda com a pensamento do clínico, ficamos todos de acordo e isto é agradável. A hipótese diagnóstica foi confirmada, parece que tudo faz
sentido. O médico que realiza o exame fica como um ótimo médico aos olhos do
clínico que suspeitou da doença, pois é agradável ter sua inteligente hipótese confirmada. Sinto nitidamente a decepção na expressão do intensivista quando digo que não há sinais de embolia pulmonar no ecocardiograma.
É muito interessante e peculiar como o pensamento médico é influenciado por nossas emoções. Neste momento entra um novo fator, a paixão pelo diagnóstico.
A Paixão pela Hipótese Diagnóstica
Nós médicos, intrinsecamente vaidosos, nos apaixonamos por nossas hipóteses diagnósticas. Isto provoca o fenômeno de ancoragem, predispondo a mais heurísticas.
Ocorre da seguinte forma: ao fazer uma hipótese diagnóstica, buscarei de forma apaixonada (paixão carece de razão) fatos que confirmem minha hipótese e inconscientemente darei menos importância a fatos que falem contra esta hipótese. Mais uma vez, a valorização do positivo em detrimento do negativo.
Ocorre da seguinte forma: ao fazer uma hipótese diagnóstica, buscarei de forma apaixonada (paixão carece de razão) fatos que confirmem minha hipótese e inconscientemente darei menos importância a fatos que falem contra esta hipótese. Mais uma vez, a valorização do positivo em detrimento do negativo.
Vejam como acontece. De forma aparentemente perspicaz, faço a suspeita original de que a dispnéia é por embolia pulmonar. A partir daí vou procurar dados que confirmem minha ideia. Vejo uma subjetiva oligoemia no Rx de tórax. Embora este seja um dado de baixa acurácia, supervalorizo a informação, desconsidero os dados negativos e passo a considerar o caso como provável embolia pulmonar. Chamo o ecocardiografista e digo a ele o que estou pensando. Este não encontra hipertensão pulmonar, nem disfunção de ventrículo direito, mas fica na dúvida se este ventrículo está discretamente dilatado. Considerando minha forte suspeita, ele prefere relatar a leve dilatação, praticamente confirmando minha inteligente hipótese de embolia pulmonar. Fico feliz em estar no caminho certo e solicito uma angiotomografia, que vem negativa. O paciente idoso terminou em uso de contraste, desnecessário, pois caso todos os dados (positivos e negativos) fossem considerados (escore de Wells, por exemplo) veríamos que seria baixa a probabilidade de embolia.
Observem que a falta de cegamento, nos fez encontrar certos dados (oligoemia, dilatação discreta do ventrículo direito) que provavelmente não seriam descritos na ausência de um pensamento preconceituoso. A paixão pelo diagnóstico nos torna tendenciosos, a cegueira nos torna isentos.
Repito assim a frase acima: é muito interessante e peculiar como o pensamento médico é influenciado por nossas emoções.
Desta forma, o fenômeno de ancoragem ocorre quando nós procuramos dados para ancorar nossa crença diagnóstica. Isto é muito comum. Mesmo quando é impossível a cegueira completa, devemos tentar evitar esse fenômeno.
O Pensamento Estatístico
O Pensamento Estatístico
Estatisticamente, informações para serem complementares precisam ser independentes. Por este motivo, um escore diagnóstico ou prognóstico deve ser criado apenas por variáveis que tenham associação com o desfecho, independente das outras co-variáveis. Apenas os preditores independentes na análise multivariada devem fazer parte de um modelo probabilístico (escore), do contrário as variáveis do modelo serão redundantes e não incrementais. Percebam como a estatística nos ajuda a entender a importância da cegueira na avaliação de dados diagnósticos incrementais.
Erro Tipo I versus Erro Tipo II
O equívoco de priorizar sensibilidade ao
invés de especificidade se torna mais claro quando percebemos que o erro de
afirmar algo falso (“mentir”) tende a ser pior do que deixar de afirmar uma
verdade (“omitir”). Ao afirmar algo falso, umas cascata de consequências toma
parte da realidade; por outro lado, omitir uma verdade não gera grandes
consequências, as condutas permanecem como estão. Salvo em situações de extrema
gravidade onde a omissão é grave (nessas situações o quadro clínico é
geralmente exuberante), na maioria das vezes o falso positivo é pior do que um
falso negativo. Além disso, na presença de uma alta probabilidade pré-teste, um
exame negativo não afastaria a doença, pois o médico de raciocínio Bayesiano
pediria um segundo teste.
Estatisticamente, o parágrafo acima guarda relação com os erros aleatórios. Voltando à estatística, toleramos muito menos o erro tipo I, do que o erro tipo II. Em ciência,
aceitamos um probabilidade de apenas 5% em afirmar uma falsa associação devido
ao acaso (erro tipo I), enquanto aceitamos um probabilidade de 20% em não
encontrar uma associação verdadeira pela falta de poder estatístico (erro tipo II). Essa
diferença de tolerância reforça o quando mais grave é o falso positivo em
relação ao falso negativo.
O Pensamento
Médico
Esta apologia à cegueira pode causar estranheza a alguns. Isso decorre de omissões
históricas na formação do médico, o qual não é treinado para evitar heurísticas
e vieses em seu pensamento. Medicina parece ser interpretada como uma profissão
cujo talento é suficiente, nos deixando a mercê de nossa intuição no
aprendizado da maneira de pensar. Devemos discutir e aprimorar as técnicas de
pensamento, isso vai muito além do talento. Dizem que um músico de técnica
refinada e muitas horas de treinamento é melhor do que um músico talentoso com
poucas horas de treinamento. Precisamos aprender e treinar a correta forma de
pensamento médico.
O estudo do pensamento médico é parte
essencial da medicina baseada em
evidências, pois sem saber pensar é impossível aplicar corretamente as
evidências científicas. Os exemplos clínicos discutidos nessa postagem devem
ser norteados pelo pensamento diagnóstico Bayesiano, que requer evidências
científicas de acurácia dos métodos, modelos de probabilidade pré-teste validados
por artigos científicos e finalmente a noção de que as partes integrantes desse
raciocínio devem ser adquiridas de forma independente. Sem o correto
pensamento médico é impossível aplicar estas evidências científicas da forma
certa, o que faria desaparecer a medicina
baseada em evidências.
Portanto não basta interpretar criticamente
evidências científicas de forma crítica. É necessário saber aplicar as
evidências de qualidade, nessa hora entra o julgamento clínico. Porém o
julgamento clínico deve ser feito de forma científica, correta, pensada. Por este motivo, o estudo do pensamento médico é parte integrante da medicina baseada em
evidências.
A importância da cegueira tem sido negligenciada na prática clínica. Este é apenas um dos exemplos de
necessidade de evolução do pensamento médico. A evolução da medicina no presente século não dependerá tanto de tecnologia,
dependerá muito mais do aprimoramento da forma de pensar.
Saber olhar quando devemos ver ou desviar
o olhar quando devemos nos cegar faz parte da vida cotidiana e deve ser parte
integrante da técnica do pensar médico. O
bom olho clínico é o que sabe se fechar ou se abrir nos momentos certos.