terça-feira, 8 de outubro de 2013

A Banalização das Doenças



* Artigo publicado hoje no Jornal A Tarde por Luis Correia


Em meados do século XX, a evolução tecnológica e científica nos trouxe tratamentos de grande relevância. Antes disso, a maioria das condutas eram empíricas e inefetivas. Fazíamos uma medicina que tentava apenas reduzir o sofrimento ou proporcionar a falsa idéia de que algo benéfico estava sendo utilizado. No início do século passado, não havia antibióticos, anti-hipertensivos, medicamentos para baixar colesterol ou marca-passos.

Esta fase foi seguida de uma grande evolução nos últimos 50 anos, tirando a medicina de um estágio medieval para uma prática efetiva e embasada em evidências. Neste contexto, o primeiro ensaio clínico publicado (British Medical Journal) data de 1948, quando se comprovou pela primeira vez que um antibiótico (estreptomicina) reduzia significativamente a mortalidade de pacientes com tuberculose, quando comparado ao tratamento limitado ao repouso. Começava a era da medicina baseada em evidências.

Por outro lado, no início do século XXI, passamos a experimentar outro fenômeno: a medicalização da população. O principal mecanismo criador da medicalização são as novas definições de doença, caracterizadas pela redução dos limites de referência do que antes considerávamos normal. É comum que a redução destes limites ocorra sem o devido embasamento científico, sendo mais motivados pelo afã de prevenir doenças, ou por conflitos de interesses. Isto faz com que, do dia para a noite, surjam populações inteiras de novos doentes, antes considerados normais.

Há alguns anos, diabetes era definido como glicemia de 140 mg/dl, depois esta definição foi reduzida para 125 mg/dl e agora já se considera que glicemia de 100 mg/dl não é normal, criando-se o conceito de pré-diabetes. Embora o conceito de pré-diabetes tenha certo valor, este tem sido inadequadamente utilizado para justificar uso de medicações, sem base científica suficiente. Temos também o advento da pré-hipertensão, rótulo que já cabe a pessoas com pressão arterial de 120 x 80 mmHg. Está cada vez mais difícil ser normal.

A primeira vista, isto pode ser interpretado como uma conduta cuidadosa, típica do paradigma preventivo de que é melhor se preocupar antes que o problema se torne uma questão mais grave. No entanto, esta conduta representa mais uma forma de overdiagnosis. Em paralelo ao afrouxamento da definição das doenças, a indústria farmacêutica realiza estudos de má qualidade, que tentam demonstrar benefício do uso de medicamentos nestas condições. Estes que mostram resultados insuficientes, que são “vendidos” de forma sedutora, levando à adoção de terapias desnecessárias. Assim surge o overtreatment.

Recentemente, o Jornal Nacional noticiou que os médicos agora consideram que o valor ideal de colesterol LDL (colesterol ruim) é 70 mg/dl. Porém, a média de LDL-colesterol na população é 120 mg/dl, sendo muito difícil que uma pessoa saudável tenha colesterol LDL de 70 mg/dl.  Desta forma, um grande número de pessoas, antes definidas como portadores de colesterol adequado, agora estão insatisfeitas com seu colesterol. Como dieta reduz apenas 5-10% e exercício não tem impacto algum, restará apenas medicação para que as pessoas tenham um ótimo colesterol. De posse dessas novas definições, se inicia o marketing simulteamente voltado para médicos e pacientes. Um marketing efetivo, pois quem não quer ter colesterol ótimo?

Tudo isso ocorre em detrimento de uma escolha conscienciosa e científica, tal como proposto pela medicina baseada em evidências. Está mais para medicina baseada em fantasia, uma lucrativa fantasia.

Por outro lado, precisamos lembrar que verdadeiros fatores de risco, como colesterol elevado, diabetes e hipertensão, não devem ser negligenciados, necessitando de tratamento na maioria das vezes com medicação. Nestes casos, existe comprovação científica de benefício.

Diagnóstico e tratamento são as ações primordiais da prática médica e devem ser feitos para quem precisa, na hora que se precisa e com criterioso embasamento científico. 

3 comentários:

  1. concordo plenamente. muitos tratamentos e medicamentos novos são patrocinados por fabricantes ou indústria farmacêutica. dessa forma como confiar plenamente nos dados destas pesquisas ?

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  2. Parabéns Luiz Claudio ! Excelente análise, como Geriatra fico preocupado, pois além do overdiagnosis, temos um aumento de iatrogenias medicamentosasa entre os idosos

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    1. Penso que a maioria da classe médica não está tão preocupada com as tais iatrogenias. E quanto aos laboratórios muito menos e por motivos óbvios... Sim, as pesquisas feitas por eles deixam muito a desejar e sabemos novamente o porquê também... Muita enganação, empurroterapia e marketing em prol do vil faturamento. Mundo cão pra faturar e matar o povão!

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