* Artigo publicado hoje no Jornal A Tarde, por Luis Correia
Está virando politicamente correto criticar o uso de estatina (drogas redutoras
de colesterol). Alguns chegam a defender a intrigante ideia de que colesterol
elevado não é importante causa de infarto. Um exemplo disto é o superpopular
artigo de Dráuzio Varella, “A Agonia do Colesterol”, publicado na Folha de São
Paulo, neste 30 de novembro.
Penso que questionar paradigmas vigentes
é sempre estimulante, nós evoluímos ao repensar ideias: colesterol elevado como
causa de infarto e estatina como protetor contra infarto são mitos? São falsas
ideias criadas por razões comerciais (estatinas são as drogas mais vendidas no
mundo)? Esta última questão faz com que este questionamento ganhe o tom do politicamente correto. Além disso, o uso
de remédios é visto como algo anti-natural; e o natural é sempre politicamente correto.
Já critiquei neste espaço o uso
indiscriminado de estatina em pessoas com colesterol normal. Porém agora nos
referimos a pessoas com colesterol elevado. O que propõe a medicina baseada em evidências é evitar ideias fantasiosas e adotar
condutas de utilidade comprovada. Como ciência diferencia mito de realidade,
faremos aqui uma revisão das evidências científicas.
A comprovação da associação
epidemiológica entre colesterol e infarto data da década de 50, quando o Estudo Framigham identificou os marcadores de risco para infarto. Estes estudo
utilizou metodologia científica de boa qualidade e o melhor modelo
epidemológico, o desenho de coorte prospectiva. Além disso, estudos
subsequentes mostraram resultados semelhantes, completando o critério de
consistência entre trabalhos na confirmação de uma ideia científica. Inclusive,
foi o próprio Estudo Framingham que primeiro confirmou a associação de
tabagismo, hipertensão arterial e diabetes com infarto. Ao não aceitar as
evidências da associação entre colesterol e infarto, estaríamos também
questionando estes outros fatores de risco.
Porém, nem toda associação é causal, de
fato muitas delas são casuais ou mediadas por fatores de confusão. Sendo assim,
a confirmação final de que uma variável associada ao desfecho é de fato um
fator causador deste desfecho está em estudos que demonstram redução na
incidência do problema (infarto) quando reduzimos a causa (colesterol). Esta
confirmação veio 40 anos depois, com o advento das estatinas. Ao demonstrar que
a redução do colesterol com estatina (comparada a placebo) reduz a incidência
de infarto, essa ligação causal ficou estabelecida por ensaios clínicos de boa
qualidade metodológica, com milhares de pacientes e de resultados
reprodutíveis. Sendo assim, o colesterol como fator de risco cardiovascular é
um bom exemplo de um processo correto de validação científica de uma ideia.
Inclusive, como a proposta do colesterol como fator de risco surgiu décadas
antes do advento das estatinas, a teoria da conspiração de que o mito do
colesterol foi criado para vender estatinas não ganha nem respaldo cronológico.
Ao analisar criticamente evidências,
confesso que mantenho um viés de desconfiança da indústria farmacêutica, pois
esta frequentemente propõe condutas lucrativas, porém não suficientemente
embasadas. No entanto, precisamos reconhecer propostas que, embora lucrativas,
sejam clinicamente benéficas. Estatinas reduzem risco de infarto em pessoas com
colesterol elevado.
Voltando ao sedutor texto de Dráuzio, a
“agonia do colesterol” é um pensamento anti-científico. Devemos usar a ciência
para combater condutas fantasiosas (existem muitas por aí) e reconhecer
condutas benéficas. Separar o joio do trigo requer uma análise criteriosa das
evidências científcas, o que procurei fazer neste artigo, com uma liguagem
coloquial.
Dráuzio fala em pensamento mágico. O que
ele se esquece é que a diferenciação entre pensamento mágico e realidade é feita
por ciência de boa qualidade. Não podemos priorizar o politicamente correto, em detrimento da medicina baseada em evidências. Nem sempre o politicamente correto é correto.