Na profissão médica, tomamos decisões
constantemente, exigimos bastante de nossa função cognitiva. Como as decisões
médicas são permeadas de incerteza (sistemas complexos), precisamos explorar a
fundo as formas corretas de pensar, pois armadilhas de toda ordem podem nos
fazer chegar a conclusões equivocadas.
Estes equívocos decorrem do que chamamos
de heurísticas ou erros cognitivos.
Estes erros existem porque nosso cérebro não é desenhado (evolutivamente) para sermos
médicos ou tomarmos decisões complexas, mas sim para a sobrevivência.
Nesta postagem usarei como exemplo um dos
erros cognitivos mais comuns no pensamento médico, a heurística de
normalização.
Por instinto de sobrevivência, é natural
que nossa evolução tenha nos levado a querer normalizar tudo que vemos. Por
exemplo, se alguém está sangrando, querer interromper o sangramento é um ato
instintivo. E neste caso isto é correto.
Por outro lado, em medicina, nem tudo
“anormal” deve ser normalizado. Um dos grandes exemplos é a transfusão
sanguínea do paciente anêmico e criticamente enfermo, porém estável. Está
demonstrado que a normalização da hemoglobina de rotina não traz benefícios
clínicos, restando ao paciente desfrutar de seus potenciais malefícios. Ou a perseguição desenfreada e indiscriminada pelo ritmo sinusal em pacientes com fibrilação atrial crônica, mesmo tendo ensaios clínicos demonstrando que esta conduta não é superior ao controle da frequência cardíaca. Outro exemplo é a recente demonstração de
que não há benefício da normalização
da pressão arterial de pacientes com AVC isquêmico (vejam postagem a este
respeito no Blog da Residência de Cardiologia do Hospital São Rafael).
Em cardiologia, um dos principais
exemplos de heurística de normalização está no tratamento da doença
coronariana. Primeiro, se achava (muitos ainda acham) que tudo entupido deveria
ser desentupido.
Há duas décadas, Eric Topol denominou de
reflexo óculo-estenótico o hábito de desentupir
tudo que está entupido. Este postura questionadora ganhou credibilidade
após ensaios clínicos randomizados terem demonstrado que em pacientes estáveis
angioplastia coronária não reduz eventos (inicialmente, os estudos COURAGE e
BARI-2D). Sendo assim, do ponto de vista científico, se aceita que não devemos
desentupir por desentupir (embora na prática muitos ainda façam isso).
Ao se comprovar que o reflexo
óculo-isquêmico não tinha sentido, os entusiastas dos procedimento inventaram uma outra ideia:
se há isquemia, temos que revascularizar. Essa ideia foi difundida fortemente por lobistas dos procedimentos de revascularização e dos métodos de imagem que testam isquemia. Resolvemos denominar esta conduta de reflexo óculo-isquêmico e nesta
postagem vamos demonstrar cientificamente que isso nunca passou de um erro
cognitivo, do tipo heurística de normalização.
Análise de Interação
Análise de Interação
A demonstração de que devemos
revascularizar algo que está muito isquêmico viria de ensaios clínicos que
demonstrassem interação entre
isquemia moderada-severa e efeito benéfico da revascularização. Vale a pena
aproveitar essa oportunidade para explicar o que significa estatisticamente
este conceito de interação.
Interação pode ser interpretada como modificação de efeito. Quando duas
variáveis têm interação entre si,
significa que uma modifica o efeito da outra no desfecho. Neste caso, haveria interação se a presença de
isquemia miocárdica modificasse o efeito da revascularização no desfecho
eventos cardiovasculares. Porém, como vocês perceberão nesta revisão, não
importa, com ou sem isquemia, revascularização não reduz desfechos maiores.
O tipo de infecção
(bacteriana ou viral) possui interação com o benefício do antibiótico na cura
de pneumonia. Se for viral, o antibiótico não vai funcionar, mas se for
bacteriana, o antibiótico vai funcionar. Ou seja, ser infecção bacteriana
modifica o efeito antibiótico de neutro para benéfico. Este é um exemplo de interação qualitativa, que muda o caráter do efeito da intervenção.
Podemos ter também interação quantitativa, quando o que muda é a intensidade do efeito. Por exemplo, Neymar pode jogar excelentemente na seleção brasileira e apenas bem no Barcelona. Ou seja, jogar na seleção modifica o efeito de jogo de Neymar no sucesso do time. Modifica de um efeito moderado no Barcelona para um efeito de grande magnitude na seleção brasileira. Haveria então interação quantitativa entre o time e o jogo de Neymar ...
Podemos ter também interação quantitativa, quando o que muda é a intensidade do efeito. Por exemplo, Neymar pode jogar excelentemente na seleção brasileira e apenas bem no Barcelona. Ou seja, jogar na seleção modifica o efeito de jogo de Neymar no sucesso do time. Modifica de um efeito moderado no Barcelona para um efeito de grande magnitude na seleção brasileira. Haveria então interação quantitativa entre o time e o jogo de Neymar ...
Usualmente, vemos testes de interação
nas análises de subgrupo dos ensaios clínicos. O ensaio clínico tem um
resultado geral e os autores avaliam se determinados subgrupos modificam esse
resultado ou não. Se modificar, o valor de P da interação será significativo (P
< 0.05). Observem que estas análises de subgrupo geralmente trazem o P for interaction.
Vamos aos estudos que testaram interação entre isquemia e beneficio da revascularização.
Estudo COURAGE
O mais citado ensaio clínico neste
cenário é o COURAGE, o qual comparou de
forma randomizada e por intenção de
tratar a conduta inicial de intervenção coronária com stent versus controle, sendo que ambos os
grupos foram submetidos a tratamento clínico otimizado. Este estudo foi
negativo quanto ao seu objetivo primário, evidenciando idêntica incidência de
morte ou infarto do miocárdio nos dois grupos.
Recente subestudo do COURAGE testou a interação estatística entre isquemia
moderada-acentuada e o efeito da intervenção coronária. Isquemia
moderada-severa foi definida como aquela presente em pelo menos três das seis
paredes ventriculares (anterior, lateral, inferior, posterior, septal e
apical). De acordo com esta classificação, 30% dos pacientes possuíam isquemia
moderada-severa. Nesta análise, o tratamento intervencionista não beneficiou
nem o grupo sem isquemia moderada-acentuada (19% versus 19% de morte/infarto, respectivamente), nem o grupo com
isquemia moderada-acentauda (24% versus
21%, respectivamente). Estatisticamente, não houve interação (P = 0,65) entre a
presença de isquemia e o efeito da revascularização miocárdica percutânea.
Estudo
BARI-2D
O estudo BARI-2D comparou de forma
randomizada a estratégia de revascularização versus não revascularização em pacientes diabéticos com tratamento
clínico otimizado. A revascularização poderia ser
percutânea ou cirúrgica, a depender da decisão médica. À semelhança do COURAGE,
o estudo BARI-2D não demonstrou redução de desfechos maiores (morte, infarto e
acidente vascular cerebral) com a estratégia de revascularização.
Recentemente, foi publicado o subestudodo BARI 2D que testou interação entre isquemia e benefício da revascularização. Neste estudo, 1.505 pacientes (64% da amostra) foram submetidos a cintilografia
miocárdica. Foi calculado o percentual de miocárdio isquêmico de acordo com
análise de 17 segmentos. Não houve interação entre o percentual de miocárdio
isquêmico e efeito do tratamento nos eventos cardiovasculares (P = 0,44). Ou seja,
independente da carga isquêmica, não há redução de desfechos maiores com a
revascularização.
Estudo STICH
O estudo STICH randomizou 1.202 pacientes
com miocardiopatia isquêmica e fração de ejeção do ventrículo esquerdo ≤ 35%
para revascularização cirúrgica ou tratamento clínico.12
Sendo
assim, o STICH testa a mesma hipótese do COURAGE e do BARI-2D, porém em uma
população diferente, caracterizada por pacientes com grave disfunção sistólica
do ventrículo esquerdo. Além disso, o tratamento de revascularização foi
necessariamente cirúrgico, diferente dos demais trabalhos. O STICH não demonstrou redução
de mortalidade com o tratamento cirúrgico, expandindo a validade externa do
aprendizado proveniente do COURAGE e BARI-2D.
Em relação à interação com isquemia
miocárdica, no presente ano foi publicado um subestudo com 399 pacientes do STICH que tinham teste isquêmico realizado (eco-estresse ou cintilografia).
Este trabalho demonstrou ausência de benefício da revascularização,
independente da presença de isquemia (P da interação = 0,64).
Estudo FAME-II
O estudo FAME-II incluiu pacientes com
lesões coronárias associadas a fractional
flow reserve (FFR) < 0,80, ou seja, funcionalmente significativas. Estes
pacientes foram randomizados para intervenção coronárias versus controle, sendo que todos os dois grupos receberam
tratamento clínico otimizado. A incidência de
morte ou infarto foi idêntica nos dois grupos, resultado semelhante ao obtido
pelo COURAGE ou BARI-2D. Diferente dos ensaios clínico prévios, o
FAME-II incluiu necessidade de revascularização como parte do desfecho composto
primário, o que sozinho foi responsável pelo benefício obtido neste desfecho.
Sendo assim, esta é mais uma evidência de que a presença de isquemia em exame
complementar (FFR) não garante redução de desfechos clínicos maiores.
Recentemente
foi publicado no JAMA a metaanálise “Percutaneous Coronary InterventionOutcomes in Patients With Stable Obstructive Coronary Artery Disease andMyocardial Ischemia.” Esta meta-análise incluiu estudos em que todos os
pacientes tinham isquemia; ou no caso de apenas parte dos pacientes terem
isquemia, os autores dos estudos passaram os dados individuais, de forma que só
entraram pacientes com isquemia na meta-análise. Resultado: em uma meta-análise
em que todos tinha isquemia, o efeito sumarizado da revascularização em
desfechos é nulo.
Imagem de Isquemia Miocárdica: Marcador ou Fator de Risco?
Imagem de Isquemia Miocárdica: Marcador ou Fator de Risco?
O termo fator de risco denota uma variável que causa incremento no risco do
paciente. Diferentemente, um marcador de
risco se associa positivamente com risco, porém não é nesta variável que
está a origem do risco. Não há dúvida de que isquemia miocárdica faz parte da
fisiopatologia da doença coronária e serve de mediador causal de desfechos
clínicos, tais como arritmia ou disfunção ventricular. No entanto, o que
devemos discutir é se a detecção de isquemia em exames complementares deve ser
relacionada prioritariamente ao conceito de fator
ou marcador de risco.
A ideia de
que isquemia miocárdica crônica deve ser tratada com procedimentos invasivos
decorre do erro cognitivo de concluir causalidade a partir de uma simples
associação. A presença de causalidade depende de uma série de critérios
científicos, organizados por Bredford Hill. Analisaremos os três
principais critérios, como forma de avaliar se isquemia é fator de risco
cardiovascular: plausibilidade, associação independente e reversibilidade.
Quanto à plausibilidade, eventos coronários
agudos são causados por instabilização da placa aterosclerótica. Sabe-se que
isquemia miocárdica é determinada pelo grau de obstrução coronária e não do
quanto vulnerável à instabilidade é a placa. Estudos angiográficos demonstram
que boa parte dos infartos decorrem de placas não obstrutivas, que não
causariam isquemia. Sendo assim, há uma dissociação fisiopatológica entre a
presença de isquemia e risco de instabilização de placa, tornando pouco
plausível que isquemia esteja diretamente associada a incidência de eventos
coronários maiores. Consideremos um paciente com múltiplas placas não
obstrutivas (< 50% de estenose) no leito coronário, acompanhadas de uma
única placa obstrutiva (> 70% de estenose) que cause isquemia. Um eventual
implante de stent nesta placa obstrutiva reduzirá a isquemia, porém o paciente
continuará vulnerável ao infarto decorrente das outras placas que não causam
isquemia.
Neste mês foi publicado um subestudo doCOURAGE demonstrando que a presença de isquemia na cintilografia não é preditor independente de risco após ajuste para anatomia coronária e função ventricular. A ausência de associação independente entre isquemia
residual e risco cardiovascular sugere que esta relação é mediada por outras
variáveis de risco que são simultaneamente associadas ao preditor e ao
desfecho, ao que se chama de variáveis de confusão. Isto é mais uma sugestão de
que isquemia não é o principal fator de risco da determinação do prognóstico.
Por fim, reversibilidade é o critério mais
importante de causalidade. Este ocorre quando o tratamento da condição
promove redução de risco do paciente. Por exemplo, tratamento do LDL-colesterol
promove redução de infarto; redução de pressão arterial promove redução de
acidente vascular cerebral. Sendo assim, elevação de colesterol e pressão
arterial são de fato fatores de risco para eventos cardiovasculares. Por outro
lado, como vimos acima, o tratamento da isquemia com procedimentos invasivos
não reduz risco de infarto ou morte cardiovascular. Não é reversibilidade, então isquemia não tem relação causal com prognóstico.
Portanto, as evidências apontam que, na predição de evento aterotrombótico
coronariano, isquemia miocárdica estável deve ser interpretada como
marcador de risco e não como fator de risco a ser tratado com
procedimentos de revascularização.
Percebam então que todas as evidências dizem as mesma coisa. Isquemia não determina que devemos revascularizar. Então por que as pessoas dizem "vamos fazer uma cintilografia para ver se tem isquemia e decidir se faremos angioplastia?" Isto decorre de uma combinação de conflito de interesses, heurística de normalização e confusão entre fator e marcador de risco.
Percebam então que todas as evidências dizem as mesma coisa. Isquemia não determina que devemos revascularizar. Então por que as pessoas dizem "vamos fazer uma cintilografia para ver se tem isquemia e decidir se faremos angioplastia?" Isto decorre de uma combinação de conflito de interesses, heurística de normalização e confusão entre fator e marcador de risco.
Mudança para o Paradigma Clínico
Diante do exposto, o verdadeiro norteador da necessidade
de revascularização deve ser o quadro clínico. Mais do que exames que comprovem
isquemia, o quadro clínico representa a verdadeira avaliação funcional do
paciente. Se a isquemia está interferindo negativamente no cotidiano do
indivíduo, devido à presença de sintomas, a revascularização pode trazer
benefício. Este benefício está comprovado pelo estudo COURAGE, que demonstrou
melhor controle de sintomas quando o paciente é revascularizado.
Estatística americana mostra que apenas metade das intervenções coronárias percutâneas eletivas são
classificadas como claramente apropriadas, sendo que a
maioria dos casos inapropriados decorre da realização de procedimentos em
pacientes assintomáticos. Isto parece ser mediado em grande parte pelo fenômeno
que denominamos reflexo óculo-isquêmico.
Este reflexo
deve ser corrigido por uma prática médica centrada no paciente e embasada
em evidências.
Ademais, em uma era na qual devemos evitar o desperdício de recursos com procedimentos fúteis, as melhores
evidências disponíveis suportam a idéia de que para pacientes com isquemia
crônica, menos pode ser mais (less is more).
* Esta postagem é uma versão do Ponto de Vista in press nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia e da Letter to the Editor in press no Circulation, sob o título The Oculo-ischemic Reflex. Ambos escritos em parceria por Luis Correia, Márcia Noya e José Augusto Barreto Filho.
* Esta portagem teve os seguintes objetivos didáticos: alertar para armadilhas mentais sob a forma de heurística, definir o fenômeno estatístico de interação, exercitar o pensamento diferencial entre marcador e fator de risco, aguçar o senso clínico da tomada de decisão.