O ator José Wilker morre subitamente, aos 66 anos, do que provavelmente tenha isso um infarto acompanhado de fibrilação ventricular. Um fato triste, um grande ator em plena fase produtiva. Sentiremos falta. Acompanhando o fato, surge espontaneamente a visão de que algo melhor deveria ter sido feito para prevenir sua morte, ele não deveria ter morrido. No pensamento comum, a morte de José Wilker, tão jovem (mesmo?), é uma anomalia.
Será mesmo? O quanto este acontecimento é anormal?
Um exemplo deste tipo de pensamento foi a reportagem da Revista Istoé que se seguiu a sua morte, trazendo uma revisão das estratégias preventivas do infarto e sinalizando que provavelmente José Wilker não fez exames cardiológicos suficientemente capazes para prevenir seu desfecho fatal.
Este tipo de colocação resulta da forma de pensamento intuitivo caracterizado pela dicotomia da causalidade. Esta forma comum de pensar toma corpo em detrimento do pensamento probabilístico, estatístico, científico.
Enquanto o pensamento probabilístico infere que uma medida de prevenção reduz em alguma magnitude a probabilidade de morte cardíaca, o pensamento dicotômico interpreta o mundo como um interruptor que a gente liga ou desliga de acordo com nossas ações. Inconscientemente, nossa mente funciona assim: se a prevenção correta fosse feita, Wilker não morreria, enquanto a culpa da morte dele está em alguma falha na forma de prevenção. É a procura de um nexo causal para todo fato marcante, a procura de um bode expiatório. Encontrar uma explicação causal para tudo nos deixa com uma falsa sensação de controle, nos traz um certo conforto cognitivo.
Porém, se pensamos de forma menos cartesiana, entenderemos que os eventos da natureza decorrem de uma multiplicidade de causas, que interagem entre si de forma complexa. Isto torna impossível predizer quando e como um fenômeno acontecerá. Podemos apenas predizer a probabilidade do ocorrido. Em outras palavras, todo José Wilker têm um probabilidade de morte cardíaca que vai aumentando a cada ano. E aos 66 anos, mesmo sem muitos fatores de risco, sua probabilidade fica no nível intermediário, em torno de 10% em 10 anos. Bem, ele pode, casualmente, ter caído nestes 10%, mesmo que tenha feito tudo certo. Por isso, antes de encontrar um bode expiatório, devemos refletir se o que ocorreu estava dentro do previsto, se isso não foi um fenômeno natural.
Uma alternativa boa para impedir casos como este seria voltar ao início do século passado, quando a média de expectativa de vida não passava de 40 anos. Naquela época era bom, pois não dava tempo de termos morte súbita cardíaca. Nem dava tempo da visão de leitura piorar ou dos dentes começarem a dar problema. Aquilo é que era vida. Agora que vivemos muito mais, temos que aprender a lidar com certos ocorridos de forma natural. Volta e meia, a despeito da evolução nas verdadeiras estratégias de prevenção (controle de fatores de risco), alguém morre subitamente. Coisa estranha ou coisa natural?
Daí entra um outro viés cognitivo típico de nossa mente não estatística. A supervalorização de fenômenos raros. Fenômenas raros devem ser interpretados como exceções, como obra do acaso, decorrente daquela probabilidade de 10% de evento coronário em período de 10 anos. O raro não deve nortear as regras. No entanto, nós supervalorizamos o raro, pois as coisas incomuns marcam mais do que o comum. O comum fica banalizado, o raro supervalorizado, mesmo que estatisticamente o comum seja muito mais importante.
E aí vem o melhor. Considerando a morte de José Wilker uma anomalia que deveria ter sido evitada, precisamos rever nossa estratégia preventiva. Daí a Revista Istoé, munida da opinião de “especialistas”, sugere que assintomáticos devem realizar exames ainda mais sensíveis, para diagnosticar doenças ocultas, uma recomendação em prol do overdiagnosis, distorção tão comentada neste blog (postagens Papai Noel e George Bush).
José Wilker morreu de coração porque viveu até os 66 anos. Era assintomático e controlava bem seus fatores de risco, fazia o que deveria ter feito e não precisava de pesquisa de doença coronária. Porém prevenção não é impedimento total do evento indesejado. Wilker poderia não ter doença coronária obstrutiva e o que ocorreu foi uma instabilidade de placa anteriormente sem significado anatômico ou funcional (nada a fazer além do controle de fatores de risco). Ele poderia ter uma placa obstrutiva, porém sabemos que procedimentos nesta placa não reduz mortalidade (nada a fazer). Ou ele poderia ser um dos raros de assintomáticos com doença coronária de gravidade extrema, cujo procedimento de revascularização reduziria sua mortalidade. Porém, para cada caso raro deste tipo, há o prejuízo de tantos que sofrem overdiagnosis com a conduta do rastreamento excessivo da doença, gerando nestes indivíduos procedimentos desnecessários, que causam desconforto, sequelas e até morte. O overdiagnosis se define como um diagnóstico correto, porém o potencial malefício é maior do que o potencial benefício do diagnóstico. Este é o pensamento probabilístico.
Nossa mente não estatística trabalha com memória seletiva. Nunca esqueceremos o raro dia em que encontrarmos um caso que se beneficiou de um rastreamento. Porém, em nossa mente crente, esqueceremos do assintomático que morreu na cirurgia cardíaca ou dos muitos que fizeram exames invasivos normais ou procedimentos de revascularização desnecessários.
Observem como nosso cognitivo nos trai pelo somatório de vários viéses: o pensamento anti-estatístico, tropismo por causalidade, supervalorização do raro e memória seletiva. Haja armadilhas mentais!