Em setembro deste ano, o mais novo ministro do Supremo, Edson Fachin, decidiu pela liberação do uso da fosfoetanolamina para tratamento de câncer. Qualquer câncer.
Isto gerou uma reação contrária por parte da comunidade médica, que se viu surpresa com a liberação de um “tratamento” sem a devida comprovação científica de eficácia. Dráuzio Varella afirmou no Fantástico que "esta conduta não se faz nem em veterinária", se referindo ao uso de tratamentos antes de testes clínicos adequados no animal em questão.
Para mim, a verdadeira surpresa foi a indignação da comunidade médica.
Fico a me perguntar em que mundo vivem os que se viram surpresos com a decisão do juiz. Digo isso pois o mundo real é repleto de condutas indicadas por profissionais de saúde, a despeito da falta de embasamento científico. Agimos frequentemente de forma não profissional, quando utilizamos argumentos pseudocientíficos para justificar nossas condutas.
Alguns são os contextos em que condutas são adotadas sem base científica sólida: há aquelas avaliadas por estudos iniciais, com resultados favoráveis, porém não definitivos; há condutas não testadas, porém adotadas como eficazes devido a argumentos mecanicistas, tipo plausibilidade biológica; e no outro extremo, há terapias correntes cujos trabalhos de boa qualidade mostram que não são eficazes.
Há algumas situações de plausibilidade extrema em que não necessitamos de comprovação científica. São aquelas óbvias. É o caso de administrar glicose em um indivíduo com hipoglicemia sintomática; ou o caso de utilizar um device denominado paraquedas quando precisamos pular de um avião em pleno vôo.
Excluindo situações extremas, os potenciais prejuízos da precipitação em adotar condutas sem base científica são provavelmente maiores do que potenciais benefícios. Até mesmo porque (como já comentado neste blog) a magnitude do benefício de condutas eficazes tende a ser quantitativamente modesta. Os potenciais prejuízos são de diversas ordens: efeitos adversos, sofrimento desnecessário, custo desnecessário, enraizamento de paradigmas incorretos, aculturação científica. Portanto, os médicos estão corretos em criticar a decisão do novo juiz.
Por outro lado, soa estranho criticar a liminar do juiz do Supremo (que não possui o conhecimento técnico), quando os críticos (que possuem conhecimento técnico) cometem frequentemente o mesmo erro quando a decisão está em suas mãos.
Apenas como exemplo, vivemos em um país cujo Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira reconhecem a homeopatia como especialidade médica. Paradoxalmente, as evidências científicas de qualidade são consistentes em demonstrar que o efeito da homeopatia não supera a eficácia do placebo. Esta informação está presente em revisões sistemáticas de boa qualidade. Devemos sempre lembrar que há evidências para todo tipo de resultado. Neste contexto, separando o joio do trigo, os trabalhos com baixo risco de viés são consistentes em negar a eficácia da homeopatia.
É sempre bom lembrar que ciência nada mais é do que uma forma de observar a natureza, prevenindo-se contra dois tipo de erros de observação: viés e acaso. A forma de prevenção é o método científico. Portanto, tudo que está na natureza é melhor observado sob a lente do método científico. Ciência não artificial, pelo contrário, ciência nos aproxima do natural.
Talvez homeopatia mereça um reconhecimento como um tipo de intervenção baseada em fé. Ter crenças é coisa comum da raça humana e às vezes faz bem. Porém isso não é a mesma coisa que medicina, isso é diferente de especialidade médica. Eticamente, ao receber tal prescrição, um cliente deveria ser informado de que os trabalhos de qualidade indicam que o efeito decorrente da homeopatia é equivalente ao placebo.
Diferente de nosso país,
o parlamento inglês baniu homeopatia do sistema público de saúde, proibindo também que qualquer verba pública fosse utilizada para financiar pesquisa com homeopatia. O parlamento inglês fez sua própria revisão sistemática, publicada em seu site. E concluiu que já está comprovado: homeopatia não funciona além do efeito placebo. E isso não é surpresa, pois não há nenhuma molécula ativa na solução administrada, visto que esta foi diluída milhões de vezes.
A Organização Mundial de Saúde, após provocada, publicou um documento em 2009, afirmando que homeopatia não é eficaz para HIV, tuberculose, malária, diarréia e gripe.
Mas o problema não acontece apenas com tratamentos alternativos. Mais comum ainda são violações que utilizam condutas mais tradicionais, mais plausíveis, porém sem comprovação definitiva. Na década de 90, nós cardiologistas propomos o uso da terapia de reposição hormonal como forma de reduzir o risco de infarto. Havia trabalhos científicos sugerindo este efeito, porém ainda não eram trabalhos com metodologia científica adequada. Anos depois, no início da década de 2000, o grande ensaio clínico randomizado WHI negou este efeito protetor. E pior, mostrou pequeno aumento do risco de infarto com o tratamento. Constrangimento desnecessário, poderíamos ter esperado as evidências.
Veja o caso da Sibutramina para redução de peso. Depois de anos de uso da droga, ensaio clínico desenhado para testar a eficácia desta intervenção na redução de eventos cardiovasculares demonstrou ausência de benefício. Havíamos utilizado uma droga que tem reconhecidos efeitos adversos (não proibitivos, se houvesse um benefício concreto), sem um grande motivo. Nem para perder peso a droga faz tanta diferença, pois em média a perda de peso foi apenas 2.4 Kg maior do que no grupo placebo (dieta). No entanto, ficam aí alguns endocrinologistas esperneando contra a ANVISA que restringiu (dificultou) a prescrição da droga. Na verdade, nem precisaria restringir se os médicos não tivessem a mania de supervalorizar benefícios tênues e computassem o verdadeiro tipo e magnitude do benefício ao raciocinar clinicamente.
O mesmo Fantástico que critica (com razão) a liberação da fosfoetanolamina, faz uma campanha de várias semanas, reforçando a estratégia de rastreamento do câncer de mama com mamografia, como se esta fosse uma panacéia. Rastreamento significa utilização em toda população de uma certa faixa etária. Paradoxalmente, a tendência das evidências científicas de qualidade vai no sentido contrário desta conduta. O mais recente estudo , um ensaio clínico em que 90.000 canadenses foram randomizadas para rastreamento anual com mamografia versus controle, demonstrou mortalidade idêntica nos dois grupos. Em 2013, a Cochrane publicou uma revisão sistemática de 7 ensaios clínicos. Os 3 ensaios clínicos de randomização adequada não mostraram redução de mortalidade por câncer de mama, ao passo que os 4 ensaios clínicos de randomização inadequada sugeriram o benefício.
Mesmo que haja redução de mortalidade, as estatísticas tendem ao problema do overdiagnosis, quando a probabilidade de prejuízo advinda do diagnóstico é maior do que a probabilidade de benefício. Se o benefício existisse, seria de no máximo 1 vida salva a cada 1.000 mulheres rastreadas por 10 anos. Em contrapartida, o rastreamento causaria 500 biópsias desnecessárias e, pasmem, 10 tratamentos (mastectomia, radioterapia, quimioterapia, com suas complicações e sequelas) desnecessários, em cânceres que nunca vingariam como tal.
A campanha do Fantástico a favor da mamografia e o Outubro Rosa do mês passado são simplórios quando não trazem esta discussão como prioritária.
Causou surpresa o que acabo de escrever? Claro que sim, pois o senso comum vai no sentido do benefício do diagnóstico precoce. A questão é que o senso comum nem sempre coincide com a verdade científica. Como seria de se esperar, a abordagem do Fantástico sobre mamografia foi baseada em um raciocínio "fantástico" e fantasioso, embora seja senso comum.
Na mesma reportagem do Fantástico sobre o suposto anti-cancerígeno, um oncologista crítico à decisão afirmou: “já tive uns 20 pacientes que utilizaram esta droga e nenhum genuinamente se beneficiou.” Observem o teor anti-científico desta afirmação. Se estes pacientes não foram avaliados mediante um protocolo científico, ele não poderia tirar a conclusão da ausência de benefício. E se esses 20 pacientes tivessem tido uma sobrevida média superior a um hipotético grupo controle? Não estou dizendo que a droga é benéfica. Mas, sem um adequado ensaio clínico, é anti-científico afirmar qualquer coisa (positiva ou negativa) a respeito desta droga.
Sabemos que não é incomum médicos prescreverem tratamentos questionáveis do ponto de vista de eficácia, efetividade ou eficiência, e orientarem pacientes a conseguir liminares de juízes, para que convênios ou o SUS cubra os custos.
Há explicações cognitivas para nossa postura não científica, muitas das quais costumamos discutir neste Blog. Nossa mente é naturalmente crente, sendo necessário um certo esforço para assumir uma postura cientificamente cética e fazer uma análise baseada em evidências.
Evoluímos tomando decisões intuitivas (sistema límbico), pois a decisão rápida nos ajudava a fugir e sobreviver. Portanto temos dificuldade em sobrepor o pensamento intuitivo com o pensamento analítico (cortical). E para piorar as coisas, o pensamento intuitivo muitas vezes se disfarça de pensamento analítico, parece que estamos pensando direito. Requer atenção e treinamento pensar corretamente.
Portanto é justificável que um juiz se equivoque em sua decisão, muito mais do que um profissional da área médica. Claro que o juiz poderia ter utilizado de consultores técnicos. Mas o trabalho de um juiz também se baseia no que é convencional na sociedade, na cultura vigente.
Além de criticar a decisão deste juiz, devemos reconhecer nossa responsabilidade como parte deste processo. A sociedade vive o paradigma da medicina baseada em fantasia em parte porque nós, profissionais de saúde, usamos deste paradigma quando adotamos tratamentos não comprovados ou realizamos exames de forma exagerada e inapropriada.
Portanto, retorno à pergunta inicial: por que tamanha indignação da classe médica com a decisão do juiz? Esta foi uma decisão inusitada? Claro que não, foi a decisão natural.
Em minha percepção, a indignação vem do fato de que a decisão foi tomada por um juiz, alguém de fora que está nos dizendo como deve ser. O incômodo não foi criado pelo pseudo-científico (esse não incomoda), mas pela perda de autonomia.
Profissionais de saúde devem assumir a responsabilidade de moldar o pensamento da sociedade na direção de uma medicina contemporânea e de vanguarda: embasada no paradigma científico, no benefício ao cliente, na racionalidade das decisões e, por fim, na decisão compartilhada com um cliente que é devidamente informado dos riscos, benefícios e incertezas de nossas recomendações.