Portanto, não podemos falar em associação, quanto mais em causalidade. Ainda estamos muito longe do que poderia ser considerado algo provável. Ainda estamos muito longe do limite de rejeição da hipótese nula. Muito longe do que poderia ser considerado algo provável.
Miopia Estatística
Essa é a mais banal das miopias, a qual decorre da falta de percepção de que precisamos de um denominador para quantificar o risco dos desfechos. Este denominador não tem sido apresentado nos depoimentos dos médicos ou reportagens da imprensa.
Fala-se em um crescimento grande do número de registros de microcefalia, de 30 casos para 1.200 casos em 3 meses. Isto é bastante assustador e o número que passa dos milhares traz a conotação de um grande risco. As grávidas entram em pânico quando se fala em 1.200 casos. No entanto, risco é uma probabilidade, advinda do total de desfechos dividido pelo total de pessoas vulneráveis ao desfecho. Desta forma, dividindo-se 1.200 pelo número médio de nascidos-vivos em um período de 3 meses (em torno de 600.000), chegamos a um risco de 0.19% de uma criança nascer com microcefalia nestes últimos meses, dada todas as possíveis causas, não apenas Zika. Se considerarmos o cenário otimista de que metade destes casos decorrem de Zika, diremos que 0.095% é o risco de microcefalia por Zika.
Isto justifica pânico?
A miopia estatística (básica) faz com que médicos recomendem no Fantástico que mulheres deixem de engravidar. Estes se esquecem que o conjunto de outras possíveis infecções que causam sequelas em bebês ultrapassa em muito o risco de microcefalia por Zika, se este risco for verdadeiro. Segundo meus consultores obstétricos: citomegalovírus 2.6% de incidência de infecção, toxoplasmose 1.6%, sífilis 0.5%, herpes 0.2%, só para falar alguns. E 40-50% dos fetos afetados por estas infecções apresentam sequelas.
Por que só agora recomendamos não engravidar? Ou colocado de outra forma: o número (com denominador) justifica o pânico?
O que Kant diria?
Percepção = sentidos + inconsciente.
Segundo Kant, a interpretação que damos ao que vemos é involuntária e incontrolavelmente influenciada pelo inconsciente. Sua filosofia foi mais tarde confirmada por psicólogos cognitivos. Na postagem
Ensaio sobre a Cegueira, discutimos como seria importante que a interpretação de métodos de imagem ou do exame físico fosse cega em relação à probabilidade pré-teste, ou seja, ao quadro clínico ou epidemiológico.
Ao se deparar com a atual epidemia de microcefalia, Kant se perguntaria se o aumento do número de casos poderia decorrer de um problema de percepção influenciado pelo cognitivo de pessoas já influenciadas pelo modismo.
Talvez esse raciocínio pareça demasiadamente cético quando sugerimos a não existência do problema. Por outro lado, este mesmo raciocínio se torna demasiadamente plausível quando pensamos na possibilidade de superestimativa do problema.
Não há dúvida que a mente dos diagnosticadores de microcefalia está enviesada involuntariamente pelo modismo, o que implica em uma noção de probabilidade pré-teste aumentada. Para agravar, encontramos o conforto cognitivo, que se apresenta quando se torna mais confortável laudar de acordo com o mundo externo do que de forma independente. Isto faz com que médicos prefiram ampliar sua sensibilidade, em detrimento da especificidade. Isto pode gerar uma banalização dos diagnósticos.
Como cardiologista, sei o quanto pode ser subjetivo laudar uma disfunção sistólica do ventrículo esquerdo ou calcular uma fração de ejeção, número mágico para quem não passa pelo processo de quantificação. Porém nada entendo de obstetrícia ou ultrassom obstétrico. Por isso, perguntei a especialistas de mente científica e a resposta foi semelhante ao que vivencio na ecocardiografia. Há subjetividade em muitos casos. Na dúvida, de que forma se comportam os diagnosticadores neste momento particular de modismo? E como se comportavam antes?
Pouco se falava do problema, portanto a sensibilidade dos médicos não estava voltada para isso. Hoje, a principal ideia que está na mente de um ultrassonografista (e da coitada da grávida) antes do exame é se há sinais de microcefalia.
No sistema público de saúde, provavelmente menos grávidas faziam ultrassom. Hoje vemos mutirões de ultrassom. E os médicos que fazem os exames estão muito mais atentos. Isso tudo indica que é muito plausível acreditar que no passado havia subnotificação.
Desta forma, há plausível subnotificação do passado e supernotificação do presente. Quantitativamente, parte do problema é criada por isso. Pelo menos parte do problema.
Reflexões Finais
Até o momento, tivemos acesso a apenas relatos de coexistência Zika-microcefalia publicados pela imprensa leiga, que desconsideram o lado silencioso das evidências. Ainda não dispomos de publicações em revistas científicas, aquelas que seguem um rigor na descrição dos métodos e resultados da pesquisa, passando pelo crivo da revisão por pares.
Tais artigos surgirão em revistas científicas. Como todo estudo, estes deverão passar pelo crivo da análise do nível de evidências. Mas, devemos estar atentos para a particularidade maior desta questão cientifica: a hipótese nula foi precipitadamente rejeitada, abrindo guarda aos vieses de confirmação e publicação.
Nassim Taleb aborda bem o problema dos especialistas em seu livro A Lógica do Cisne Negro. Especialistas de atividades que lidam com incerteza sofrem do problema da auto-ilusão. É por este motivo que comentaristas políticos erram muito mais do que modelos estatísticos de previsão de eleições. A arrogância epistêmica obstrui a habilidade preditiva de especialistas e suas ideias se tornam pegajosas. Depois de criadas, fica pouco provável de mudar. É o
fenômeno de perseverança da crença, quando as ideias são tratadas como propriedades pessoais, da qual não queremos nos desfazer. É quando muitos convictos pesquisadores tendem a procurar confirmação de suas ideias a todo custo, vibrando quanto encontram resultados positivos, mesmo que à custa de P-value hacking, problema das múltiplas comparações ou vies de publicação.
Entre a ausência de evidencias sobre uma questão (estado atual) e a resposta definitiva, normalmente existe uma lacuna repleta de estudos pequenos, de qualidade mediana, cuja divulgação é regida pelo viés de publicação de evidências positivas. Isto estenderá o obscurantismo científico, até que em algum momento saberemos a verdade.
No mundo em que a hipótese nula foi violada, é indispensável que os diagnósticos Zika e microcefalia sejam feitos de forma cega e independente. Resultados definitivos virão de estudos prospectivamente desenhados, com hipóteses e desfechos primários definidos a priori.
Enquanto isso, grávidas devem evitar se expor a qualquer tipo de doença infecciosa e outros agentes sabidamente teratogênicos como sempre fizeram. Devem também evitar um demasiado envolvimento com recomendações caricaturais contra Zika. E devem estar cientes de que não há razão probabilística (risco absoluto) para que o pânico roube a tranquilidade de suas gestações.
Se Zika é responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia, por enquanto não sabemos.
Mas a pergunta primordial desta postagem é outra:
sabemos distinguir entre fato e ficção?
* Texto escrito por Luis Correia e Denise Matias, com colaboração intelectual dos obstetras Allan Silva e Leomar Lyrio.