domingo, 3 de abril de 2016

A Verdadeira Mensagem do Estudo HOPE-3 (Braço Hipertensão)




Há dois dias publicamos nossa análise sobre o ensaio clínico SPRINT, na qual propusemos a valorização da incerteza sobre a ideia de que aquele estudo respaldaria valores pressóricos > 120 mmHg como fator de risco cardiovascular.

Ontem foi apresentado no congresso do American College of Cardiology e publicado simultaneamente no New England Journal of Medicine, o ensaio clínico HOPE-3, que traz mais dúvida a respeito da hipótese citada acima. 

O HOPE-3 estudou pacientes não hipertensos ou hipertensos com pressão arterial satisfatoriamente controlada. A média de pressão arterial da amostra foi 138 ± 15 mmHg para sistólica e 82 ± 9.4 mmHg para diastólica. Percebam que os valores médios de pressão estão abaixo da faixa que define hipertensão, mas dentro de uma faixa que poderia representar um fator de risco para o sistema cardiovascular. Esta possibilidade é embasada por estudos epidemiológicos (observacionais) que mostram aumento de risco a partir de valores > 115 mmHg. Por este motivo, pensadores científicos como Flávio Fuchs argumentam sobre a necessidade de testar essa hipótese. 

Pois bem, o HOPE-3 representa um ótimo teste desta hipótese, pois randomiza 12.700 destes pacientes para tratamento anti-hipertensivo (candezartan/hidroclorotiazida) versus placebo. Se houver redução de risco, confirma-se a relação de causalidade entre pressão arterial nestes níveis intermediários e eventos cardiovasculares. Seria a presença do mais importante dentre os critérios de causalidade propostos por Bradford Hill: o princípio da reversibilidade, quando o tratamento do suposto fator de risco reduz o risco.

Conforme esperado, o grupo tratamento desfrutou de maior redução de pressão arterial quando comparado ao grupo controle. No entanto, não houve redução do desfecho primário (4.1% vs. 4.4%, P = 0.41), definido pelo combinado de morte, infarto, AVC. Reforçando a negatividade do resultado, a análise individual dos componentes do desfecho não mostrou diferença  a favor do grupo tratamento. 

Em um estudo negativo, devemos nos preocupar principalmente com a possibilidade do erro aleatório tipo II, que pode "negativa" um eventual resultado positivo do ensaio. Lembrando, o erro tipo II é aquele no qual a falta de poder estatístico torna o estudo incapaz de rejeitar a hipótese nula quando esta é falsa. Em outras palavras, incapaz de afirmar uma associação que existe. 

Para explorar a possibilidade de erro tipo II, devemos procurar algumas pistas: (1) Há uma diferença numérica entre os grupos? (2) O valor de P é limítrofe, tendendo a significância estatística? (3) O estudo possuía poder estatístico para encontrar diferenças relevantes?

  1. Observem no gráfico abaixo, da sobrevida livre de eventos, que as curvas são bem sobrepostas. Ou seja, não estamos diante de uma diferença que não alcançou significância estatística.
  2. O valor de P é bastante alto, bem fora daquela faixa que por vezes se denomina de tendência a significância estatística.
  3. Este é um estudo grande (12.700 pacientes), com grande número de desfechos (1.179). Nos métodos, vemos que o estudo foi dimensionado para 80% de poder de detectar uma redução relativa do risco de 22%. Para isso, o estudo precisava obter 500 desfechos. E obteve. Portanto, não é um estudo que carece de poder estatístico.

Nesta análise, devemos reconhecer que a leitura mecanicista de um estudo (relevância científica) deve exigir poder estatístico capaz de detectar menores reduções de risco do que a leitura voltada para o conceito pragmático (relevância clínica do efeito - NNT). Reduções menores de desfecho podem sugerir causalidade, embora não impliquem em indicação terapêutica, devido a seu pequeno impacto clínico. 

Por isso, quando interpretamos um estudo do ponto de vista mecanicista, devemos ficar mais atentos para o poder estatístico, pois este é normalmente calculado sob o paradigma pragmático. 

Esta é um observação que menciono com intuito didático. Mas aplicando este pensamento ao HOPE-3, a grande semelhança na incidência de desfecho entre os dois grupos nos deixa tranquilos em relação à probabilidade do erro tipo II.

Análise de Subgrupo


De acordo com o média e desvio-padrão da pressão sistólica basal (139 ± 20 mmHg), em torno de metade dos pacientes do HOPE-3 possuem pressão sistólica > 140 mmHg. Ou seja, boa parte dos pacientes está acima da faixa intermediária que trago para esta discussão. Isto dá uma maior importância à análise de subgrupo.

A análise de subgrupo mostra interação significativa (P = 0.009) entre esta faixa de pressão > 144 mmHg e benefício do tratamento. Ou seja, pressão > 144 mmHg (tercil superior) se associa a benefício do tratamento, diferente de níveis abaixo disso. 

Como interpretar essa análise?

Sabemos do cuidado que devemos ter com análise de subgrupo, no sentido de que nunca a conclusão do estudo deve priorizar o resultado de um subgrupo em detrimento do resultado geral. Quando um estudo é negativo, um subgrupo positivo deve ser interpretado apenas como gerador de hipótese (se houver plausibilidade, se o subgrupo for definido a priori, se houver interação significativa). Portanto, a conclusão do estudo é negativa, como foi colocado pelos autores, e o efeito benéfico em pacientes com pressão sistólica maior seria uma possibilidade. 

Mas no presente caso, diferente do que parece, a análise de subgrupo reforça o resultado do estudo, em vez de contradizer. Por que digo isso? Vejam que do ponto de vista pragmático, já tratamos pacientes com pressão > 140 mmHg, e do ponto de vista etiológico, já consideramos hipertensão níveis > 140 mmHg. Portanto, o original deste estudo está nos pacientes com pressão < 140 mmHg. E nesses pacientes a análise de subgrupo não mostra qualquer tendência a benefício. 

Estamos aqui na situação em que a análise de subgrupo mostra a consistência do resultado principal do estudo (que foi negativo). Mostrar consistência de algo verdadeiro é a função mais nobre de análises de subgrupo.

Voltando ao Mestre Flávio (Fuchs)


Flávio vai preparar uma réplica a minha postagem de dois dias atrás, sobre o SPRINT. Falei para ele não ter pressa, fazer com calma, quando der na telha. Mas ao longo do dia de ontem, surgiu o resultado do HOPE-3. Isto tornou mais difícil o seu contra-argumento. 

Do ponto de vista pragmático, o HOPE-3 sugere que não há benefício em reduzir a pressão arterial para níveis inferiores aos padrões tradicionais. Do ponto de vista mecanicista, seguindo o pensamento bayesiano, o HOPE-3 reduz a probabilidade da hipótese de Flávio estar correta: níveis de pressão arterial intermediários, não definidos como hipertensão, representam fator de risco cardiovascular? 

O bom é que pessoas fora de série se superam diante de desafios. Com certeza, o mestre Flávio vai tirar um coelho da cartola.


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OBS: O HOPE-3 trouxe o apelo supostamente original de ter estudado pacientes de risco intermediário. Explicarei em mensagem futura porque isto é irrelevante, motivo pelo qual não mencionei este aspecto nesta postagem. Será um comentário com interessante aspecto didático. Em breve farei isso, hoje é domingo, tenho afazeres familiares.

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Objetivos Didáticos da Postagem:
  • Estudos pragmáticos versus mecanicistas.
  • Princípio da reversibilidade
  • Análise de erro tipo II
  • Poder estatístico de estudos mecanicistas
  • Análise de subgrupo


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15 comentários:

  1. Espetacular ! Como sempre ....... Ansioso para contra argumentação do Flavio .
    Grande abc

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  2. Este estudo reforça o consenso americano VIII joint?? A sociedade de cardiologia ainda não seguiu as recomedações de para idosos sem comorbidades aceitável até 140 x 80 mmHg, como ficará? Grato

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  3. Parabéns, Dr. Luis! Excelente postagem.

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  4. Excelente como sempre! Prezado prof Luis, onde posso estudar mais afundo esta questão de leitura pragmática x mecanicista? Existe algum artigo publicado que discorra sobre isso? Muito Obrigado

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  5. Caro professor Luís , relendo sua análise sobre o HOPE 3 braço hipertensão , fiz algumas reflexões :
    - Será que podemos considerar o efeito de redução de desfechos cardiovasculares ( hard endpoints ) do BRA testado ( no caso o candesartan do grupo com PAS > 140 mmHg ) como prova de conceito que , talvez ( incerteza ) os BRA's , assim como os IECAS são capazes de reduzir desfechos categóricos ?

    - Fato que corrobora os resultados dos já citados ALLHAT ( clortalidona ) e demais ensaios dos IECAS , onde realmente ficamos seguros com a consistência dos resultados que mostraram benefício na redução dos níveis pressóricos , em diferentes classes de anti-hipertensivo .

    E já aproveitando : o braço HOPE 3 estatina ( rosuvastatina ) também apresentado no ACC e simultaneamente publicado no NEJM ...
    - Te chamou atenção o período de run in ?? Isso teria implicações na validade externa do estudo, concorda?
    - A magnitude de benefício foi de uma RAR 1.1% ( NNT 91 ) ..... Isso muda realmente alguma conduta na prática clínica em relação ao impacto do benefício de estatina nesses pacientes dito " intermediários " em prevenção primária ?

    - Existe realmente motivo para todo o entusiasmo do efeito da rosuvastatina ?

    E ainda existe o possível viés de publicação de um estudo " postivo " no NEJM , mas quando lemos no final do artigo : " Funded by the Canadian Institutes of Health Research AND ASTRAZECA " , talvez, digo talvez possamos entender o tal entusiasmo .

    Grande abc

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  6. Boa tarde, Luís! Sempre aprendo a ver os estudos de outra forma aqui. Gostaria de aproveitar e ler de você algo sobre o braço dislipidemia do HOPE-3 e o que isso pode mudar em relação à prescrição de estatinas... Grande abraço

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  7. Robson e Humberto, em breve postarei a análise do braço estatina, na mesma linha de seus comentários. Robeson, acho que a evidência a respeito de BRA é fraca neste caso, pois está junto com diurético, que é a melhor classe de droga anti-hipertensiva. Além disso, é análise de subgrupo.

    Obrigado pelos ótimos comentários.

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  8. Voltou afiado para minha satisfação.Muito bons teus argumentos do Sprint e do HOPE .
    Abs
    Wálmore

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  9. Luis
    Excelente análise sobre o SPRINT e o HOPE-3.
    O HOPE-3 já de certa forma faz um contra-ponto ao SPRINT, embora seja muito importante estarmos atentos às interpretações apressadas e de certa formas crédulas de estudos publicadas em revista de peso como o New England.
    Estou curiosa para ver o contra-ponto de Flávio Fuchs, certamente também teremos muito a aprender e a refletir sobre nossa prática clínica.

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  10. Dizer que aprendemos sempre é redundante, mas está valendo! Agora me chamou atenção, dentre outras coisas, aquilo que está guardando para um momento adiante; a questão de serem assintomáticos. Frequentemente valorizamos em excesso essa informação, como se nesse cenário, com esses desfechos, mudasse nosso raciocínio.

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  11. Dizer que aprendemos sempre é redundante, mas está valendo! Agora me chamou atenção, dentre outras coisas, aquilo que está guardando para um momento adiante; a questão de serem assintomáticos. Frequentemente valorizamos em excesso essa informação, como se nesse cenário, com esses desfechos, mudasse nosso raciocínio.

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