segunda-feira, 4 de abril de 2016

Café Científico com Flávio Fuchs: SPRINT, HOPE e a definição de hipertensão



Apenas dois dias após a postagem de meus textos sobre as implicações dos estudos SPRINT e HOPE-3, Flávio Fuchs nos envia sua resposta, que chega 2:07 da madrugada desta segunda-feira, horário típico de nossos debates científicos. Aproveitem o texto, elegante em seu aspecto científico, guardando a peculiaridade de Flávio. 

Chamo a atenção da quantidade de referências próprias que Flávio traz, mostrando que aqui estamos debatendo com alguém que está na vanguarda da produção do conhecimento. 

Em postagem prévia, propus uma diferenciação entre cientistas e pesquisadores. Flávio é um Cientista com C maiúsculo, aquele que defende seus pontos de vista com a segurança de quem reconhece o valor da incerteza (vejam sua conclusão). 

Flávio com a palavra:

Estou sendo vítima de bullying não só pelo Luís Cláudio, mas também por outros amigos próximos, a respeito do SPRINT, HOPE-3 e meta-análises que têm sido publicadas, que aparentemente, questionam o entendimento que tenho sobre riscos de pressão arterial elevada e opções de tratamento. 

Antecipo que esses achados não mudam minha visão sobre a urgente necessidade, para meus queridos amigos e seus filhos, de estabelecer 120/80 mmHg como limite superior, talvez alto demais, da pressão normal. A pressão arterial de meus queridos próximos está resolvida, é de 110/70 mmHg em toda família, incluindo minha mãe, com 85 anos. Vamos todos viver 120 anos, se escaparmos do câncer e do caminhão desgovernado.

Os comentários de Luis, pertinentes e bem embasados, requereriam um tratado para serem refutados ou eventualmente apoiados. Tento extrair um extrato desses comentários, apontando fontes em que abordei os tópicos, os artigos completos podem ser obtidos diretamente comigo, se não disponíveis gratuitamente. Vamos por partes, como diria o amigo Jack, o estripador.

1. Desvio padrão amplo: abordagem matemática correta, mas somente útil para demonstrar que ensaios clínicos de estratégias, com alvos terapêuticos, como o SPRINT, são complexos e têm menor poder para detectar diferenças, pois as estratégias nem sempre se traduzem por efeito biológico paralelo. Dizendo em outras palavras, durante o seguimento do SPRINT pacientes do grupo 140 mmHg estiveram chocados e outros do grupo 120 mmHg em constante “crise hipertensiva”, como mostram os DPs estimados por Luís, diluindo a possibilidade de ocorrer diferenças devidas a real pressão arterial dos pacientes. É impossível, todos sabem, conseguir a pressão arterial alvo em boa parte de nossos clientes, os motivos são variados, mas não interessam aqui. Esse problema não tem importância para a interpretação do estudo, que não testa a ocorrência de desfechos primordiais por exposição a pressões diferentes. Testa, isso sim, a decisão de tentar levar abaixo de 140 ou abaixo de 120, ou seja, a bem conhecida, pelos leitores do blog, intenção de tratar. O trabalho poderia ser publicado e ter plena validade sem apresentar a figura de PA (com qualquer medida de dispersão). E até sem ter conseguido separar as medidas de tendência central, no caso a média de pressão arterial. Consiste em erro grosseiro de centenas de publicações, e dos pesquisadores que as interpretam, analisar os riscos de ocorrência de eventos por PA resultante de intervenções em análises secundárias de ensaios clínicos ou de coortes de pacientes, consideradas como exposição. A curva J não existe como resultado de tratamento. 

Discussão desse assunto pode ser encontrada em Fuchs FD, Blood pressure targets in the treatment of high blood pressure: a reappraisal of the J-shaped phenomenon. J Hum Hypertens. 2014 Feb;28(2):80-4

2. Menos efeito no AVC: os últimos ensaios clínicos norte-americanos, como no ACCORD, que foi quase paralelo ao SPRINT, têm demonstrado a espetacular redução da incidência de AVC que está ocorrendo lá e em outros países (parece que ainda não na querida Bahia, estou certo?). Há, em decorrência, acentuada perda de poder estatístico para análise desse evento. Mas concedo, talvez chance não explique tudo.

3. Insuficiência cardíaca: não é o caso de Luís, que estabelece crítica independente. Infelizmente ela está na linha dos detratores do ALLHAT e outros estudos que mostram particular eficácia de diuréticos. Passo longo tempo junto a meus alunos e residentes salientando que a ocorrência de IC, condição muito mórbida, certamente mais que morte súbita, angina tratável, e até infarto tratado precocemente, é desfecho maior e final da história natural da hipertensão arterial que não leva a cardiopatia isquêmica, AVC ou síndrome aórticas. Decorre não somente de disfunção sistólica, mas também da dita insuficiência cardíaca com função sistólica preservada, que se estuda dessa forma, procurando causas. Digo que essa procura é um exercício de futilidade, pois ela decorre de cardiopatia hipertensiva, ou até de cardiopatia valvar, a estenose aórtica dos veteranos, praticamente causada por PA elevada ao correr da vida. No SHEP e no SPRINT, estudos realmente bem feitos, a prevenção de incidência foi superior a 50%, convenhamos todos, um efeito espetacular.

4. A questão do AVC, da IC e do próprio infarto, perdem relevância no SPRINT ante a diminuição inequívoca de mortalidade, evento que não tem desvio padrão...

5. Sobre a prova de conceito: em parte está discutida acima e não tem qualquer equivalência com o exemplo do desfibrilador. O argumento aqui é muito extenso, mas felizmente também o tenho publicado, essa é de livre acesso: FuchsFD, Fuchs SC, Moreira LB, Gus M. Proof of concept in cardiovascular risk: theparadoxical findings in blood pressure and lipid abnormalities. Vasc HealthRisk Manag. 2012;8:437-42. É obvio que para a demonstração da prova de conceito apresentada no artigo se trabalha com estimativas: tanto os indivíduos sob risco de exposição a 110, 120, etc, classificados por medidas muito casuais de PA por métodos jurássicos (manguito de mercúrio, com ausculta), quanto os classificados como responsivos nos ensaios clínicos, podem ter tido amplas variações de PA, vide desvio-padrão.

6. Sobre graus de incerteza invoco Darwin: provavelmente todos os leitores, se não houver um texano ou religioso estrito, acredita na teoria da evolução. Recomendo a leitura de Popper sobre os aspectos filosóficos da formulação de boas teorias. De lá extraio o maior fundamento para a qualidade da teoria da evolução: coerência e possibilidade teórica de ser testada, ainda impossível. Baseou-se exclusivamente em coerência, pela observação exaustiva da natureza, sem qualquer ensaio clínico!!!! Riscos de PA superiores a 115/75 mmHg estão sobejamente demonstrados por observações e experimentos, de índios Mundurucus e Carajás ao estudo SPRINT, é hora de tratarmos de outros assuntos.

7. Breve nota sobre o HOPE-3, para os três leitores que chegaram até aqui: recomendo a leitura do editorial, já ajuda a entendê-lo, mas falta algo (ver a seguir). O editorialista fala de chance (é ensaio de tamanho médio), ou seja, do erro amostral. Traduzo: associação de um determinado valor de PA, correspondente a suas consequências hemodinâmicas sobre o vaso (pressões de cisalhamento, circunferencial e radial) são razoavelmente constantes e independentes de outros fatores em qualquer cm2 de endotélio. Esse valor existe e corresponde ao que seria teoricamente aferível em toda a humanidade. Como isso não é possível, estima-se o valor em diversas coortes e avalia-se sua reversão em diversos ensaios clínicos. Alguns têm maior chance de capturar o real risco e outros menores, com tendência dos resultados a agrupar-se ao redor do real valor (115/75 é um razoável valor, derivado de 61 estudos, realizados em vários cantos do mundo, com seguimento de 1 milhão de indivíduos/ano). Da mesma forma, os mais de 100 ensaios clínicos considerados para estabelecer as tendências centrais de reversão do risco têm dispersão ao redor da estimativa. Nesses estudos foram considerados ensaios clínicos realizados em pacientes com doença cardiovascular e que (quase) todos imaginam ter benefícios decorrentes de efeitos outros de anti-hipertensivos (HOPE 1, Europa, todos os estudos de IC, e outros), que atribuíram os benefícios a efeitos cardíacos, por exemplo, de inibidores da ECA e BRA. E no coração não tem receptor de angiotensina!! (para revisão desses estudos e ideias posso apontar antiga revisão minha sobre o tema, essa é cara, mas me peçamFuchs FD. Blood pressure-lowering drugs: essential therapy for some patients with normal blood pressure. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2004Sep;2(5):771-5. Voltando ao ponto do erro amostral: o HOPE-3 é mais um estudo, e deve ter seus resultados avaliados frente ao conjunto desses estudos: podem contribuir para o aumento da precisão da estimativa existente, mas não podem substituí-la.

8. E ainda sobre o HOPE-3: o pobre, mas bota pobre nisso, efeito preventivo de eventos de BRA, foi desconsiderado pelos autores e pelo editorialista. A pobre da hidroclorotiazida ficou lá meio que sozinha, e ela também é fracota. Para revisão da hidrocloro (já velhinha, tem novos dados comprobatórios) podem me pedir Fuchs FD. Diuretics: still essential drugs for the management of hypertension. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2009Jun;7(6):591-8. Sobre a pobreza dos BRA, incluindo ali a revisão da volumosa literatura sobre sua ineficácia, coloco as ordens os resultados do estudo PREVER-2: Fuchs FD e muitos queridos amigos. Effectiveness of chlorthalidone/amiloride versuslosartan in patients with stage I hypertension: results from thePREVER-treatment randomized trial. J Hypertens 2016; 2016 Apr;34(4):798-806.

9. E posso, por fim, cabe informar que o irmão do estudo acima, o PREVER-1, tem resultados muito interessantes, mas esperamos a publicação para julgamento pelos pares, incluindo o Luís Cláudio.

Avisei lá em cima que eu seria breve, imagine se não fosse. Encerro dizendo que não pretendo apropriar-me da verdade, mas buscar somente uma interpretação fundamentada para os fenômenos (não somente esse) que escrutino cientificamente, interpretando a literatura ou a produzindo, se possível. E posso, como bom cientista, estar errado.

4 comentários:

  1. Penso esse blog ser uma das principais referências para o estudo da MBE !!
    Discussão épica !
    Muito obrigado , Luís e Flavio pela enorme contribuição nessa discussão sobre os resultados desses ensaios , jamais veremos uma discussão como essa em congressos .....
    Parabéns !!

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  2. Excelente discussão.
    Acho que não existe nada mais matemático na medicina que a associação do incremento dos valores de PA com aumento do risco cardiovascular. Entretanto, a despeito do estudos demonstrarem um aumento do risco para cada incremento de pressão a partir dos níveis de 115 por 75, acho que uma pergunta cabível é: Será que não existe um limite, um ponto de inflexão onde não existe mais reversibilidade.

    Não só o Hope-3, mas o Hot study ( Hypertension Optimal Study) que foi realizado com 19 mil pacientes demonstrou que a redução de desfechos duros ocorreu quando atingiu-se níveis pressóricos de 138 por 82,6, e abaixo disso não houve diferenças significativas na redução de desfechos importantes, a despeito do uso de BCC associados em segundo passo a BB ou IECA e até clortalidona caso não se atingissem as metas pressóricas alvo.

    Outro ponto sobre o SPRINT é que além da ausência do desvio-padrão, a maneira como foram aferidas a pressões se distanciam muito da realidade clínica e os valores pressóricos em ambos os grupos puderam ser superestimados. Basicamente os participantes do SPRINT aguardavam em uma sala silenciosa por 5 minutos, em seguida um aparelho automático media a PA por 3 vezes, com intervalo de vários minutos, registrava e calculava uma média de PAS, tudo isso sem a presença do médico na sala. Os níveis pressóricos poderiam ter sido diferentes com outro aferidor e pode ter ocorrido até overtreatment em alguns pacientes.

    Sobre o AVC, o SPS-3 não encontrou diferenças entre os grupos, e o ACCORD-trial mostrou uma menor incidência de AVC no tratamento intensivo , mas era desfecho secundário - apenas gerou hipótese.

    Enfim, acho esse debate muito enriquecedor e estou aprendendo muito. Me lembrou a polêmica Platt-Pickering sobre a definição dos níveis para HAS e associação com riscos cardiovasculares. Tem coisas que demoram a mudar, visto a complexidade dos fatos. Talvez nossos instrumentos de pesquisa - os ECRs sejam ainda limitados pra dar a resposta correta, visto resultados que são ocultados ( desvio-padrão no Sprint, o dilema da ICC) baixo poder estatístico para detectar diferenças na redução de AVC em desfechos combinados e etc.)
    Mas, lendo um artigo Rev Bras Hipertens 8: 195-200, 2001, fique intrigado com a seguinte frase: " Do ponto de vista científico, o risco de eventos coronários e cerebrovasculares
    é um contínuo com a pressão arterial. Porém, na atividade médica, faz-se necessário definir-se quando o tratamento deve ser iniciado ou não.Logo, a hipertensão deveria ser definida pelo nível de pressão arterial, em que os benefícios do tratamento sobrepujariam os riscos."
    Acho que não podemos esquecer da reversibilidade e da aplicabilidade de todos esses conceitos - isto porque acho que não adianta estabelecer algo pouco aplicável. Reduzir a pressão a níveis agressivos pode implicar realmente em redução de mais eventos duros, mas talvez não existam diferenças tão grandes em relação aos tratamentos usuais ( mais flexíveis) e que vem acompanhado de menos efeitos adversos.
    No final temos que exercer uma medicina de ajuste(alfaite?), tateando os conceitos estabelecidos e propondo o que é melhor para nosso paciente com base em sua resposta.




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  3. Muito boa discussão. Sou geriatra e tive a infelicidade de perder um avô devido a um TCE decorrente de hipotensão postural causado por uso de diurético em dose inadequada, prescrito pelo seu cardiologista. E frequente no ambulatório ver síndrome depressiva associada a hipotensão. Idosos tem pseudo-hipertensão. Todo cuidado é pouco com o idoso frágil. Mas isso é apenas um fato observado, não tenho estudos para oferecer, como o colega acima, mas estou me educando a buscá-los. Tratamento individualizado é o que eu entendo ser o que a frase do colega acima sugere, "a hipertensão deveria ser definida pelo nível de pressão arterial, em que os benefícios do tratamento sobrepujariam os riscos."

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  4. Sensacional discussão.
    Gostaria de ver algo assim nos congressos da SBC.
    Parabéns e obrigado.

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