sábado, 28 de maio de 2016

O Entrelace entre “Segurança Perceptível” e Choosing Wisely




Estamos acostumados a conviver com demonstrações teatrais nos momentos que precedem a decolagem de um avião comercial, abordando como utilizar os coletes salva-vidas posicionados estrategicamente abaixo do assento de cada passageiro.

Dentre os milhares de passageiros em vôos comerciais diários, quais se fazem a seguinte pergunta: quantas vidas foram salvas por este importante dispositivo de segurança? 


Considerando o alto custo do consumo de gasolina promovido pelo peso destes coletes,  surge a segunda pergunta: Por que então as empresas prezam tanto por estes coletes, se os mesmos não aumentam a segurança dos passageiros?

Resposta: porque os coletes aumentam a “segurança perceptível”.

Não aumentam segurança, mas aumentam a percepção de segurança. Dentro de um avião, é importante gerar esta percepção, pois voar não é exatamente algo que nós, serem humanos, fazemos com naturalidade. 

Não só os coletes, como o desligar dos celulares e computadores, além de outras das muitas (chatas) obrigações de comportamento no decolar ou aterrisagem servem apenas para gerar uma sensação de que “tudo está sob controle”.

O termo “perceived safety” foi cunhado pelo médico alemão Franz Porzsolt e se encaixa perfeitamente na discussão Choosing Wisely. Este fenômeno cognitivo descrito por Franz é a causa raiz do uso indiscriminado de procedimentos inúteis em medicina. 

Somos avessos a qualquer tipo de risco, e esta aversão garantiu a sobrevivência de uma espécie que em épocas passadas estava constantemente sob risco iminente de morte. O psicólogo Daniel Kahneman, ganhador do prêmio nobel, demostrou nossa aversão a qualquer tipo de risco ao perguntar a voluntários se eles desejavam receber $1.000 garantidos ou responder uma pergunta para receber $ 2.000 caso acertassem. Considerando que nenhum dos montantes mudaria a vida de ninguém, a expectativa seria que um bom número preferiria arriscar, algo como 50% das pessoas. Mas isto não aconteceu, prevaleceu de forma significativa a primeira escolha. Isto reflete nossa aversão a riscos, explicando porque fazemos qualquer coisa (mesmo coisas sem efeito real) para reduzir a nossa sensação de insegurança. 

Perseguimos a certeza platônica de que nada nos acontecerá e acreditamos que exames e procedimentos nos darão essa garantia. Ficamos até surpreendidos quando, depois de “todos os exames normais”, alguém aparece doente ou morre.

Exemplos típicos de procedimentos diagnósticos que geram (apenas) segurança perceptível são rastreamentos universais (assintomáticos) de doença coronária, câncer de próstata e câncer de mama. Exatamente, os meses rosas e azuis servem apenas para gerar segurança perceptível, uma sensação compartilhada por médicos e por pacientes. 

Mas qual o problema de gerar segurança perceptível?

Os três tipos de segurança perceptível


Divido as condutas geradoras de segurança perceptível em 3 tipos: as que trazem segurança real, as que não modificam a segurança real e as que reduzem a segurança real. 

No primeiro caso, devemos adotar a conduta pelo seu real benefício. Mas também podemos aproveitar para explorar o benefício da segurança perceptível, ao enfatizar para o paciente a magnitude do benefício de nossa decisão. Assim teremos um resultado positivo duplo, físico e emocional. 

No segundo caso, a conduta deve ser adotada em situações onde a segurança perceptível se faz coletivamente necessária, como é o caso do controle de ansiedade dentro de uma aeronave. Por outro lado, devemos evitar a promoção de condutas fantasiosas individuais. É uma linha tênue que nos dividiria do charlatanismo: como poderíamos gerar a segurança perceptível de forma transparente, sem dizer ao nosso paciente que aquilo não promove segurança real? Isso dá um bom debate ...

Mas é o terceiro caso que mais preocupa os indivíduos de pensamento epidemiológico. E este é exemplificado pelas consequências não intencionais dos rastreamentos diagnósticos acima descritos. 

Enquanto os ensaios clínicos de qualidade superior não demonstram redução de mortalidade com rastreamento para câncer de mama, para cada 1.000 mulheres rastreadas por 10 anos, estima-se que haverá 500 mamografias falso-positivas, 100 biópsias desnecessárias e, pasmem, 6 tratamentos (radioterapia, quimioterapia, cirurgia mutilante) desnecessários são adotados em pacientes cuja alteração supostamente maligna nunca evoluiria para limitar suas vidas. Para cada 1.000 homens rastreados para câncer de próstata, não há redução de mortalidade, porém estima-se 120 biópsias desnecessárias, 100 tratamentos fúteis, deixando 29 homens impotentes e 19 incontinentes. Sem falar dos assintomáticos que recebem procedimentos invasivos coronários inúteis, restando-os desfrutar das eventuais complicações, pois de benefício real eles não desfrutam.

O pensamento não é estatístico, pois se fosse perceberíamos o seguinte: para cada consequência intencional, há uma infinitude de consequências não intencionais concorrendo para prevalecer. A probabilidade, em geral, é maior das consequências não intencionais. Isso fica pior quando a consequência intencional é fictícia.

Viés Cognitivo


Não é por má intenção que adotamos condutas fúteis. É verdade que há conflitos de interesses, porém este é apenas um fator agravante. O cerne do problema está em nossa forma de ingênua e natural de pensar. Mesmo se não houvesse conflitos de interesses, condutas fúteis continuariam a existir, por intermédio do viés de segurança perceptível. É humano procurar por esta segurança. 

Hoje mesmo eu conversava com um dos mais competentes e inteligentes dos cirurgiões cardíacos que conheço. Ele mencionava da dificuldade de não utilizar o balão intra-aórtico em certos pacientes graves, mesmo sabendo que tal conduta carece de benefício clínico. Concordo, por vezes é difícil vencer o apelo da segurança perceptível. É humano ser assim …

Mas “ser humano” não é o mesmo que “ter razão”. Profissionalmente, precisamos controlar nossos vieses cognitivos, procurando um pensamento racional e embasado em evidências. Tenho a impressão de que é isso que nosso cliente espera de nós. 

A forma relaxada de pensar é enviesada por natureza. Pensar se prevenindo contra vieses é trabalhoso, gasta energia. Mas profissão é trabalho, portanto temos que assumir um raciocínio um pouco mais trabalhoso. Mais profissional. 

Muitos dizem que o uso inapropriado de exames e tratamentos é culpa do cliente que já entra no consultório pedindo por diversas prescrições. A verdade é que a mente do cliente é moldada por nós, os formadores de opinião. Normalmente a comunidade médica promove o paradigma do mais é mais, a mentalidade do médico ativo. Médicos em evidência nos programas de TV matinais, infelizmente, perdem a oportunidade de trazer ideias positivamente transformadoras, limitando-se a falar o “óbvio equivocado”. 


A Campanha Choosing Wisely


Choosing Wisely é o remédio para o mau uso da segurança perceptível.

Há um ano, escrevi neste Blog sobre Choosing Wisely e postei uma série de vídeos em que conversávamos com personalidades internacionais envolvidas com esta campanha, como Aseem Malhotra, Wendy Levinson e Daniel Wolfson.

A campanha Choosing Wisely promove uma discussão crítica em torno de condutas médicas de baixo valor e muito prevalentes. São condutas que oferecem razoável probabilidade de malefício ao paciente (efeitos adversos, incômodos, estresse psicológico), com baixa probabilidade de benefício. É uma provocação em direção ao paradigma do menos é mais (less is more)

Passado um ano, a campanha ganhou força em nosso país: implementamos a lista na Sociedade Brasileira de Cardiologia em iniciativa realizada durante o ano 2015; a Sociedade de Medicina de Família seguiu a mesma tendência, iniciando sua campanha no presente ano. O PROQUALIS adotou a companha, estando próximo ao lançamento de seu site Choosing Wisely. Reportagens recentes na Folha de São Paulo e BBC Brasil começam a trazer esta discussão para a Sociedade. Estamos aos poucos evoluindo em pensamento.

Choosing Wisely não é apenas sobre fazer menos. É principalmente sobre pensar melhor. Importante entender que esta não é uma campanha que visa cercear a decisão médica. Choosing Wisely visa promover reflexão. 

É compreensível que alguns esperneiem quando vêem recomendações do tipo “não realizar intervenção coronário percutânea com stents em indivíduos assintomáticos”. Revoltam-se com um mero convite para uma reflexão inteligente. Isto é natural, pois decorre de outro viés prevalente na mente humana: o conforto cognitivo. O conforto cognitivo gerado por nossos próprios dogmas. De fato, é bem desconfortável questionar nossos dogmas. 

Vejo o futuro com otimismo, esta evolução me parece ser um caminho sem volta. Digo isto graças a outra característica da mente humana: a vaidade. Quando mentes resistentes perceberem que a postura reflexiva vem sendo adotada por um grupo crescente e que esta atitude tem um caráter de vanguarda, estes passarão a desejar fazer parte do processo. 

Choosing Wisely se define como um movimento. Um movimento não dogmático ou extremista, um movimento em prol da incerteza, do cuidado nas decisões médicas. 

Também enfatizado nos encontros internacionais do grupo de trabalho Choosing Wisely é o cuidado para guardar uma distância do paradigma político típico de sociedades médicas. 

Choosing Wisely é um movimento de reconhecimento de nossos vieses cognitivos. Para sermos sábios, conforme sugere o nome da campanha, precisamos estudar nossa forma de pensar. Uma grande deficiência do ensino médico é ser pautado no acúmulo de conhecimento, e pouco se estuda como nossa mente funciona durante decisões incertas.  

Conclusão


Há 100 anos William Osler tentava nos ensinar algo que poucos aprenderam: “medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade”. Ao longo das décadas, promovemos uma cultura de certeza platônica, gerando atos médicos fúteis, que muito mais fragilizam os pacientes do que os protegem. Precisamos ser sábios em diferenciar o joio do trigo, saber quando fazer muito e saber quando fazer pouco. 

Muito precisamos evoluir para chegar do nível de William Osler. E nossa evolução começa pela humildade de reconhecer que nossas hipóteses precisam ser testadas e que os resultados dos testes muitas vezes surpreendem nossa lógica. 

Segurança perceptível é a causa principal do overdiagnosis e overtreatment.  Choosing Wisely é a provocação de que precisamos pensar mais. Pensar melhor.


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* Em breve, postaremos entrevista com Franz Porzsolt sobre o conceito de Perceived Safety.

10 comentários:

  1. Parabéns , firme e assertivo como sempre . O movimento CW poderia investir num aplicativo muito pratico para demonstrar ao cliente que o exame milagroso estatísticamente mais atrapalha que ajuda , algo nesse sentido.
    Até para se contrapor ao vizinho "útil" .
    Existe algo nesse sentido ?
    Abs
    Wálmore

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  2. Concordo plenamente!! É preciso fazer uma nova educação cultural, onde não é preciso fazer todos os exames disponíveis para descartar doenças. Porque o paciente aceita melhor um exame que não mostrou a doença que ele desenvolveu depois (ex: um teste ergométrico normal que o paciente evoluiu com infarto alguns meses depois) do que apenas o exame físico e a explicação que o risco é baixo e não precisaria de exames. O paciente vai sair falando que o médico foi imprudente ao não pedir o exame.

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  3. Luis, Parabéns por mais um excelente texto e muito obrigada por nos presentear sempre com o seu raciocínio simples porém profundo.

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  4. Luis,

    Muito apropriado o post para construção e implementação dos fundamentos do paradigma "less is more", que deverá ser a postura médica norteadora nas condutas clínicas de um modo geral, uma vez que "more is more" para gerar benefícios clínicos é incomum. Este blog representa a vanguarda deste movimento e se constitui em ferramenta útil de aprendizado que transforma condutas. Pensar devagar, usando o sistema 2, em detrimento do sistema (intuitivo) não apenas é trabalhoso, mas requer compromisso e comprometimento com o exercício da MBE.

    Noto que para a maioria de nós é mais fácil emitir o pedido do teste ergométrico, do PSA, do screening do que investir tempo em explicar s não necessidade destes, rotineiramente...aqui o sistema 1 assume o comando e no vies cognitivo "vai que neva" expomos o outro a muitos procedimentos que sabemos como começam, mas não podemos "prever" como terminam.

    Parabéns pelo post, inspirador

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  5. Luis,

    Muito apropriado o post para construção e implementação dos fundamentos do paradigma "less is more", que deverá ser a postura médica norteadora nas condutas clínicas de um modo geral, uma vez que "more is more" para gerar benefícios clínicos é incomum. Este blog representa a vanguarda deste movimento e se constitui em ferramenta útil de aprendizado que transforma condutas. Pensar devagar, usando o sistema 2, em detrimento do sistema (intuitivo) não apenas é trabalhoso, mas requer compromisso e comprometimento com o exercício da MBE.

    Noto que para a maioria de nós é mais fácil emitir o pedido do teste ergométrico, do PSA, do screening do que investir tempo em explicar s não necessidade destes, rotineiramente...aqui o sistema 1 assume o comando e no vies cognitivo "vai que neva" expomos o outro a muitos procedimentos que sabemos como começam, mas não podemos "prever" como terminam.

    Parabéns pelo post, inspirador

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  6. No Harrison há um interessante capítulo que aborda sobre a detecção precoce e os testes do triagem para câncer e tem muito haver com essa discussão proposta.
    Os testes de triagens são suscetíveis a três viéses. Viéses de Seleção, Duração e Avanço. Atentando-se aos viéses de duração e avanço, veremos que:
    Viés de avanço - ocorre quando um teste não influencia na história natural da doença, o paciente é apenas diagnosticado mais cedo. Quando este viés ocorre, a sobrevida parece estar aumentada, mas na verdade , a vida não é prolongada. O teste de triagem apenas prolonga o tempo pelo qual o indivíduo é considerado um paciente e tem conhecimento da doença.

    Viés de duração - ocorre quando cânceres menos agressivos e de crescimento lento são detectados mais cedo durante a triagem. Muitas vezes esse viés leva ao diagnóstico excessivo e ao conceito de pseudo-doença. Muitos desses tumores atendem aos critérios histológicos de câncer, mas não se tornarão clinicamente significativos levando a morte. Este problema é complicado pelo fato de que os canceres mais comuns aparecem mais frequentemente em idades mais avançadas em que outras causas de morte são frequentes.
    Isso não te parece familiar? Uso do PSA indiscriminadamente e CA de prostáta, Screening para CA de mama entram ai.

    Ademais, não vejo o paradigma do Less is More se tornar preponderante num curto espaço de tempo. Vai levar algum tempo ainda para que este novo pensamento possa substituir o velho.
    O argumento emocional e pouco embasado cientificamente a favor de condutas mais agressivas ou mais defensivas ainda predomina na maioria das universidades brasileiras e é bastante comum na tomada de decisão de condutas médicas em todas especialidades.
    Olhemos ao redor e vejamos que o interesse por parte de grande parte dos professores, ainda hoje, pelos princípios da epidemiologia clínica é muito baixo, como fazer esse pensamento proliferar nos cursos de Medicina onde nós aprendemos condutas médicas na base da orelhada!
    Eu tenho observado muitos exemplos no cotidiano médico que tem me feito refletir bastante sobre Economia-clínica e do poder destas solicitações em agregarem valor ao meu raciocínio e seus riscos e benefícios.
    Solicitações de RX de seios da face para diagnóstico de Sinusite Aguda ainda são comuns, porque segundo o raciocínio médico de alguns, o paciente precisa voltar para casa com um exame. Não seria mais fácil explicar que esta conduta não agrega valor ao diagnóstico ?
    Fazer screening de bacteriuria em indivíduos assintomáticos e sem indicações de tratamento para bacteriúria assintomática é comum também, porque o médico não " confia " nas evidências de boa qualidade que demonstram que devemos tratar bacteriúria assintomática em casos específicos, onde o risco de complicações é muito maior que o ato de não tratar. Este é um fator contribuidor para criação de cepas resistentes ao uso de antibióticos comuns. Aliás, o uso irracional de antibióticos cai muito bem nessa questão do Less is More x More is More. Esquecemos de avaliar o paciente mais continuamente quando há dúvidas do caráter etiológico da infecção ( uma simples infecção de garganta) e por "segurança" usamos muitas vezes ATB indevidamente.
    A discussão sobre o outubro rosa é extremamente politicamente correta e passa longe do aspecto científico.

    E finalizando, acho que médicos atuam - sob os riscos do viés de memória e do desencarno de consciência - Primeiro - tendemos a nos lembrar de casos mínimos onde um paciente se beneficiou de uma conduta pouco recomendada ou pouco demonstrada, cientifica supervalorizando excessões - Esquecemo-nos dos casos deletérios que são maiores. Só nos lembramos de quando deu certo.
    E segundo, como você disse, somos avessos aos riscos - A típica medida : vou pedir este exame ( desnecessário ) só pra garantir, muitas vezes criando um problema maior que o inicial.


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  7. Um consolo ler voces, Luiz e os comentarista. Tenho quase 35 de clínica médica e a semana toda gerencio prescrições tremendas em combinações de tantas drogas que dá vontade de desistir. E por uma questão ética tento "negociar" com os especialistas. "Nemesis da Medicina " do Ivan Ilitch ja falava disso na decada de 70." SINVASTATINA PARA TODOS"

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