A prática da medicina/saúde (baseada em evidências) é permeada por uma problema recorrente. Vamos bem até certo ponto, quando a coisa desanda. Todos (quase todos) reconhecem a importância de embasamento científico, nos interessamos por pesquisar evidências, avaliamos o nível de evidência de forma cada vez mais competente. No entanto, ao nos deparamos com a decisão clínica, muitas vezes tomamos um rumo não científico. Na hora H desafinamos. Por que?
A resposta é que falta um importante passo na sequência de ações que caracterizam medicina baseada em evidências.
Classicamente, a prática de medicina baseada em evidências segue os seguintes passos sequenciais: (1) a partir de um dilema clínico, desenvolver uma pergunta científica; (2) Em seguida, pesquisar evidências a respeito da pergunta científica; (3) Analisar criticamente a qualidade e relevância das evidências; (4) Caso válida e relevante, incorporar a evidência na prática clínica. Nesta sequência clássica, nossa decisão é norteada por “evidências externas”.
No entanto, por trás de toda decisão, existe o que chamamos de “evidências internas”, que exercem (voluntária ou involuntariamente) um papel crítico na forma como interagimos com evidências externas no processo de tomada de decisão. As evidências internas podem nos aproximar ou nos afastar do paradigma da decisão científica, a depender se estas concordam ou discordam das evidências externas.
Desta forma, na prática da medicina baseada em evidências não devemos apenas acessar e julgar a qualidade das evidências externas. Devemos fazer o mesmo processo com evidências internas.
O acesso das evidências internas foi originalmente proposto por Franz Porzsolt em artigo publicado no Evidence Based Medicine, em 2006. Em conversa recente com Franz, evoluímos para o conceito de (não só acessar), mas também analisar criticamente as evidências internas (critical appraisal of internal evidences), tal como fazemos com evidências científicas externas.
Sendo assim, a análise de evidências internas deve preceder a análise das evidências externas.
Como ?
Após determinar a pergunta científica, devemos “pesquisar” nossas evidências internas. Ou seja, utilizar um processo mental de busca das nossas crenças a respeito da determinada questão. No que eu acredito ou tento acreditar? Qual minha preferência a respeito desta questão?
Uma vez identificando as evidências internas, devemos passar para a análise crítica destas evidências. Neste caso, podemos verificar de onde vem nossa crença interna: da percepção de plausibilidade extrema (válida), do conhecimento de trabalhos válidos que trazem evidência suficiente a respeito da questão? Por outro lado, podemos verificar que temos uma crença interna não embasada em evidências. Este processo mental nos traz uma conscientização de um preconceito que pode ser justificável ou não justificável.
Portanto, ao identificar que já temos uma evidência interna, devemos fazer a seguinte sequência para o “critical appraisal”:
- Minha evidência interna tem plausibilidade extrema?
- Minha evidência interna é respaldada por trabalho científicos de qualidade que tomei conhecimento previamente?
- Se a resposta das questões acima for negativa, partiremos para uma avaliação mais crítica em relação à nossa opinião:
- Minha crença pode ser provocada por uma vantagem pessoal a respeito da questão (conflitos de interesse material ou intelectual)? Observem que conflitos de interesse não representam apenas questões materiais. Como acadêmico da área, eu posso ser demasiadamente cético em relação a algo, assim como um natureba pode ser demasiadamente crente em relação a algum tratamento natural.
- Minha crença é provocada pelo desejo de tomar o rumo mais confortável, pois isto é o que a maioria dos médicos faz? (embora duvidoso).
- Estou caindo na mentalidade do médico ativo, quando agir predomina sobre não agir, sem um racional específico.
- Estou valorizando devidamente a incerteza ou prefiro me basear em uma certeza platônica?
Após este processo, teremos nos preparado melhor para analisar as evidências externas. Embora não haja garantia de que nosso inconsciente não vá nos trair, este é um processo de conscientização que reduz vieses cognitivos comuns na mente médica.
Além da análise crítica de nossas crenças, esse processo nos permite reconhecer as preferências nossas e dos nossos clientes. Ou seja, partimos da preferência, olhamos as evidências e se pudermos sincronizar as duas coisas, o faremos. Evidências nos trazem um norte para tomada de decisão, que no entanto devem ser revistas em relação à individualidade e preferência de cada um. Um tratamento eficaz pode ser inefetivo se aplicado a um paciente que o rejeite e cuja aderência será ruim. Precisamos alinhar as duas coisas e o primeiro passo para isso é a análise de nossas evidências internas.
A Verdadeira Medicina Baseada em Evidências
Medicina baseada em evidências internas e externas. Essa é a verdadeira.
Esta abordagem leva em consideração que por traz de uma decisão médica, há um ser humano. Mesmo vestido de profissional de saúde, este indivíduo continua humano, sujeito às emoções e contradições de suas condutas.
Por vezes, noto uma abordagem burocrática em medicina baseada em evidências, principalmente por parte dos norte-americanos. Esta abordagem incomoda médicos e profissionais de saúde, que sentem que o paradigma científico como algo técnico e que não respeita a subjetividade da decisão. Isto distancia ciência de profissionalismo.
O que proponho não é a liberdade de fazer o que simplesmente o que se prefere. Pelo contrário, mantenho uma certa rigidez científica. Mas em primeiro lugar o olhar deve ser para o interior do profissional que estuda evidências, mas que tem crenças, que vive angústias relacionadas às suas decisões.
Este olhar não implica em nortear decisões pelas emoções. Pelo contrário, implica em reconhecermos, respeitarmos e nos preparamos para evitar que emoções gerem vieses cognitivos em nossas decisões.