Recentemente o EXCEL trial foi publicado no New England Journal of Medicine, o que desencadeou mensagens céticas pedindo que eu abordasse este estudo no Blog. Alguns colegas demonstraram desconforto com a credibilidade do estudo a favor da utilização da terapia percutânea no tratamento de lesões de tronco de coronária esquerda.
Este foi um ensaio clínico randomizado que testou a hipótese de não inferioridade da intervenção coronária percutânea com stent em relação à terapia cirúrgica, que é o tratamento convencional para pacientes com este tipo de anatomia.
Para quem ainda não é familiarizado com o conceito de não inferioridade, leiam posts prévios deste Blog (1, 2, 3).
Interpretação Clínica do Resultado
Vamos começar pela margem de não inferioridade de 4.2% em termos absolutos para o desfecho combinado de morte, infarto e AVC. É uma margem muito tolerante (muito ampla)? Talvez fosse se estivéssemos comparando um tratamento modestamente vantajoso em relação ao tradicional (por exemplo, um medicamento cuja via de administração fosse mais prática). No entanto, aqui estamos diante de um tratamento cuja vantagem é enorme. Ou seja, resolver seu problema com o implante de stent é enormemente mais vantajoso do que abrir o peito para fazer uma revascularização miocárdica. Vantajoso em relação a complicações graves, ao sofrimento físico e psicológico, ao tempo de internamento, à cicatriz, etc. Nesta circunstância, é possível aceitar uma margem de não inferioridade mais ampla.
Ao considerar a margem de não inferioridade de 4.2%, o estudo poderia dar significativo até mesmo se o limite superior do IC fosse de 4.1% a favor da cirurgia. E qual foi o resultado? O limite superior do intervalo de confiança foi 4.0%, fazendo com que o estudo fosse significativo (P = 0.02) para não inferioridade.
Em linhas gerais, 4% de risco absoluto é um aumento grande, mas se considerarmos a vantagem do tratamento percutâneo, este aumento se torna aceitável.
A lição principal é que a análise da margem de não inferioridade não é apenas estatística, deve considerar o quanto vantajoso é o tratamento alternativo.
Observem que 4% de aumento de risco com o tratamento percutâneo, significa um NNT = 25 a favor da cirurgia. Ou seja, 25 pacientes abdicariam do tratamento mais simples (menos sofrimento) e fariam cirurgia (mais sofrimento), para que apenas 1 paciente se beneficiasse da conduta mais sofrida.
Há formas diferentes de colocar isso em uma decisão compartilhada com o paciente: “Operando, você tem 4% de probabilidade de sair ganhando ou você pode dar a sorte (probabilidade) de ser 1 dos 25 que sairá ganhando ou você tem uma chance (odds) de sair ganhando de 1 para 24." Sabendo disso, você apostaria na cirurgia ou preferiria o tratamento mais simples?
No raciocínio de economia clínica, o preço do tratamento cirúrgico (mais sofrimento) é garantido. Porém o retorno do investimento não é garantido, há apenas 4% de probabilidade de retornar o investimento sob a forma de prevenção de desfecho cardiovascular (NNT = 25). Pensando economicamente, a maioria escolheria o tratamento com stent. Imagino que até mesmo cirurgiões que se tornassem pacientes prefeririam o tratamento com stent.
Mas tem outro argumento a favor do tratamento com stent. O limite superior do IC é o que pode ocorrer na pior das hipóteses, porém esse valor é sempre menos provável de ser verdade do que a medida pontual (central) do risco absoluto. Dentro de um intervalo de confiança, os valores não têm a mesma probabilidade de ocorrer. Quanto mais central o valor, mais provável. Portanto, depois de testarmos a hipótese estatisticamente pelo limite superior do IC, devemos olhar a medida pontual como uma análise complementar. E esta medida pontual foi praticamente zero (0.7%), indicando que é muito mais provável que os tratamentos sejam iguais, do que o tratamento percutâneo seja inferior à cirurgia na prevenção de eventos maiores.
Desta forma, considero esta uma evidência suficiente para colocar o tratamento com stent como uma opção, especialmente se o problema for limitado ao tronco e em pacientes de SYNTAX baixo, pois este estudo excluiu pacientes de SYNTAX alto. Esta alternativa fica ainda mais atraente se estivermos desconfortáveis pelo risco cirúrgico.
Por outro lado, a cirurgia é melhor para controle de sintomas, principalmente em pacientes multiarteriais (NEJM 2015). Desta forma, se o paciente for multiarterial e tiver angina crônica, o raciocínio de economia clínica muda. Passa a ser muito mais garantido o retorno do investimento cirúrgico sob a forma de controle de sintomas.
Embora eu julgue que a conclusão do EXCEL trial seja verdadeira e relevante, vale salientar duas espertezas que foram utilizadas pelo estudo para aumentar a probabilidade de sucesso em sua conclusão.
Esperteza na Análise dos Dados (intenção de tratar)
Análise por intenção de tratar é a mais adequada em estudo de superioridade, pois evita viés a favor da superioridade de algum tratamento ao excluir pacientes que não receberam tratamento. Estes tendem a ser pacientes de pior prognóstico e a exclusão deles promove que (a despeito da randomização inicial) o grupo se torne de melhor prognóstico.
Por outro lado, o raciocínio no estudo de não inferioridade é inverso. Neste tipo de estudo, a análise de intenção de tratar enviesa o resultado a favor da hipótese que o autor deseja comprovar. Isto porque ao manter na análise pacientes que receberam o tratamento para o qual não foram alocados (cross-over), o resultado dos dois grupos tendem a se aproximar, ou seja, a incidência do desfecho primário fica mais parecida entre os dois grupos. Neste estudo, por exemplo, a análise por intenção de tratar manteria pacientes do grupo stent que foram operados e pacientes do grupo cirurgia que receberam stent. Isso vai na direção de mostrar resultados semelhantes, enviesa o estudo em prol da não inferioridade.
Para evitar esse viés, se considera que a análise por protocolo (aquela que exclui pacientes que tiveram cross-over de tratamento) é a mais adequada (ou menos inadequada) em estudo de não inferioridade. Estranhamente, os autores não pré-definiram a análise por protocolo como a principal, preferiram considerar a análise por intenção de tratar como a primária. Fica claro aqui uma estratégia para tornar o estudo enviesado a favor da hipótese desejável.
Perceber uma provável intenção de levar vantagem não garante que um indivíduo levou vantagem. Ou seja, isso não necessariamente anula o resultado do trabalho. No presente estudo, análise por protocolo (secundária) mostrou resultados semelhantes à análise por intenção de tratar. A conclusão do trabalho seria a mesma se (corretamente) a análise por protocolo fosse a primária. Por este motivo, considero que este viés no desenho do estudo não invalida seu resultado.
A esperteza funcionaria se a análise por protocolo fosse negativa e a intenção de tratar (escolhida como primária) positiva. Daí suspeitaríamos que o resultado do estudo poderia ser um falso-positivo. Mas isso não ocorreu, as duas análises coincidiram. Fico com a veracidade do resultado do estudo.
Esperteza na Definição do Desfecho Combinado
O desfecho primário deste estudo é um combinado de morte, infarto e AVC. Este é um estudo de não inferioridade, no qual há razão para se achar que o tratamento cirúrgico é algo melhor do que o tratamento percutâneo nos componentes morte e infarto. Portanto está correto focar na não inferioridade da intervenção percutânea para estes desfechos. Mas observem o terceiro componente, AVC. Sabemos que cirurgia causa mais AVC do que intervenção percutânea, que quase não causa AVC. Portanto, ao colocar este componente em um desfecho combinado que testa não inferioridade do tratamento percutâneo, uma previsível vantagem em AVC por parte do tratamento percutâneo poderia compensar uma inferioridade deste nos desfechos morte e infarto.
Não se deve colocar em desfechos combinados componentes que apresentem diferentes direções, pois uma verdade pode anular outra verdade. Idealmente, o teste de não inferioridade deveria ser em relação a morte e infarto. E o AVC seria analisado em separado, sob a forma de superioridade, como um desfecho de segurança.
A despeito disso, olhando os números, não houve mais eventos de AVC no grupo cirurgia que anulasse uma vantagem em morte ou infarto. Sendo assim, usarei a mesma frase que usei no caso da escolha por intenção de tratar: este viés no desenho do estudo não invalida seu resultado.
Mas que foi uma combinação inadequada de desfechos, isso foi … Poderia ter sido comprovado uma falsa não inferioridade.
Isenção na Análise Crítica
Este estudo é um exemplo de que devemos ser isentos da análise crítica de um trabalho. Percebemos potenciais conflitos de interesse no desenho do estudo, porém não devemos nos emocionar com isso e jogar fora o resultado do trabalho. Principalmente quando se trata de um trabalho que randomizou 1900 pacientes com lesão de tronco de coronária esquerda para dois tipos de tratamentos intervencionistas. Não é porque o estudo cheirou a esperteza, que devemos desconsiderar seu resultado, caso a análise sugira veracidade. O estudo nos traz um resultado útil clinicamente.
O valor da informação proveniente de um trabalho científico pode ser maior do que o valor da intenção do pesquisador.
Enfim, Qual a Melhor Conduta?
Afirmei acima que o estudo sugere o tratamento percutâneo como uma alternativa válida. Mas qual seria a primeira opção, cirurgia ou stent?
Se a única lesão importante for a do tronco de coronária esquerda, acho que este estudo respalda o tratamento percutâneo com a melhor opção, pois este tenderá a ser semelhante no controle de sintomas, não inferior na prevenção de desfechos maiores e é um tratamento muito menos desagradável.
Por outro lado, se o paciente for multiarterial (metade dos pacientes do estudo), sabemos que a cirurgia é superior no controle de sintomas (NEJM 2015). Portanto, partindo de dois conceitos (o de não-inferioridade do tratamento percutâneo em desfechos maiores e o de superioridade da cirurgia em controle de sintomas), devemos tomar uma decisão individualizada pelo risco cirúrgico e pela preferência do paciente.
Medicina baseada em evidências não é medicina baseada em regras ou copiada de artigos, pelo contrário, é o exercício da individualização, norteada por conceitos científicos.
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Objetivos Didáticos desta Postagem:
- Análise crítica da margem de não inferioridade
- Raciocínio de economia clínica
- Análise por intenção de tratar versus análise por protocolo
- Desfechos contra-direcionais como combinados
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Muito grata por clarear nossa visão. Um abraço
ResponderExcluirAna Cláudia Carneiro
Ótima discussão !!.....Esse estudo nos causa um certo desconforto quando o analisamos criticamente, mas o exemplo de análise que nos deu quando faz a referencia sobre a economia clínica facilita o entendimento. O que estamos comparando e qual o retorno esperado ao escolhermos o tratamento ? Permitindo assim o entendimento da margem da NI.
ResponderExcluirLudicamente falando ..... um jogador de poker lucrativo tenderia a quase nunca pagar uma aposta com odds de 22:1 para ganhar um mão , salvo exceção de um pote de fichas muito grande e uma aposta irrelevante para pagar na tentativa de levar esse pote, somente assim teria odds para pagar ( > 22:1 ) , pois se o preço a ser pago for muito alto com essa odds de 22:1 ( nesses casos no poker o jogador precisa de uma unica carta num baralho de 52 - exemplo : só ganharia se aparecesse no jogo o 10 de ouros ) e a probabilidade de resultado favorável for de baixa probabilidade, é melhor não pagar essa aposta, pois perderia dinheiro no longo prazo mesmo se ganhasse essa mão por sorte. Essa é uma conduta deficitária no poker , pois perde-se mais do que ganha . Mas às vezes essa única e "salvadora" carta aparece.......e agora temos uma outra forma de pagar essa aposta ( onde o preço é alto ) ........de uma maneira mais simples e não inferior.
Luis, parabéns pelo trabalho que tem feito. Seu destaque é sempre motivo de orgulho. Acredito que exista algum conforto (pelo menos familiarização) na análise metodológica dos ensaios clínicos que testam superioridade:o conceito da hipótese nula, a interpretação do valor p e do erro tipo I, o intervalo de confiança e a precisão das estimativas, a análise por intenção de tratar. Até para aqueles com menor disposição ou simpatia para estes aspectos, compreendem bem a mensagem final. Os estudos de não inferioridade, apesar da aparente semelhança com estudos de superioridade, apresentam diferenças significativas na estrutura e no propósito, o que gera insegurança e desconfiança no leitor. Neste sentido, este texto tem especial importância, ao abordar temas possivelmente complexos de forma leve e descontraída, ampliando a audiência e o alcance das informações. Parabéns! É possível que este estudo tenha um importante papel pedagógico ao trazer à tona a discussão explícita sobre a autonomia de decisão do paciente.
ResponderExcluirEdval Gomes
Luis, parabéns pelo trabalho que tem feito. Seu destaque é sempre motivo de orgulho. Acredito que exista algum conforto (pelo menos familiarização) na análise metodológica dos ensaios clínicos que testam superioridade:o conceito da hipótese nula, a interpretação do valor p e do erro tipo I, o intervalo de confiança e a precisão das estimativas, a análise por intenção de tratar. Até para aqueles com menor disposição ou simpatia para estes aspectos, compreendem bem a mensagem final. Os estudos de não inferioridade, apesar da aparente semelhança com estudos de superioridade, apresentam diferenças significativas na estrutura e no propósito, o que gera insegurança e desconfiança no leitor. Neste sentido, este texto tem especial importância, ao abordar temas possivelmente complexos de forma leve e descontraída, ampliando a audiência e o alcance das informações. Parabéns! É possível que este estudo tenha um importante papel pedagógico ao trazer à tona a discussão explícita sobre a autonomia de decisão do paciente.
ResponderExcluirEdval Gomes