Quando o Corriqueiro Vira Emblemático
Na prática diária, vivemos casos clínicos que nos parecem parte corriqueira da rotina, permeados pelo automatismo das condutas e por interpretações deterministas, negligenciando sem querer a probabilidade das coisas. Mas quando nos distanciamos destes casos e olhamos de cima, como se estivéssemos sobrevoando o terreno, a imagem da floresta (todo) prevalece sobre árvores (partes) e podemos perceber que alguns casos nada tem de corriqueiros.
Tenho um amigo médico … esse amigo tem um pai médico … meu amigo e seu pai viveram um corriqueiro caso clínico no final do ano passado. Neste caso, o pai era o “paciente” e meu amigo era o familiar do paciente. Como este é um caso ocorrido em uma distante capital do país, cuja narrativa veio da perspectiva do paciente, minha visão foi a do sobrevôo aéreo, a minha imagem foi do “todo”. E este “todo” foi emblemático.
Há 4 anos, o pai de meu amigo, assintomático do ponto de vista cardiovascular, foi submetido (sem suspeita clínica) a uma angiotomografia que demonstrou presença de doença coronária obstrutiva. Os médicos indicaram coronariografia invasiva, mas meu amigo perguntou o porquê daquele exame invasivo, visto que o pai era assintomático e o tratamento clínico poderia ser suficiente em indivíduos estáveis. Ele conhecia as evidências dos alguns ensaios clínicos que compararam intervenção versus não intervenção nestes casos. Como ninguém conseguiu justificar bem o porquê, o pai de meu amigo não fez a tal coronariografia e ficou em tratamento clínico ao longo desses 4 anos, mantendo a estabilidade e qualidade de vida.
Até que o pai do meu amigo descreveu em consulta de rotina, no final do ano passado, uma certa limitação funcional aos esforços maiores, sem dor precordial. Bem, agora que a doença coronária dele estaria se manifestando, foi proposto novamente o cateterismo. Neste momento surgiu a tão desejada justificativa para o exame, a qual não havia sido encontrada anos atrás. Tudo que precisamos são justificativas.
Chamo isso de Medicina Baseada em Justificativas.
O médico prometeu a meu amigo que aquele era apenas um exame diagnóstico. Por algum motivo, meu amigo não acompanhou seu pai neste exame diagnóstico. Durante o exame, foi seu irmão que recebeu uma ligação do “hemodinamicista”, que explicou a necessidade de uma intervenção coronária percutânea naquele momento, pois “a coronária direita tinha uma lesão grave”. O coitado do irmão, sem saber o que dizer, deu o consentimento que o médico tanto precisava.
Há uma imensa diferença entre decisão compartilhada e decisão consentida. Os médicos as confundem.
O procedimento foi realizado. Ou melhor, tentaram realizar a intervenção coronária com implante de vários stents na coronária direita acometida de placas em toda sua extensão, porém não houve sucesso. O pai de meu amigo acabou por dois dias na UTI, onde foi mantido anticoagulado. Parece ter havido dissecção de coronária. Com o passar de dois dias, não havendo intercorrência, ficamos aliviados. "Vamos torcer para as placas tanto manipuladas se estabilizem e tudo voltará ao normal."
Mas os médicos não se deram por satisfeitos. Propuseram que o pai tivesse alta e voltasse depois do natal para uma nova tentativa de intervenção na coronária direta. A conduta parecia normal e necessária aos olhos de seu pai e da sua família, que se sentiam lutando conta o mal de uma grave doença, na corriqueira visão médica maniqueísta do bem e do mal. O bem deve lutar sempre contra o mal, sendo esta a origem da mentalidade do médico ativo.
Chamo isso de Medicina Baseada em Maniqueísmo. Uma visão religiosa.
Já meu amigo não sabia mais o que fazer. E compartilhava comigo sua angústia de ver o “todo”, sem conseguir modificar as “partes”.
O corriqueiro por vezes é emblemático. Basta olhar com atenção.
Nesta postagem, não serei repetitivo em revisar mais uma vez a consistência dos vários ensaios clínicos em pacientes estáveis, cujo resultado limitam o benefício da intervenção percutânea ao melhor controle de sintomas, quando comparado ao tratamento clínico, sem promover redução no risco de infarto ou morte. Nem mesmo revisarei os ensaios clínicos randomizados (todos negativos) que testaram a estratégia de realizar ou não rastreamento para doença coronária. A postagem em que discutimos o screening da doença coronária em Papai Noel é uma boa fonte para revisão esse discussão, caso o leitor deseje.
Na verdade, não há grande impacto em discutir evidências, pois a promoção de procedimentos inapropriados sempre traz a justificativa de que “aquele paciente em particular tem algo de diferente” que fará com que o procedimento funcione melhor, mesmo que não haja comprovação nisso.
Ademais, qualquer revisão desta literatura será antagonizada pelo argumento de que agora o pai estava sintomático por sua limitação funcional. Esse caso agora se tornou diferente dos pacientes avaliados nos tais ensaios clínicos.
No fundo, é fácil encontrar justificativas para procedimentos contrários às evidências, pois todo paciente tem suas particularidades e podemos escolher algumas como justificativa.
Mais uma vez, a Medicina Baseada em Justificativas. Justificativas existem para todos os gostos.
Fugirei portanto da redundante revisão de evidências. Quero hoje discutir pensamento. Pensamento clínico aplicado a este caso, abordando três importantes componentes que com frequência se fazem ausentes da prática: o raciocínio econômico, o pensamento probabilístico e a diferenciação entre sintoma e qualidade de vida.
A Carência do Pensamento Econômico
O pai de meu amigo vinha em tratamento clínico, com evolução estável. Até que encontraram uma justificativa para mudar a conduta para invasiva. A justificativa foi uma possível redução de capacidade funcional, subjetiva, que não limitava suas atividades, nem piorou sua qualidade de vida, nem mesmo estava claro uma relação causal com isquemia miocárdica. Obesidade, síndrome de apnéia do sono, obstrução alérgica de vias respiratórias superiores, idade, tudo isso estava presente como causas concorrentes ou concomitantes.
O pai do meu amigo mencionou o sintoma nesta consulta sem ter noção do impacto que sua menção teria no pensamento do médico. Ao mencionar, um forte link causal se estabeleceu entre a “queixa” e a doença coronária diagnosticada há vários anos.
Faltou um pensamento básico de economia clínica: a magnitude do benefício do procedimento deve ser contrastada com o preço que se paga pela conduta.
Primeiro ponto: a magnitude do benefício, limitada a melhora da sintomas, seria claramente pequena, pois o sintoma a ser melhorado era originalmente de pequena magnitude. Por melhor que fosse o tratamento em reduzir proporcionalmente o sintoma, a redução absoluta do sintoma seria pequena, pois o sintoma era pequeno.
Além disso, o componente de isquemia miocárdica representa apenas das potenciais justificativas da limitação funcional aos grandes esforços.
Segundo ponto: qual o preço que o paciente pagou por esta pequena melhora de sintoma em potencial?
O preço principal foi perda de qualidade de vida. O pai de meu amigo estava ativo profissionalmente, animado com as festas de final de ano, quando planejava passar reunido com a grande família em outra cidade. A conduta transformou um indivíduo aparentemente sadio em um doente.
E doente grave não viaja com fins festivos. Viagem cancelada. O pai foi orientado a passar o feriado de fim de ano em casa, esperando para voltar ao hospital e refazer o tal procedimento, apreensivo com a possibilidade de infartar a qualquer momento.
Foi quando meu amigo me ligou e me lembrou da ironia: tudo isso tinha ocorrido nas vésperas do natal! Ele se referia à história de minha postagem antiga, em que Papai Noel foi submetido a um cateterismo neste mesmo período, estragando o Natal das crianças naquele ano, pois um recém-doente não teria condição de entregar presentes ao mundo inteiro.
Um simples pensar econômico poderia ter preservado o pai do meu amigo: o potencial benefício seria pequeno, mas havia uma possibilidade de malefício que (se ocorresse - e ocorreu) seria de maior magnitude.
Você gostaria de apostar em uma (incerta) possibilidade de que uma intervenção promoverá melhora (parcial ou total ?) deste seu subjetivo sintoma, pagando em troca a possibilidade de perda de qualidade de vida?
Deixemos o paciente escolher sabendo a realidade de sua decisão.
Há uma imensa diferença entre decisão compartilhada e decisão consentida. Os médicos as confundem.
É fácil para mim julgar esse caso depois de ter ocorrido uma complicação. Sem dúvida, a facilidade não invalida meu raciocínio. O meu argumento é que o pensamento deveria ter existido antes de saber que houve a complicação. Concordo que a probabilidade de que a angioplastia desse errado era pequena, mas a magnitude e probabilidade de benefício também era pequena. Pequeno por pequeno, é melhor deixar nosso cliente viver sua vida em paz.
Sim, em paz, pois este tal sintoma não estava tirando sua paz !
Vamos agora ao segundo aspecto: o pensamento probabilístico.
A Carência do Pensamento Probabilístico
A mente humana não pensa de forma probabilística, pensa de forma determinística. "Se eu não me afastar desse leão, vou morrer. Se eu fugir, vou sobreviver." Assim, essa forma determinística de pensar garantiu a sobrevivência da espécie sapiens. Os sobreviventes são deterministas.
Desta forma, o médico sapiens superestima a probabilidade de benefício dos procedimento. Isso está demonstrado em recente publicação do JAMA Internal Medicine, que mostra a superestimativa de médicos quanto ao benefício de testes e tratamentos.
No fundo, a probabilidade era pequena, mas o médico sapiens não percebeu.
O benefício aqui em questão não é infarto ou morte, pois já sabemos que o procedimento não reduz a probabilidade destes desfechos em pacientes estáveis. Por isso mesmo se esperou que o pai ficasse sintomático para desencadear todo o processo. Portanto o benefício em questão é melhora de sintoma. Vamos então estimar essa probabilidade de melhora de sintoma.
Esta é um probabilidade condicional. A primeira condição, incerta, é que o sintoma seja decorrente de insuficiência cardíaca diastólica. Neste caso, há dúvida, pois como já falei, há outras razões que dificultam este paciente ter alguma dificuldade aos grandes esforços. Sendo otimista, darei como 33% de probabilidade. Em segundo lugar, tem a probabilidade de que o tratamento coronário melhore o sintoma. Sabemos que não há apenas o mecanismo de isquemia para disfunção diastólica, existem muitos outros mecanismos, sabemos que não existe apenas uma coronária, sabemos que isquemia não decorre apenas de obstruções fixas em vasos epicárdicos. Mesmo assim, sendo otimista, vou estimar em 33% de probabilidade de que o tratamento desta coronária normalize a disfunção diastólica do paciente.
Agora, vamos multiplicar as duas condições, seguindo a regra da probabilidade condicional = 33% x 33% = 11% de probabilidade de que este tratamento controle o sintoma do paciente.
E qual a probabilidade de piora de qualidade de vida com esse procedimento?
Observem que a aposta no benefício é dirigida a apenas um mecanismo, a melhora da disfunção diastólica. Diferentemente, a aposta no malefício pode dar certo por uma infinidade de possibilidades, pois há uma infinidade de consequências não intencionais, mentais e físicas, que somadas resultam em um risco razoável de prejuízo.
A consequência intencional de uma conduta é apenas uma, que concorre com inúmeras e imprevisíveis consequências não intencionais. Isto está no cerne do pensamento probabilístico.
Na ausência de razoável convicção quando ao benefício, o malefício tente a prevalecer em probabilidade
A Confusão entre Sintoma e Qualidade de Vida
O pensamento anti-econômico confunde sintoma com qualidade de vida.
Sintoma é diferente de qualidade de vida. Um procedimento pode melhorar um sintoma e piorar a qualidade de vida de uma pessoa, principalmente quando o sintoma não está comprometendo tanto a qualidade de vida.
Por exemplo, estudos com cirurgia de revascularização em pacientes que têm angina demonstram que, no primeiro ano, embora a angina melhore, a qualidade de vida do paciente piora. É o preço pago pelo procedimento invasivo. Neste caso, o retorno tem que valer a pena.
Somos muito bons em pensar no específico, mas ruins em pensar no geral. Olhamos a árvore, mas nos esquecemos da floresta. O específico aqui é uma limitação funcional. O pensamento genérico traz questão: como o cliente (não a limitação funcional) ficará depois desse desentupimento da coronária?
A técnica para pensar no geral é fazer a seguinte pergunta: qual o desfecho que interessa mais neste caso? Se pensarmos em qualidade de vida, o procedimento se tornará muito questionável.
O Desfecho
Depois de passado o ano novo, o pai se reinternou e realizou com sucesso sua nova angioplastia da coronária direita, com quatro stents. Saiu com uma bela estética metálica em sua coronária, porém sua vida mudou de colorida para um tom de cinza. Sua fragilidade e medo de morrer o fez pedir licença de um cargo político-médico que acabara de assumir de forma o empolgada; o fez desistir de outro procedimento não cardíaco que poderia com muito mais alcance melhorar sua qualidade de vida (cirurgia otorrino para desobstrução nasal); e finalmente, o pai passou a apresentar alterações comportamentais, uma mistura de fobia e tristeza, algo que perdurando poderá vir a ser denominado de depressão.
O mais emblemático para mim neste caso foi que mesmo tendo um filho médico tentado trazer um pensamento econômico para o caso, a obstinação terapêutica prevaleceu. Fico a imaginar como ficam os outros pacientes que não tem esse filho médico com pensamento econômico e probabilístico …
Mais uma vez, um saudável foi transformado em doente.
Epílogo
Acredito na boa intenção dos médicos neste caso. Não acho que aqui houve um ato deliberadamente ruim, nem que esse tipo de obstinação terapêutica seja uma questão específica da especialidade cardiológica. Aqui não há vilões, apenas vítimas.
Nós médicos somos vítimas da fragilidade de nosso pensamento intuitivo, que desconsidera os raciocínios econômico e probabilístico. A medicina baseada em justificativas não decorre de ignoramos evidências, decorre de vieses cognitivos comuns à espécie sapiens.
Infelizmente, a abordagem tradicional da medicina baseada em evidências negligencia discussões da esfera cognitiva. Precisamos evoluir.
A revolução científica se iniciou no século XV quando os europeus passaram a desenhar mapas-mundi com partes vazias. Antes do século XV, os mapas-mundi eram todos preenchidos pela imaginação de quem não admitia desconhecer. O reconhecimento da ignorância e necessidade de evoluir fez com que os europeus se interessassem por preencher as partes vazias dos mapas e descobrissem continentes nunca antes imaginados.
Precisamos começar a desenhar mapas do pensamento médico parcialmente vazios. A próxima revolução médica não será tecnológica, será uma revolução cognitiva.
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