No domingo passado, a jornalista Cláudia Collucci publicou em sua coluna na Folha de São Paulo um artigo sobre a dramática dificuldade de portadores de Mucopolissadaridose tipo 2 em receber do SUS o tratamento enzimático cujo custo supera 1,2 milhão de reais ao ano, por paciente. Naquele artigo, que passa por aspectos de judicialização, advogados argumentavam que a falta do tratamento equivalia a uma "pena de morte" para os pacientes.
Fiquei curioso, pesquisei o nível de evidência deste tratamento, resultando nesta carta (e-mail) que enviei para Cláudia, publicada por ela no dia seguinte em sua coluna no mesmo Jornal. Compartilho aqui minha reflexão.
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Prezada Cláudia,
em seu provocante artigo publicado na Folha de hoje, você termina com a frase “… decisões com base em evidências científicas”. E é desse ponto que partirá minha reflexão.
Medicina baseada em evidências poderia (ou deveria) ser chamada de medicina baseada em VALOR. No verdadeiro valor das coisas. O valor de um tratamento está na veracidade de sua eficácia e no tamanho do efeito de sua eficácia.
Terminando de ler seu artigo me motivei a ir no UpToDate e pesquisar a respeito da eficácia do tratamento enzimático para mucopolissacaridose 2 em crianças.
Devemos nos perguntar: há benefício? Que tipo de benefício? E principalmente, qual a magnitude do benefício?
A magnitude do benefício é sempre muito importante, pois tudo tem um custo. Custo para o paciente ao ser submetido a um tratamento e custo monetário ao sistema de saúde.
O UpToDate cita uma revisão sistemática da Cochrane, muito elucidativa, pois mostra que há apenas 1 ensaio clínico randomizado, pequeno (96 pacientes). Este tipo de trabalho tem o valor “exploratório”, mas não “confirmatório” (nível de evidência baixo).
Minha primeira conclusão, há incerteza quando a eficácia.
Segunda conclusão, não há dados sobre mortalidade. Portanto, o advogado não tinha respaldo para usar o termo “pena de morte”, nem “dependem para sobreviver”. Há incerteza.
E o trabalho, se for verdadeiro, mostra que tamanho de efeito do tratamento (comparado a placebo)?
Houve melhora da capacidade da criança caminhar. Mas agora vem a pergunta mais importante: de quanto foi essa melhora (tamanho do efeito)? No teste de caminhada de 6 minutos, antes do tratamento a criança caminhava 400 metros em média. Após o tratamento, a criança aumentou sua capacidade de caminhar em 40 metros.
Qual a magnitude do benefício desse tratamento? 40 metros em quem anda 400 metros muda a vida da pessoa? Deixo a questão em aberto.
Quanto a outros benefícios, não foram testados. Portanto, fica a incerteza.
Na difícil questão que você aborda, prevalecem há 3 vieses típicos da mente humana:
(1) aversão pela incerteza (subestimamos nossa incerteza ou nem mesmo a reconhecemos);
(2) Superestimativa do efeito dos tratamentos: o que tem alguma eficácia passa a ser uma panacéia. Porém, em geral, a magnitude dos tratamentos voltados para melhoria de prognóstico é modesta;
(3) Pensamento anti-econômico: como demonstra o psicólogo Dan Ariely (recomendo o livro Predictable Irrationality), a mente humana não tem uma natural racionalidade econômica. Friso que quando falo economia não me refiro apenas ao monetário, embora no caso desta doença o custo monetário seja considerável.
Nada do que coloco aqui tem VALOR frente ao sofrimento dos pais e à sensação de alívio em saber que algo está sendo feito (isso também é valor). Ou seja, o problema não é simples, porém o que coloco aqui (medicina baseada em valor) deve ser considerado como um importante componente nesta excelente discussão que você levanta.
Abraço,
Luis.
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Para complementar, pedi opinião ao professor titular em saúde pública Jairnilson Paim.
Vejam suas considerações.
Caro Luís,
Depois das absurdas decisões do Congresso Nacional e dos presidentes da República Dilma Rousseff e Rodrigo Maia (em exercício), respectivamente, sobre a fosfoetanolamina e os anorexígenos, lamento lhe dizer que esses fatos já não me surpreendem, ainda que reforcem a minha indignação.
O SUS dispõe da Anvisa, uma agência reconhecida internacionalmente pela forma de atuação apoiada na produção científica e de uma instância para avaliação tecnológica em saúde vinculada ao Decit (Ministério da Saúde), que tem a responsabilidade de averiguar evidências para a incorporação de tecnologias (medicamentos, vacinas e procedimentos) no sistema de saúde.
Ignorar esses esforços racionalizadores e a preocupação com a segurança dos pacientes e usuários do SUS, assim como com a eficácia e efetividade de medicamentos, representa um retrocesso que, entre todos os males previsíveis, coloca o Brasil numa posição indefensável juntos aos países desenvolvidos e nações civilizadas.
Abs.
Jairnilson