Potenciais benefícios clínicos da espiritualidade têm sido tema crescente de discussão. Recentemente foi publicado no JAMA um ponto de vista entitulado Health and Spirituality, escrito por autores da Universidade de Harvard. Este artigo tem sido compartilhado amplamente nas redes sociais, de forma entusiasmada, o que nos motivou a discutir este assunto.
Pessoalmente, acredito nos benefícios da espiritualidade, principalmente do ponto de vista de qualidade de vida e talvez em termos prognósticos.
Cientificamente, devo evitar o verbo “acreditar”.
Acreditar é a antítese da ciência moderna, cujo método se baseia na tentativa de refutar hipóteses plausíveis. O incômodo é que ao eliminar o verbo “acreditar” a vida parece perder parte de sua poesia. Portanto, do ponto de vista pessoal, pode ser uma boa ideia manter a prática do acreditar. Mas uma linha tênue separa o pessoal do profissional e devemos estar atentos a isso.
Podemos também perceber a poesia do método científico, principalmente quando este se propõe a estudar coisas tão misteriosas como a espiritualidade. Ao meu modo de ver, espiritualidade e ciência se entrelaçam, e ciência pode ser vista como um modo espiritual de ser.
Sendo assim, proponho discutir ceticamente duas perguntas que não foram adequadamente abordadas pelo tão citado artigo do JAMA. Afinal, ceticismo é a base da ciência.
Qual o nível de evidência a respeito dos benefício da espiritualidade?
Qual o tamanho do efeito do benefício da espiritualidade?
Estamos Preparados?
Antes de começar a análise, trago a questão de se estamos preparados para colocar nossa espiritualidade no crivo científico?
Este é um desafio especial. Se pensar cientificamente é pouco natural e (muito) difícil e , quanto mais pensar cientificamente sobre espiritualidade. Digo isso pois muitos ritos espirituais têm aspecto religioso, no sentido do “acreditar” em uma ideologia.
Mas temos que separar duas coisas que se confundem. A fé é intrínseca de certos ritos espirituais. Por outro lado, a fé deve estar ausente das investigações de eficácia, efetividade ou eficiência destes mesmos ritos espirituais. Praticar espiritualidade e testar espiritualidade são coisas diferentes.
Que pratiquemos agora o rito científico, de forma espiritual, científica e profissional.
O Nível de Evidência
O artigo do JAMA traz uma clara conotação de alto nível de evidência para benefícios clínicos da espiritualidade:
“Recent studies suggest a broad protective relationship between religious participation and population heath.”
Traz também uma crítica à comunidade médica por não adotar espiritualidade de uma forma mais ampla:
“responde to these calls have been limited.”
“formal systems of collaboration between spiritual leaders and clinicians remain limited.”
De fato, caso o nível de evidência fosse alto para um relevante tamanho de efeito, a implementação de cultos religiosos ou espirituais nos hospitais e ambulatórios deveria ser obrigatório. Seria omissão não implementar.”
Mas estamos cientificamente neste ponto?
O mundo é repleto de ruído e a função da ciência é diferenciar sinal de ruído. Como já comentamos tantas vezes, um dos piores tipos de ruído na avaliação de causalidade é o viés de confusão. E viés de confusão está especialmente presente quando testamos o modo de ser de uma pessoa (behavioral studies) como determinante de desfechos clínicos prognósticos.
Se compararmos um grupo de pessoas espiritualizados versus outro grupo de não espiritualizados, a diferença entre esses grupos não será apenas o grau de espiritualização. Talvez o grupo espiritualizado beba menos álcool, use menos droga, se alimente melhor, coma de forma mais moderada, cuide melhor da saúde.
Desta forma, ao observar que espiritualização se associa a melhores desfechos em saúde, devemos ter dúvida se esta é uma relação diretamente causal ou se é mediada por variáveis de confusão. Uma pessoa que mantém os mesmos bons hábitos pode ter os mesmos desfechos favoráveis mesmo não sendo espiritualizada?
A avaliação do impacto de comportamentos é sempre acompanhada de alto risco de viés de confusão em estudos observacionais. Historicamente muitos destes estudos observacionais tiveram seus resultados positivos negados por ensaios clínicos (exercício, uso de vitaminas, uso de terapia de reposição hormonal).
Portanto, não é surpresa que chegamos à conclusão que o modelo ideal para testar a eficácia de intervenções espirituais seja o ensaio clínico randomizado.
Mas que sacrilégio, falar em ensaio clínico para espiritualidade … sei que alguns pensaram assim. Por isso que questiono, estamos mesmo preparados para falar cientificamente de espiritualidade?
Neste momento volto ao artigo do JAMA. Este cita entusiasticamente o Nurses’ Health Study que seguiu 74.000 mulheres (!), mostrando que aquelas que frequentavam cultos religiosos tiveram 26% menor mortalidade!
Em seguida reforça a possível associação causal, dizendo que a análise multivariada não atenuou a força de associação. Como se essa observação resolvesse o conhecido problema de confusão residual típica desses estudos observacionais.
Muito elucidativo é notar que no mesmo Nurses’ Health Study (publicação de 1997) a análise multivariada também não atenuou a redução de mortalidade nas mulheres que usavam terapia de reposição hormonal (37% de redução de morte geral e 53% de redução de morte cardiovascular, mesmo depois do ajuste), mas hoje se sabe que este efeito protetor é falso, tendo o ensaio clínico WHI demonstrado aumento de eventos cardiovasculares. Será que não aprendemos ainda?
Portanto esta e outras soluções dadas pelos autores do artigo para que aceitemos as evidências observacionais como robustas não passam de sofismas anti-científicos.
Mas será que é factível realizar ensaios clínicos com intervenções espirituais? Em uma rápida revisão no PubMed, pesquisei a palavra espiritualidade no título e 9.000 artigos foram detectados. Quando restringi a pesquisa a ensaios clínicos randomizados com paravra espiritualidade no título, ficaram 28 trabalhos que avaliam diferentes formas de intervenções espirituais, em diferentes tipos de condições clínicas.
Portanto, a realização de ensaios clínicos é factível em várias circunstâncias, tem sido feito e precisa ser um modelo de estudo melhor explorado.
O que dizem os ensaios clínicos?
Avaliando minha rápida pesquisa o PubMed, testemunhei ensaios clínicos positivos (mindfulness em enxaqueca) e outros negativos (religiosidade e depressão), não me parecendo uma clara predominância numérica de nenhum dos tipos. Mas o principal achado é que este corpo de evidência ainda é insuficiente, visto que a maioria dos estudos são ensaios clínicos pequenos, que quando positivos devem ser melhor interpretados como geradores de hipótese e quando negativos não afastam um real benefício.
Os autores do artigo do JAMA também cita ensaios clínicos, mas nitidamente apresenta um viés de citação, visto que só relata trabalhos positivos. Isso pode estar sendo mediado pelo viés de confirmação de suas prováveis crenças.
Em paralelo, procurei na Cochrane revisões sistemáticas sobre o tema e estas concluem por um baixo nível de evidência a respeito do assunto. Pore exemplo, uma revisão sobre o efeito de intervenções espirituais e religiosas para pacientes terminais conclui:
"We found inconclusive evidence that interventions with spiritual or religious components for adults in the terminal phase of a disease may or may not enhance well-being. Such interventions are under-evaluated."
Há várias formas de intervenções espirituais para serem testadas, assim como diferentes desfechos, variando desde aqueles relacionados à esfera de bem estar como desfechos prognósticos. A maioria destes ensaios clínicos se refere a desfecho de bem estar, como qualidade de vida, aceitação da finitude, etc. Estes são desfechos importantes, mas devemos notar que sabemos menos ainda sobre os desfechos prognósticos.
Naturalmente, se temos um baixo nível de evidência para a prova do conceito do benefício da espiritualidade, maior ainda é a incerteza quanto ao tamanho do efeito.
Epílogo
Segundo Carl Sagan “ciência é não só compatível com espiritualidade, é uma profunda fonte de espiritualidade.” Louis Pauster falou “um pouco de ciência nos afasta de Deus, muito nos aproxima.”
Praticar espiritualidade é algo pessoal e não precisa de demonstração científica. Recomendar uma prática espiritual como parte de um tratamento ou definir que o sistema de saúde deve investir nesta causa é um ato profissional e necessita de comprovação científica. Que as duas coisas não se confundam, como me parece ter ocorrido no tão festejado artigo do JAMA.
Dada a importância do tema espiritualidade para a humanidade, este deve ser tratado com imensa reverência científica. Muito temos que aprender e para isso precisamos reconhecer a incerteza de nosso conhecimento. Penetrar cientificamente em seus mistérios será mais fascinante do que adotar uma crença precipitada.
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