domingo, 19 de novembro de 2017

O Crepúsculo do Novembro Azul


Novembro vai terminando e a bela luminosidade azul do Elevador Lacerda começará a se esvair. É neste crepúsculo azul que o patologista clínico Fernando Araujo defenderá uma das mais importantes Teses de Doutorado desenvolvidas na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, sob orientação do urologista-cientista Ubirajara Barroso.

Fernando revisou sistematicamente guidelines internacionais sobre o assunto Azul, demonstrando uniformidade na recomendação de cautela quanto ao rastreamento de câncer de próstata em homens saudáveis. Depois ele saiu de congresso em congresso entrevistando médicos, e encontrou que 93% dos urologistas brasileiros e 83% dos generalistas brasileiros prescrevem rastreamento de câncer de próstata regularmente. 

Mas como algo que requer cautela tem uso tão universal?

Em outubro (“rosa”) Richard Thaler, professor da Universidade de Chicago, foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia. Seus experimentos psicológicos demonstraram que a decisão humana carece do pensamento econômico, não temos uma boa habilidade de ponderar o valor versus o custo das nossas escolhas. 

Muitas vezes perdemos foco discutindo se algo existe ou não existe. Porém o que importa é se o que existe tem magnitude suficiente para impactar em nossas vidas. 

Uma boba discussão se faz prevalente. Alguns argumentam que o rastreamento do câncer de próstata salva vidas, outros dizem que não. Dois grandes ensaios clínicos testaram essa hipótese, um demonstrou redução de morte por câncer, outro não conseguiu demonstrar este achado. Quem é a favor do rastreamento cita o primeiro estudo, quem é contra cita o segundo estudo. Mas poucos percebem que o resultado dos dois estudos é igual: se existe benefício, este é pequeno e inferior ao custo pessoal dos homens que decidem pelo rastreamento. 

É óbvio que rastrear câncer salva algumas vidas do câncer em questão. O estudo não serve para testar o óbvio, mas sim para quantificar a magnitude do beneficio e os possíveis dados da conduta. A eventual redução de morte por câncer observada pelo primeiro estudo não é suficiente para tornar perceptível a consequente redução de mortalidade geral. Claro, existirá redução de mortalidade geral, mas esta é tão pequena que fica imperceptível em um estudo com 160.000 homens. Mas o imperceptível benefício tem um preço: para cada 1000 homens rastreados, 50 terminarão com impotência ou incontinência urinária. Parte dos rastreados terminam em biópsia, outra parte destes em cirurgia para ressecção da próstata e boa parte desses ficam sequelados. É probabilidade condicional.

Existe também o fator tempo nesta equação. O malefício, quando ocorre, é imediato. Esse malefício precoce existe em função da expectativa de um benefício que poderá surgir, porém no longo prazo. Muitos se prejudicam agora na esperança de um benefício futuro. Isso deve ser levado em conta no pensamento econômico.

A cautela sugerida pelos guidelines vem sob a forma de recomendação de que seja discutido com os pacientes se estes desejam fazer o rastreamento. Apenas devemos prescrever se for o desejo do paciente. Mas será que esta tem sido de fato uma decisão informada? Ou seja, os pacientes sabem que se aderirem ao rastreamento terão 5% de probabilidade de virem a precisar de fraldas ou próteses penianas? São informados de que o retorno desse arriscado investimento seria uma redução de mortalidade geral tão pequena que não é detectada por estudo com mais de 100.000 pacientes?

Por que tomamos decisões anti-econômicas a toda hora?

Em seu excelente ensaio sobre o Homo Sapiens, o historiador israelense Yuval Harari menciona que o maior advento de nossa espécie, responsável por termos prevalecido e dizimado outras espécies humanas, é nossa capacidade de fantasiar. Ao fantasiar, o Sapiens foi capaz de reunir grandes exércitos em torno de uma causa fictícia, coisa que outras espécies não conseguiam. Prevaleceram os fantasiosos Sapiens sobre os realistas Neandertals.

A fantasia é essencial quando precisamos reunir muitas pessoas com alto grau de motivação. Por que conseguimos reunir 30.000 pessoas na Fonte Nova torcendo e vibrando com a excelente vitória do Bahia sobre o Santos, na semana passada? Porque nós fantasiamos que Bahia é um ser concreto, algo que tem um sentido simbólico maior. Mas se for ver, tem até jogadores que foram trocados entre os dois times oponentes na temporada anterior. Não é concreto, o Bahia é uma fantasia. Uma boa fantasia que mobiliza milhares, assim como o Azul do novembro mobiliza milhões. E todos ficam felizes. 

Mas nosso Bahia, este pode até perder quase sempre, mas não deixa ninguém impotente. 

Na final década de 70, o Reverendo Jim Jones, fundador do culto Tempo dos Povos, promoveu um suicídio coletivo de 918 pessoas. Impressionante seu poder de convencimento. Com racionalidade ou pensamento econômico, ele não conseguiria fazer com que aquelas pessoas tirassem suas vidas e a de suas famílias. Mas com o pensamento fantasioso conseguimos dar valor a uma causa maior, mesmo que absurda. 

Não estou querendo falar que rastreamento de câncer é suicídio, nem comparar médicos bem intencionados a Jim Jones. Mas o que faz os homens desejarem o rastreamento é parecido: o pensamento fantasioso de que aquilo nos garantirá não morrer de câncer. Assim, somos capazes de optar por um investimento muito grande (dano) em troca de um retorno incerto (benefício).

Outra conduta muito comum, porém irracional, é gastar dinheiro na loteria. A probabilidade de ganhar é tão baixa, que só devemos jogar a menos de 20 minutos do sorteio. Pois se jogarmos antes disso, a probabilidade de morrermos antes do sorteio é maior do que de ganhar no sorteio.

Richard Thaler também menciona o “conservadorismo coletivo: uma tendência de grupos a permanecer com comportamento padrão. Uma vez que a prática se estabelece, é provável que se perpetue, mesmo na ausência de base racional.” Lembra rastreamento de câncer de próstata?

Por isso precisamos compreender de que não é pecado, nem desonestidade, promover rastreamento de câncer, pois isso decorre de algumas deficiências cognitivas naturais da mente humana. 

Mas se é questionável o benefício do rastreamento, quem se beneficia da propaganda Novembro Azul?

Também em novembro, Olavo Amaral, médico-escritor, publicou um imperdível ensaio na Revista Piauí, intitulado Novembro Cinza, em que traz interessantes fatos relacionados às campanhas de rastreamento de próstata. Sabem quem são os financiadores dessas campanhas, em diferentes países? A indústria produtora de quimioterápicos para câncer de próstata, a indústria de equipamentos cirúrgicos e, pasmem, fabricantes de fraldas descartáveis. Rastreamento aumenta frequência de biópsias, de tratamentos, de incontinências. 

Não vejo nada disso como uma grave crise. Pelo contrário, acho tudo natural. Mesmo se não houvesse interesses, os meses coloridos existiriam, mediados pela nosso desejo humano de reforçar a segurança perceptível. Mas precisamos refletir, discutir, evoluir. Rastreamento de câncer de próstata é a caricatura do pensamento médico anti-econômico. Serve para nos alertar dessa nossa natural limitação.

A observação final da Tese de Fernando é otimista. Utilizando o banco de dados de um grande laboratório nacional, Fernando analisou 2.5 milhões de pedidos de exames de PSA realizados ao longo destes últimos 10 anos. Utilizando sofisticada análise temporal, ficou demonstrado uma redução progressiva na solicitação de PSA ao longo deste período. Embora tênue, essa é uma excelente notícia. Daniel Kahneman, cientista do comportamento, costuma comentar que mudanças de comportamento tendem a ser tênues, lentas e progressivas. Não devemos esperar uma mudança abrupta.

No século XX, a revolução científica foi tecnológica. No século XXI, cabe à ciência aprimorar o processo de decisão humana. E esta nova revolução científica já começou, haja visto que o crescente reconhecimento de estudiosos do pensamento humano, como Kahneman e Thaler, ambos ganhadores do Prêmio Nobel.

No futuro, o rastreamento do câncer de próstata será visto como caricatural, assim como hoje vemos a terapia de sangria como um absurdo que em outras épocas era rotina da prática médica. Estamos em constante evolução. 

Enquanto isso, nosso Elevador Lacerda se livrará da cor azul. Esta será substituída por cores natalinas, trazendo um Papai Noel sábio, em uso de estatina há décadas pois é dislipidêmico, anti-hipertensivo pois é hipertenso e vacina de gripe pois é muito idoso. No entanto, o sábio velhinho nunca foi submetido a rastreamento de câncer de próstata, nem de doença coronária subclínica.  

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Leia também neste Blog: Precisamos do Janeiro Branco.



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20 comentários:

  1. Genial. Especialmente o final ��. Tens um texto sobre o rastreamento de dac subclínica?
    Abraços

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    1. http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com.br/2012/12/papai-noel-precisa-de-check-up-antes-do.html

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    2. Mario Henrique Tavares Martins19 de novembro de 2017 às 23:34

      Prezado colega, seu texto é notadamente tendencioso. No caso do câncer de próstata, atualmente podemos identificar alguns grupos que provavelmente não vão se beneficiar do rastreamento. São indivíduos com expectativa de vida menor que 10 anos , ou pessoas com idade entre 40 e 50 anos sem história familiar. Por outro lado, não devemos olhar apenas para o dado de mortalidade, pois a doença causa bastante sofrimento aos pacientes, como retenção urinária, hematúria, dor, linfedema, fraturas ósseas e caquexia; e esses pacientes são submetidos a tratamentos mórbidos (bloqueios hormonais, tunelização de próstata, derivação urinária, hemodiálise, transfusões, quimioterapia, dentre outros) antes de morrerem.
      Alguns parágrafos do seu texto merecem críticas específicas:
      1) sobre o "imperdível ensaio da revista Piauí": quimioterápicos e hormonioterapia para câncer de próstata são usados somente na doença avançada. Ora, o screening tem justamente o objetivo de realizar detecção precoce e evitar o diagnóstico de casos em estágio avançado - portanto seria mais lógico, para quem quer vender quimioterápico, promover o diagnóstico tardio, já que a maioria dos casos diagnosticados em rastreamento não vão necessitar destas drogas.
      Quanto à indústria de fraldas, cada vez vemos menos pacientes incontinentes após cirurgia de próstata (risco <10%, chegando a menos de 5% em mãos experientes e com uso de plataforma robótica). Como o senhor mesmo diz, o screening diagnosticará poucos casos após 100.000 exames e, destes, alguns serão operados, e dentro deste subgrupo, uma pequena minoria precisará de fraldas.
      Outro fato importante é que indivíduos não tratados também correm o risco de ficar incontinentes (talvez até maior que a dos rastreados – precisaríamos de um estudo para ver isso) por uma possível disfunção vesical gerada por obstrução crônica da bexiga; assim, considero um péssimo negócio para os produtores de fralda investir em screening.
      2) "Ou seja, os pacientes sabem que se aderirem ao rastreamento terão 5% de probabilidade de virem a precisar de fraldas ou próteses penianas?" - acredito que este índice está equivocado, dizer que a cada 1000 homens rastreados, 50 ficarão impotentes ou incontinentes é superestimar a prevalência da doença e as consequências do tratamento. Talvez o senhor não saiba que uma das modalidades de tratamento é a observação vigilante (watchful waiting) que é oferecida rotineiramente pela maioria dos urologistas, quando nos deparamos com casos de baixa agressividade. Talvez o senhor também não conheça os critérios de Epstein para a definição de câncer mínimo, critérios estes que nos fazem tomar, de forma compartilhada com o paciente, a decisão de não tratar. Enfim, fazer screening não aumenta impotência e incontinência, essa conclusão não pode ser tirada pelos dados aqui informados.
      Concluindo, a decisão não é tão simplista. Sugiro ainda a leitura do parecer da SBU sobre o tema (http://portaldaurologia.org.br/destaques/nota-oficial-2017-rastreamento-do-cancer-de-prostata/)
      Atenciosmente,
      Mario Henrique T. Martins (médico urologista)

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  2. Não dá pra traçar política pública de prevenção em saúde num país como o Brasil levando em consideração trabalhos desenvolvidos nos EUA e Europa. Não teve um grupo homogêneo pra realidade deles, imagina pro Brasil. Nossa minoria é de brancos, nossa população é pobre e não tem acesso a saúde. Não é nossa realidade e não será tão cedo. Devemos sim estimular a parcimônia, principalmente no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento excessivos e desnecessários.

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  3. Luis. Muito obrigado. Mais um texto excelente que me fortalece nesse arduo e tao necessario caminho da prevenção quaternária e na tomada de decisão compartilhada sobre o rastreamente de Ca de próstata. Abraço!

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  4. Prezado professor.
    Sensacional postagem nesse não menos magnífico blog. Acompanho suas postagens há algum tempo, mas fiz questão de elogiar esse texto, pela afinidade com o assunto e o seu ponto de vista. Nesse mundo atual, de redes sociais e blogueiros populares postando coisas sem fundamento algum, o seu blog é uma luz no fim do túnel. Uma luz que ilumina nosso mundo cada vez mais assombrado pelos demônios. Parabéns!!!
    Fausto Medeiros Mendes

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  5. Prezado professor.
    Sensacional postagem nesse não menos magnífico blog. Acompanho suas postagens há algum tempo, mas fiz questão de elogiar esse texto, pela afinidade com o assunto e o seu ponto de vista. Nesse mundo atual, de redes sociais e blogueiros populares postando coisas sem fundamento algum, o seu blog é uma luz no fim do túnel. Uma luz que ilumina nosso mundo cada vez mais assombrado pelos demônios. Parabéns!!!
    Fausto Medeiros Mendes

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  6. Muito interessante o texto! Acho que a resposta final depende, pelo menos, de duas variáveis de difícil mensuração: 1. Taxa de desconto (qual o valor atribuímos ao futuro em relação ao presente? o valor dessa taxa é importante para mensurarmos o valor presente do benefício atribuído ao exame, líquido dos custos); 2. Qual o valor as pessoas atribuem à vida (precisamos desse dado para calcular o benefício esperado do exame, ponderando pela probabilidade de detecção e tratamento prévio da doença). Ou seja, difícil fazer algum cálculo preciso... a literatura sobre custo-benefício em economia discute essas questões faz tempo, associado a temas como intervenções para minimizar o aquecimento global, por exemplo...

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  7. professor
    Sou aluno de medicina 6 ano. Li seu artigo e li bastante coisa em relação ao rastreamento do ca de próstata. Mas ainda tenho muitas dúvidas.
    No seu consultório o senhor não faria o rastreamento pro ca de próstata?
    As campanhas afirmam taxa de cura de 95% quando diagnosticado precocemente.
    A maioria dos professores com quem discuti o tema afirma ser irresponsabilidade não orientar o rastreamento.
    Mudando o foco do rastreamento populacional e pensando individualmente num paciente q tem todos os recursos no tempo ideal( no sistema privado) ainda sim não valeria o rastreamento ?

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    1. Mario Henrique - Urologista23 de novembro de 2017 às 09:12

      Vou tomar a liberdade de te responder. Achei que o professor extrapolou nas conclusões e bateu o martelo em relação a um tema que ainda está em discussão em todo o mundo. Falha também quando desconsidera a morbidade da doença avançada. Enfim, a recomendação hoje é que quem tem fatores de risco deve fazer rastreamento mais precoce e mais frequente, quem não tem deve procurar um urologista aos 50 anos e conversar sobre os prós e os contras de realizar o screening.

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  8. Professor.
    Sou aluno de medicina do sexto ano. Achei muito interessante seu texto e o assunto do rastreamento. Mas ainda tenho muitas dúvidas.
    As campanhas afirmam q diagnóstico precoce tem taxa de cura de 95 % . Então pq não fazê-lo??
    E para seus pacientes vc não orientaria o rastreamento ??

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  9. Este texto é falacioso. Concordo com o urologista Mário Henrique. As coisas não são tão simples. É salutar discutir se devemos usar ou não o PSA no rastreamento. E é necessário usar evidências científicas nesta discussão, como você fez. No entanto o tom sarcástico, com comparações ácidas, cheio de certezas, a la "textão de Facebook", me parece algo de quem lê demais e vê paciente de menos. Claro que ler é bom. Mas tome cuidado ao extrapolar idéias de outros campos para a Medicina. Você advoga a Medicina Baseada em Evidências, como eu. Mas em artigos como este, parece só olhar para as evidências que convém ao seu ponto de vista. Suponho que você seja jovem, ainda sem muita experiência clínica. Os anos de prática, se você for para linha de frente, o ensinarão a ser mais cauteloso em suas opiniões.

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    1. A medicina baseada em evidências não pode ser desvinculada da prática clínica, pois ela é um instrumento, junto com a experiência clínica, o conhecimento fisiopatológico, a semiologia, e a perspectiva do paciente (que inclui suas preferências, crenças, medos, etc). Assim, seria um equivoco falar em MBE sem uma relação direta com a prática. A questão que o Prof Luis Cláudio apresenta neste texto é de extrema importância e, mesmo que o tom possa parecer sarcástico em alguns momentos, não deixa de ser abordada de forma precisa e absolutamente científica. Claro, que os médicos que trabalham diretamente com pacientes com câncer de próstata terão uma visão diferente da realidade, por vezes enviesada, pois acabam vendo casos mais graves, os casos com metástases, dores intratáveis, obstrução urinária, insuficiência renal, infecção, sofrimento, etc. O contexto clínico a que os diferentes profissionais estão expostos em seu cotidiano certamente influencia nossa percepção sobre uma série de questões e relações causais. É exatamente por isso que estudos com grande número de pacientes, tentando-se controlar para os diferentes tipos de viéses que podem alterar nossa percepção da realidade são realizados e fornecem um grau de evidências maior que a observação empírica realizada por um determinado tipo de profissional. Isto não quer dizer que a experiência clínica de profissionais especializados, que cuidam de muitos pacientes com o mesmo tipo de problema, não deva ser levada em conta. Muito pelo contrário, esta experiência é imprescindível para a boa prática clínica e faz parte da MBE. O que está em discussão não são evidências a respeito de casos específicos, de casos mais graves ou de situações excepcionais (nestes casos a importância da experiência clínica é ainda maior), mas sim as evidências para se recomendar o rastreamento universal para homens de risco médio a partir de certa idade. Esta questão, por mais que existam alguns estudos e algumas análises que mostrem que pode haver algum benefício, está longe de ser um consenso e a maior parte das evidências de boa qualidade mostram que os malefícios superam os potenciais benefícios e que não se deve recomendar ativamente o rastreamento. Isto já está muito claro se uma análise imparcial e objetiva da literatura for realizada, e a rigor não deveria depender do ponto de vista de quem as analisa; muito embora eu admita que é muito difícil alguém não introduzir um pouco de sua opinião pessoal mesmo numa análise o mais rigorosa possível. O problema é que a visão dos urologistas (e aqui quero ressaltar que não se trata de nenhuma ofensa pessoal, mas apenas uma constatação do que mencionei acima como sendo fruto do contexto de prática) é ainda mais enviesada e as evidências citadas também. O Prof Luis Cláudio não é urologista, mas tem grande experiência clínica e é um estudioso da epidemiologia clínica. Isto, a meu ver, é uma característica que o abona ainda mais para falar sobre uma questão que não tem a influência (o viés) de sua prática cotidiana. Algumas vezes, meu caro Frank, anos de experiência clínica na linha de frente podem significar anos de intervenções iatrogênicas.

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    2. Mario Henrique - Urologista23 de novembro de 2017 às 10:07

      Com todo o respeito, ele não ser urologista o deixa por fora de grande parte das discussões e das preocupações da comunidade urológica internacional sobre o tema. Daí vc me dirá: Ah ele usou a melhor evidência disponível! Verdade, mas como ele mesmo citou há informações conflitantes sobre o benefício do rastreamento e os estudos citados avaliam apenas a mortalidade e esquecem da morbidade (talvez por não ser urologista o professor desconheça essa morbidade). A discussão é bem mais ampla, não se tem questionado também um possivel aumento de custos ao tratar pacientes com doença mais avançada, enfim, é muito cedo para bater o martelo de forma enfática como ele fez!

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    3. Caro Mario Henrique,
      Em primeiro lugar penso que para esta discussão o fato de ser ou não urologista não é o ponto chave. Ser ou não especialista neste caso pode tanto trazer vieses positivos quanto negativos e o argumento de autoridade do especialista é uma prática, ainda que comum, altamente anti científica e potencialmente danosa. A questão fundamental é a análise das melhores evidências disponíveis de forma sistemática e tendo em mente um princípio científico fundamental: a hipótese nula. Você termina seu comentário dizendo "é muito cedo para bater o martelo de forma enfática como ele fez", mas, do ponto de vista científico, o martelo já começa batido para a ausência de efeito de determinada intervenção (no caso o rastreamento para câncer de próstata na população masculina geral com mais de 50 anos), situação que só deve ser alterada caso haja evidências consistentes que indiquem o contrário. Então, mesmo que não existissem evidências científicas robustas, o comportamento científico preconizado seria de assumir a ausência de efeito da intervenção. Entretanto, no caso em questão a situação é outra: não se trata de ausência de evidências científicas, mas de evidência de ausência de efeito - ou seja - a melhor evidência disponível na atualidade indica não haver benefício do rastreamento universal. Concordo que há ainda um grau de incerteza em relação a situações específicas, como rastreamento em grupos de maior risco, utilização de potenciais novos biomarcadores, utilização do PSA de formas diferentes(taxa de elevação, por exemplo) e o impacto do rastreamento com o advento de novas modalidades diagnósticas (como a RNM) e terapêuticas (como terapias minimamente invasivas). Neste cenário, me parece sensato pesar o risco benefício do rastreamento em casos particulares, com transparência e decisão compartilhada com pacientes e familiares. Mas isso não altera o que foi exposto no texto: a estratégia de rastreamento universal, amplamente divulgada pela mídia e pela campanha do Novembro Azul, não tem bases científicas sólidas e deve ser desencorajada.

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    4. Gostaria de ver alguma dessas "discussões e preocupações" em revistas indexadas. A opinião de um profissional que tem na sua prática a abordagem cirúrgica, não tem tanto valor quanto de quem está de fora e analisa as evidências com menos "paixão", mais friamente. Isso fica bem claro a medida que caso esses "replicadores" da SBU, venham publicar algum artigo em revista de qualidade, terão de declarar conflito de interesses, o que levará qualquer leitor a ler com certo grau de suspeição. Não é falando e repetindo que quem não é urologista não "sabe" o que se discute, quando na verdade parece exatamente o contrário.

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  10. Prezado Luis Cláudio:

    Sem sombra de dúvida, seu texto reforça a reflexão sobre o tema.
    Meu questionamento é sobre a crítica à utilização do simbólico e da fantasia na decisão médica, considerando-os menores, e às vezes até absurdos. Pode ser que eu tenha entendido errado o que você quis dizer.
    Ainda que caiba " à ciência aprimorar o processo de decisão humana" , me parece impossível que consigamos dissociar esse processo de aspectos inteiramente subjetivos nas decisões em saúde, até porque os conceitos de saúde/doença, valoração da vida/morte ocorrem exatamente nesse terreno de subjetividade, com contornos mal definidos, como discutem Canguilhem ( "O Normal e o Patológico) e Foucault (O Nascimento da Clinica'). A própria Ciência se depara com a questão metodológica (Popper, Feyerabend e Kuhn) como apropriação subjetiva sobre o fenômeno.
    O Esporte Clube Bahia (e o Vitória, para não ser tendencioso) têm existência, não apenas física e institucional, mas sobretudo simbólica, importante para muitas pessoas. Nisso, não se diferenciam muito de conceitos como "doença", "câncer", "sobrevida", "qualidade de vida".
    Dependendo da subjetividade, alguém pode achar um absurdo ilógico se submeter a uma amputação peniana para tratamento de câncer de pênis, ainda que isso possa prolongar a vida. Da mesma forma, a incontinência pode ser considerada um preço justo para se livrar do fantasma da possibilidade de um câncer metastático futuro.
    "Com o pensamento fantasioso conseguimos dar valor a uma causa maior, mesmo que absurda" Mas..absurda para quem?
    Aprendi recentemente um novo conceito, o de "medicina baseada em valores", que associa à informação o respeito à autonomia e aos valores dos pacientes ( e dos médicos) nas decisões. Assim, julgo que nosso papel como médicos é de passar as informações, compreender os elementos simbólicos que as revestem, e apoiar os pacientes, nas suas decisões.
    Um grande abraço,

    Jorge Guedes

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