Bom ter amigos bem informados. Hoje recebi de Guilherme Barcellos: “você viu que o ISCHEMIA modificou sua definição do end-point primário para um combinado de 5 desfechos que só faltou redução de espirros?”
Fui imediatamente do clinicaltrials.gov e percebi que sim, agora o end-point primário estava definido como: “cardiovascular death, nonfatal myocardial infarction, resuscitated cardiac arrest, or hospitalization for unstable angina or heart failure.”
Eu lembrava que o desfecho composto do ISCHEMIA era morte cardiovascular ou infarto. Na página principal do estudo no clinicaltrials.gov não há aviso de que aquilo foi modificado. A primeira vista, tudo normal, se não fosse nosso conhecimento prévio de que o protocolo não era assim.
O caminho não é simples, mas descobri que podemos encontrar o histórico de mudança: primeiro devemos clicar em “Find Studies” - depois “How to Read a Study Record" - em seguida “Historial Views of Records” - archive site - abre uma aba que você coloca o número do estudo e descobrirá todas as mudanças. Mudaram o desfecho primário do ISCHEMIA em janeiro de 2018.
Vale salientar que o recrutamento do ISCHEMIA já foi concluído, estando agora em fase de finalização do follow-up. O estudo que se iniciou em 2012 está planejado para ser concluído em dezembro de 2018.
Já discutimos o ISCHEMIA neste Blog, especialmente na postagem do Reflexo óculo-isquêmico. Todo cardiologista sabe do que se trata o ISCHEMIA, um dos estudos mais esperados da presente década. Mas para os não cardiologistas leitores do Blog, lembro que este é um ensaio clínico que randomizou em torno de 5.000 pacientes com doença coronariana estável para revascularização miocárdica ou tratamento clínico. Os estudos prévios (COURAGE é o mais conhecido) foram todos negativos para o desfecho de morte ou infarto. O ISCHEMIA incluiu apenas pacientes com isquemia moderada a severa, sob argumento de que outros estudos poderiam ter sido negativos pois teriam incluído também pacientes com pouca ou nenhuma isquemia miocárdica.
Um dos mais importantes critérios para qualidade de um estudo são as definições a priori. Daí a obrigatoriedade de que ensaios clínico publiquem seus protocolos previamente. Mudanças de protocolo feitas a posteriori reduzem a credibilidade do estudo, é como mudar a regra de um jogo em andamento. A posteriori , mudanças de desfechos do estudo podem decorrer de algum resultado frustrante das análises interinas. E vale lembrar que ISCHEMIA é um estudo adiantado, que já está para terminar.
Vale salientar que o recrutamento do ISCHEMIA já foi concluído, estando agora em fase de finalização do follow-up. O estudo que se iniciou em 2012 está planejado para ser concluído em dezembro de 2018.
Já discutimos o ISCHEMIA neste Blog, especialmente na postagem do Reflexo óculo-isquêmico. Todo cardiologista sabe do que se trata o ISCHEMIA, um dos estudos mais esperados da presente década. Mas para os não cardiologistas leitores do Blog, lembro que este é um ensaio clínico que randomizou em torno de 5.000 pacientes com doença coronariana estável para revascularização miocárdica ou tratamento clínico. Os estudos prévios (COURAGE é o mais conhecido) foram todos negativos para o desfecho de morte ou infarto. O ISCHEMIA incluiu apenas pacientes com isquemia moderada a severa, sob argumento de que outros estudos poderiam ter sido negativos pois teriam incluído também pacientes com pouca ou nenhuma isquemia miocárdica.
Um dos mais importantes critérios para qualidade de um estudo são as definições a priori. Daí a obrigatoriedade de que ensaios clínico publiquem seus protocolos previamente. Mudanças de protocolo feitas a posteriori reduzem a credibilidade do estudo, é como mudar a regra de um jogo em andamento. A posteriori , mudanças de desfechos do estudo podem decorrer de algum resultado frustrante das análises interinas. E vale lembrar que ISCHEMIA é um estudo adiantado, que já está para terminar.
Análises interinas são muito utilizadas para truncar estudos que dão resultados positivos precocemente, o que temos criticado neste Blog. Mas também podem ser utilizadas para modificar protocolos quando estudos não mostram resultados interessantes.
Usualmente autores modificam desfechos quando a definição original (morte e infarto) apresenta incidência menor do que a esperada no grupo controle. Quando esta modificação é a de aumentar o tempo de seguimento ou aumentar o número de pacientes, isso incrementa a precisão do estudo, sem tendenciosidade. Porém quando a mudança está no tipo de desfecho, isso reduz o valor preditivo positivo do trabalho (confiabilidade). No tipo de mudança do desfecho primário pode estar a escolha de eventos com maior probabilidade de mostrar um resultado positivo. Uma escolha que pode ser baseada na percepção de que o estudo como desenhado inicialmente viria a ser negativo.
Embora seja uma emenda pior do que o soneto, esta provavelmente será a justificativa que os autores apresentarão para a mudança do protocolo. Implicações interessantes surgem disso.
Embora seja uma emenda pior do que o soneto, esta provavelmente será a justificativa que os autores apresentarão para a mudança do protocolo. Implicações interessantes surgem disso.
Primeiro, considerando que essas mudanças de protocolo são feitas quando há uma baixa incidência do desfecho, "morte e infarto" devem ter sido menos frequentes do que o esperado no grupo de tratamento clínico. Portanto, o estudo reforçará o bom prognóstico de pacientes com doença coronária estável, mesmo que estes tenham isquemia significativa (critério de inclusão do estudo). Deverá mostrar um prognóstico melhor do que o ocorrido em estudos prévios que foram utilizados para estimar a incidência destes eventos do ISCHEMIA. Reforçará portanto o tratamento clínico como uma alternativa a ser considerada dentro de um pensamento clínico econômico (não monetário).
Segundo, após esta mudança de protocolo, o ISCHEMIA será certamente positivo. Um dos novos componentes do desfecho primário (e provavelmente o mais frequente) passa a ser “internamento por angina instável”. Angina é sintoma e já está bem demonstrado que angioplastia reduz sintomas. Além disso, internamento é um desfecho “mediado pelo médico”. O médico bem sabe (estudo aberto) se seu paciente foi revascularizado. Cria-se então uma situação com alto risco de viés: a combinação de um estudo aberto e um desfecho “mediado pelo médico”. Esse médico, na melhor das intenções, tem muito mais predisposição a internar seu paciente não revascularizado do que seu paciente revascularizado, quando este se queixar de dor precordial.
Interessante notar que desde o início o desfecho morte do ISCHEMIA era específico (morte cardiovascular). Um detalhe que não só traz subjetividade em um estudo aberto, como não inclui necessariamente mortes decorrentes de complicação dos procedimentos invasivos. Diferentemente, o COURAGE utilizou morte por qualquer causa ou infarto como desfecho primário.
Interessante notar que desde o início o desfecho morte do ISCHEMIA era específico (morte cardiovascular). Um detalhe que não só traz subjetividade em um estudo aberto, como não inclui necessariamente mortes decorrentes de complicação dos procedimentos invasivos. Diferentemente, o COURAGE utilizou morte por qualquer causa ou infarto como desfecho primário.
O grande diferencial do ISCHEMIA seria a inclusão apenas de pacientes com isquemia moderada ou severa. Essa foi a justificativa dos autores para a hipótese de que seus resultados poderiam ser positivos, diferentemente de estudos prévios, como o COURAGE. Mas esta não poderá mais ser a justificativa da positividade do ISCHEMIA, pois agora os desfecho primário do ISCHEMIA será diferente do COURAGE.
Com esta mudança, o resultado do ISCHEMIA passa a ser previsível, não mais uma evidência incremental ao conhecimento atual. No entanto, a depender de quem interprete, essa obscura mudança de protocolo no apagar das luzes certamente “corrigirá” o frustrante resultado do COURAGE.
_______________________________________________________________________
Comentário do PI do Estudo para Guilherme:
"Dear Guilherme
The trial has adhered to the most rigorous clinical trial standards. Knowing that many trials are underpowered due to lower than projected event rates, the original protocol, approved by an Independent NIH/NHLBI-appointed protocol review committee, pre-specified that if the aggregate event rate was lower than projected that we could convene an independent panel, at a pre-specified time, to advise the trial leadership and NHLBI regarding switching to the pre-specified 5-component endpoint and/or extending recruitment and/or follow-up. This panel was separate from the DSMB so that the recommendation would be made by experts blinded to outcomes by treatment group. For the entire trial duration, each of the 5 components of the endpoint were adjudicated centrally by independent reviewers blinded to treatment group. The aggregate event rate was lower than projected and trial leadership and NHLBI accepted the independent panel recommendation to change the primary endpoint, and extend recruitment and follow-up. This process was a deliberate, considered one, involving the trial Leadership Committee, Steering Committee, NLHBI program staff, statisticians, and independent experts and took nearly a year of planning. It was certainly not done “in the middle of the night.” The original CV death and MI endpoint remains a major secondary endpoint.
We will be publishing the design paper soon, and this will be described in that manuscript.
Thanks for the opportunity to respond.
David
David J. Maron, MD, FACC, FAHA
ISCHEMIA Trial Co-Chair/PI
Stanford University School of Medicine"
The trial has adhered to the most rigorous clinical trial standards. Knowing that many trials are underpowered due to lower than projected event rates, the original protocol, approved by an Independent NIH/NHLBI-appointed protocol review committee, pre-specified that if the aggregate event rate was lower than projected that we could convene an independent panel, at a pre-specified time, to advise the trial leadership and NHLBI regarding switching to the pre-specified 5-component endpoint and/or extending recruitment and/or follow-up. This panel was separate from the DSMB so that the recommendation would be made by experts blinded to outcomes by treatment group. For the entire trial duration, each of the 5 components of the endpoint were adjudicated centrally by independent reviewers blinded to treatment group. The aggregate event rate was lower than projected and trial leadership and NHLBI accepted the independent panel recommendation to change the primary endpoint, and extend recruitment and follow-up. This process was a deliberate, considered one, involving the trial Leadership Committee, Steering Committee, NLHBI program staff, statisticians, and independent experts and took nearly a year of planning. It was certainly not done “in the middle of the night.” The original CV death and MI endpoint remains a major secondary endpoint.
We will be publishing the design paper soon, and this will be described in that manuscript.
Thanks for the opportunity to respond.
David
David J. Maron, MD, FACC, FAHA
ISCHEMIA Trial Co-Chair/PI
Stanford University School of Medicine"
Minha resposta a Guilherme:
Guilherme, uma colocação relevante do Maron é que esta mudança havia sido definida a priori (se a incidência do desfecho fosse pequena) e que a decisão foi cega em relação aos grupos de tratamento. De fato, isto acontece com grandes ensaios clínicos, truncamentos, mudanças de desfechos podem ser baseadas em regras pre-definidas. Isto ameniza, mas não resolve a questão.
Planejar previamente algo que traz mais probabilidade de um resultado positivo, à custa da qualidade do desfecho, mantém constante a credibilidade do estudo? A baixa incidência do desfecho pode decorrer do sucesso do tratamento não intervencionista. Ou seja, a priori se planeja que se os pacientes do estudo evoluirem bem, mudaremos o desfecho.
Não há nada de ilegal nisso, tudo de acordo com regras. No entanto, cabe à comunidade interpretar esta mudança com base em risco de acaso e viés, e avaliar o significado de um novo desfecho composto de 5 eventos.
_______________________________________________________________________
Conheça nosso curso online de medicina baseada em evidências, clicando aqui.