Há estudos enigmáticos, cujo significado não está explícito e custamos a compreender o sentido à primeira vista. Na leitura de um artigo científico, além de nosso conhecimento metodológico, devemos fazer uso de nossas sensações. E quando a sensação inicial for confusão mental, devemos redobrar a atenção: este estudo faz sentido?
Neste momento, temos o papel de discriminar estudos com sentido implícito (não evidente à primeira vista) de estudos desprovidos de sentido científico. Vale lembrar a lendária frase de Douglas Altman em 1994, “precisamos de menos estudos, estudos melhores e feitos pelas razões certas” que ganha relevância neste contexto. Assim como o ensaio “Why most clinical research is not useful” em que Ioannidis estima que a maioria dos recursos são desperdiçados em estudos inadequados ou sem sentido.
Tenho mais facilidade de pescar exemplos em minha área de interesse clínico, mas a validade didática deste texto é genérica. Comentaremos nesta postagem um dos mecanismo por trás de estudos inúteis: a profecia autorrealizável. Rotulo um estudo de profecia quando seu resultado é a concretização do óbvio.
O mecanismo da criação de profecias está na escolha do desfecho. Temos dois tipos de profecias, aquela que pretende mostrar diferença (superioridade) ou aquela que almeja quase semelhança (não-inferioridade). Para dissimular superioridade, precisamos escolher um desfecho que seja induzido no grupo controle pelo caráter aberto do estudo: desfechos susceptíveis a interpretação ou criados pelo médico (como indicação de procedimento no grupo controle que não realizou o procedimento) - vide post antigo. Para dissimular semelhança, é só escolher um desfecho que não seja influenciado pela intervenção. Claro que sua incidência será igual nos dois grupos. É o caso que discutiremos.
É como se comparássemos angioplastia coronária versus tratamento clínico quanto ao desfecho artrose de joelho. Claro que tratamento clínico seria não-inferior (igual) a angioplastia para dor no joelho.
Vejamos o exemplo de estudo MR-INFORM, publicado nesta semana na revista médica de maior impacto: New England Journal of Medicine. Este é um estudo de não-inferioridade, que pretende demonstrar em pacientes com angina estável que uma estratégia de realizar coronariografia (seguida de angioplastia) apenas se houver isquemia importante na ressonância magnética é não-inferior à estratégia invasiva de realizar coronariografia em todos os pacientes, seguida de FFR (avaliação hemodinâmica da lesão), que se positivo induziria angioplastia. Na primeira estratégia, o gatekeeper (filtro) da angioplastia está antes do cateterismo, portanto muitos pacientes não precisariam chegar ao exame invasivo. Na segunda estratégia, o gatekeeper está depois do cateterismo, portanto todos recebem esse exame. Essa seria uma vantagem da estratégia da ressonância, pois a torna menos invasiva, justificando o desenho de não-inferioridade: aceitar um certo grau de inferioridade como se fosse algo semelhante, pois existe uma vantagem prática que compensa.
Agora vamos ao mecanismo da profecia neste estudo.
Percebam que são duas estratégias que culminam em angioplastia. A potencial diferença de resultado clínico entre as duas reside na possível diferença de angioplastia. Portanto, para garantir o resultado igual entre os grupos, precisamos escolher desfechos que não sejam influenciados pela angioplastia no cenário estável. Como todos sabem, de forma reprodutível em diferentes estudos, morte e infarto não são prevenidos por angioplastia. Estes desfechos são insensíveis à intervenção.
Outro mecanismo pelo qual desfechos deste tipo poderiam ser influenciados pela estratégia mais invasiva, seria o conhecimento de uma lesão obstrutiva na coronariografia influenciar um melhor tratamento clínico. No entanto, esses benefícios indiretos são muito pouco prováveis de resultar em diferenças clínicas. O racional desta afirmação está nos tipicamente modestos tamanhos de efeito dos tratamentos farmacológicos em doenças crônicas (redução relativa do risco em torno de 25%) vistos em desenhos que promovem quase um contraste total entre os grupos de tratamento: a randomização para tratar ou não tratar. Quando randomizamos para outras coisas que indiretamente podem ou não influenciar em um pouco mais de tratamento em algum grupo, qualquer resultado em desfecho clínico ficaria quase imperceptível. Esse foi o racional que usamos em postagem prévia quando interpretarmos o SCOT-HEART como "bom demais para ser verdade" (vide postagem prévia).
Portanto, antes do estudo realizado, já poderíamos saber que a estratégia candidata a não-inferior não causaria mais morte ou infarto.
Para garantir ainda mais a profecia, o desfecho primário composto do estudo teve um terceiro componente: necessidade de repetir revascularização no vaso primariamente revascularizado (target vessel revascularization). A dúvida da não-inferioridade reside no caráter mais conversador do braço ressonância, que poderia gerar menos angioplastia. Ora, se esse grupo tiver menos vaso angioplastado, obviamente terá menos vaso reangioplastado, pois para ser reangioplastado o vaso precisa primeiro ser angioplastado primeiro. A redundância da minha sentença é proposital, pois é da redundância que surge a profecia. Colocado de outra forma, se o grupo invasivo tem mais vaso angioplastado, terá mais vaso reangioplastado, e esse maior número de desfechos falaria contra o grupo coronariografia e a favor do grupo candidato a não-inferioridade.
De fato, no resultado do estudo, o número de revascularizações do vaso-alvo no grupo do FFR foi maior do que o dobro do grupo ressonância, o que não ocorreu com morte e infarto. No final, a incidência do desfecho composto foi semelhante entre os dois grupos (3.6% versus 3.7%).
Qual seria o desfecho adequado?
Tenho dúvida sobre a utilidade deste estudo, mesmo que não fosse uma profecia auto-realizável. Mas se tivesse que fazer este estudo, usaria como desfecho primário controle da angina. Ou seja, se um braço do estudo tem a tendência de promover menos angioplastia, este poderia ser inferior no controle da angina, pois angioplastia controla angina (seja por efeito direto, seja por efeito placebo - vide estudo ORBITA). Angina é um desfecho sensível a um procedimento, que poderia vir a ser menos frequente no braço ressonância.
De fato, este grupo teve 47 angioplastias a menos, 9% em termos absolutos. Observem que não é uma diferença muito grande e ambos os grupos tiveram o mesmo sucesso em controle de angina. Como esse não foi o desfecho primário, não pode ser visto como um dado confirmatório. No entanto, julgo ser uma informação exploratória mais útil do que o óbvio do desfecho primário.
Este trabalho nos traz outras provocações interessantes a serem comentadas, como impacto do pequeno número de desfechos no desenho de não-inferioridade, a inversão da lógica da não-inferioridade (na verdade, o ônus da prova está na superioridade da conduta mais complexa) e a confusão entre avaliação funcional (clínica) e avaliação de isquemia (ressonância) ou hemodinâmica (FFR). Mas deixarei estas questões para outra oportunidade, a fim de manter o foco da discussão na profecia autorealizável.
A Utilidade das Profecias e os Sequestros dos Paradigmas
Demonstrar o óbvio não tem valor científico, mas tem valor prático: ao publicar uma conclusão positiva a favor de uma conduta, esta passará a ser mais utilizada. Isso funciona devido ao sequestro do paradigma da medicina baseada em evidências: criar uma evidência óbvia que “sugestione” (tradução do termo nudge, usado em ciência do comportamento) mudança de comportamento.
Isso funciona devido à infeliz confusão entre medicina baseada em evidências e medicina baseada em regras. Na primeira, tomamos condutas individuais norteados por conceitos científicos. Na segunda, condutas específicas são testadas por trabalhos e copiadas para a prática clínica. Estudos se tornam “recomendações”, quando na verdade estudos devem se tornar princípios norteadores. Medicina baseada em regras pode ser também entendida como medicina copiada de artigos. Ao criar um artigo positivo, a conduta testada tende a ser copiada de forma mais efetiva no mundo que vive o paradigma da regra médica.
Mas se utilizamos o princípio do conceito científico, perceberemos que já temos conhecimento para utilizar ressonância de perfusão quando julgarmos adequado avaliar isquemia antes de realizar uma coronariografia. Para tal, precisamos saber a acurácia da ressonância para pesquisa de isquemia, já validada cientificamente e com resultados superiores aos demais métodos não invasivos.
O paradigma de testar “utilidade” de um método diagnóstico ou prognóstico (além de testar acurácia) traz o advento de ensaios clínicos randomizados para diferentes estratégias de investigação, que é uma evolução. No entanto, percebo que este advento vem sendo sequestrado para outros fins (vide exemplos prévios).
Conflito de interesse é algo intrínseco da mente humana, sendo esperado que especialistas superestimem o valor das suas ferramentas, o que Kahneman chamou de viés da habilidade. Os autores deste trabalho como especialistas em ressonância magnética são naturalmente enviesados em prol da ressonância. Nossos vieses implícitos (implicit bias) nos levam a sequestrar o método científico para demonstrar o que desejamos. Isso não é algo particular da área cardiológica, é universal. Nem sempre representa uma ato de plena consciência. Sem querer parecer inocente, penso que muitos entram nessa tendência sem perceber que o entusiasmo é inimigo da integridade científica.
A publicação pelo New England Journal of Medicine de tamanha profecia autorrealizável é uma demonstração do poder do lobby médico. O artigo se aproxima mais de um marketing pseudo-científico do uso de um método de grande valor (vide acurácia da ressonância), que se torna banalizado por uma política de imbecilização do leitor.
A publicação pelo New England Journal of Medicine de tamanha profecia autorrealizável é uma demonstração do poder do lobby médico. O artigo se aproxima mais de um marketing pseudo-científico do uso de um método de grande valor (vide acurácia da ressonância), que se torna banalizado por uma política de imbecilização do leitor.
No cerne das profecias e distorções científicas, está a perda de percepção de que o método científico, em sua pureza original, foi criado para refutar ideias, que viriam a ser consideradas verdadeiras se sobrevivessem a este processo. No entanto, o método um dia criado por Ronald Fisher e aprimorado por tantos filósofos da ciência tem sido sequestrado para comprovar ideias falsas ou obviamente verdadeiras.
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