Salvador, 7 de dezembro, nossa palestra no TEDxRioVermelho
Para falar do valor da incerteza, antes preciso lhes convidar a sair da zona de conforto. Sim, pois nós humanos sofremos de “aversão a incerteza”, uma característica biológica que faz com que banalizemos a ideia de certeza. Por exemplo, há poucos instantes, o curador desse evento, me pegou pelo braço ali atrás nos camarins e enfaticamente falou: “tenho absoluta certeza de que sua palestra será marcante”. Daí pensei comigo, que paradoxo ... eu venho aqui falar de incerteza e ele me deseja certeza.
Assim somos, nos momento de mais dúvida, recorremos a uma certeza platônica, como se a percepção de certeza curasse o insuportável problema da incerteza. Mas esta percepção de segurança, promovida pela própria banalização da palavra certeza, usualmente não é verdadeira.
Assim pergunto: substituir uma incerteza real por uma certeza fantasiosa é o melhor caminho?
Iniciarei essa reflexão por um exemplo médico, embora essa palestra não seja sobre medicina, mas sim sobre processos de decisão e interpretação da vida.
Ontem, ao final de tarde, veio ao meu consultório um paciente VIP, conhecido de todos. Este paciente, muito idoso, estava preocupado com a noite de natal. Ele me contava que naquela noite, anualmente, ele trabalha horas consecutivas, entregando bilhões de presentes, a bilhões de crianças, espalhadas por diferentes locais do mundo. É um esforço físico imenso e Papai Noel está preocupado quanto ao risco de um ataque cardíaco na noite de natal, o que seria traumático para as crianças.
Diante de situações como esta, médicos tendem a fabricar certeza para oferecer a seus pacientes. Neste caso, usualmente se realiza um exame não invasivo para pesquisar doença coronária, a causa usual de ataques cardíacos. Por exemplo, uma tomografia de coronária poderia ser realizada a procura de um resultado normal que traria a certeza de que Papai Noel ficará bem durante a noite de natal. i
Assim pergunto: essa usual conduta é o melhor caminho?
Depois de 27 anos trabalhando em medicina, recentemente procurei saber a origem da palavra que significa minha profissão: “medicina” deriva do latim “mederi”, que significa “escolher o melhor caminho”. Medicina portanto não tem um significado que se restringe ao aspecto de saúde ou doença, a prática da medicina é a prática da tomada de decisão frente a incerteza, em qualquer profissão, em qualquer cirscunstância da vida.
Normalmente, ao procurar o melhor caminho, tentamos encontrar o caminho “certo”, desejamos a certeza, que é platônica.
Assim, pergunto: este é o melhor caminho?
Diante da percepção da incerteza, a humanidade encontrou formas de amenizar o desconforto. O primeiro advento, milenar, é o da religião. Aqui me refiro à existência de um ser supeior, onipresente, onipotente, que recebe nossos pedidos enviados por meio de rituais e responde nos garantindo um desfecho favorável. E mesmo quando as coisas não acontecem como queremos, “Deus escreve certo por linhas tortas”. Desta forma, a religião amezina nosso incômodo com a incerteza.
O segundo advento, este mais recente, é a ciência. Ciência nada mais é do que “tomar ciência” das leis da natureza. De posse dessas leis, criamos tecnologias que melhoram nossas vidas, tecnologias que nos trazem percepção de controle. A ciência tem sido bem sucedida, por exemplo, no ano de meu nascimento o homem chegou à lua, no último século a expectativa de vida da população dobrou. Isso é espetacular.
Por outro lado, surge o “paradoxo do conhecimento”: na medida em que o conhecimento científico cresce, aumenta a percepção da imprevisibilidade dos fenômenos. Os fenômenos são imprevisíveis pois decorrem em parte de (1) fenômenos aleatórios (acaso) e (2) sistemas complexos de causalidade, onde múltiplos fatores interagem entre si de forma imprevisível para gerar um resultado final.
Desta forma, o paradigma científico evoluiu da procura da certeza para a valorização da incerteza. A física evoluiu do paradigma newtoniano, para o paradigma quântico, bem caracterizado por Fritjov Capra em O Ponto de Mutação: “no mundo científico moderno, não podemos predizer quando e como um fenômeno acontecerá, apenas podemos estimar sua probabilidade.” E a medicina começa a evoluir do paradigma das regras e algoritmos para o paradigma de conceitos demonstrados cientificamente como norte em um processo de decisão baseada em probabilidade e alinhadas aos valores dos pacientes. Um tratamento comprovadamente benéfico não é garantida de benefício individual. Não há pílula de benefício, há pílulas de probabilidade. A isso denominamos “medicina baseada em evidências” ou como prefiro chamar, “medicina baseada em incerteza”.
Desta forma, incerteza não é ignorância. Incerteza é a principal lei da natureza.
Voltando a Papai Noel. Diante da preocupação com o infarto, a conduta médica tradicional é de investigar doença coronária. Hoje temos tecnologia para analisar as coronária de forma não invasiva. Podemos realizar uma tomografia de coronárias em Papai Noel. Confiamos nessa conduta pois ela parece coerente, remontando ao viés cognitivo descrito por Kahneman, confiança por coerência.
A coerência desta conduta reside na lógica de que se a tomografia for normal, garantiremos a Papai Noel que ele não terá um infarto na noite de natal. Por outro lado, se houver entupimento coronário por placas de gordura, podemos desentupir pela técnica de angioplastia coronária com implante de stent. Depois do stent, garantiremos a Papai Noel que ele não terá infarto na noite de natal.
Isso tudo é coerente, mas como coerência não é o mesmo que confiança, esta lógica precisa ser testada empiricamente. Isso foi feito por inúmeros estudos clínicos, que foram consistentes em duas conclusões: (1) pessoas sem entupimento de coronárias também infartam; (2) angioplastia coronária não reduz infarto em pessoas que nada sentem.
Portanto, não há como ter certeza de que Papai Noel não terá infarto. Podemos apenas estimar a probabilidade. E esta estimativa não precisa passar pelo diagnóstico ou tratamento de doença coronária. Em um mundo que valorizasse a incerteza, considerando que Papai Noel não sente nada, tem bom condicionamento físico para sua idade, está com parâmetros de pressão arterial, colesterol e glicemia controlados, podemos estimar que é pequena a probabilidade dele infartar junto na noite de natal.
Mas não nos contentamos com pequena probabilidade, temos "aversão à perda" e vamos à procura da certeza platônica. O problema surge quando essa procura gera consequências não intencionais. Sendo Papai Noel muito idoso (segundo o google = 500 anos), é muito provável que exista doença coronariana. Fazendo exame, encontraremos, transformamos um indivíduo saudável em um Papai Noel agora doente. Ao encontrarmos doença obstrutiva, desentupiremos. Ao desentupir, transformamos um indivíduo saudável em um Papai Noel agora convalescente do procedimento invasivo. E o pior, há apenas duas semanas da noite de natal?
Mas não nos contentamos com pequena probabilidade, temos "aversão à perda" e vamos à procura da certeza platônica. O problema surge quando essa procura gera consequências não intencionais. Sendo Papai Noel muito idoso (segundo o google = 500 anos), é muito provável que exista doença coronariana. Fazendo exame, encontraremos, transformamos um indivíduo saudável em um Papai Noel agora doente. Ao encontrarmos doença obstrutiva, desentupiremos. Ao desentupir, transformamos um indivíduo saudável em um Papai Noel agora convalescente do procedimento invasivo. E o pior, há apenas duas semanas da noite de natal?
Consequência: esse ano não haverá Papai Noel no Natal.
Este exemplo caracteriza o fenômeno de overuse em medicina, o uso de condutas potencialmente benéficas, mas aplicadas em circunstâncias cuja probabilidade de malefício supera a probabilidade de benefício. A medicina está repleta deste fenômeno, mediado pelo viés da ação, quando mais é sempre melhor.
Por exemplo, quando promovemos um internamento duvidoso para prevenir um desfecho improvável, pagamos um preço de fabricar outros desfechos não intencionais. Desde uma dor torácica duvidosa até um quadro mental pouco específico, internamentos por desencargo de consciência podem pode levar a procedimentos desnecessários no coração ou a eletrochoques dispensáveis no cérebro.
Vale salientar que a proposta desta reflexão não é de niilismo clínico, pois há atos médicos benéficos, desde exames a tratamentos. Mas o que não podemos é fazer demais de forma indiscriminada, em prol da certeza platônica, desconsiderando o equilíbrio das diversas probabilidades.
O entrelace das ideias aqui desenvolvidas com o tema do TEDx deste ano, “movimento”, toma forma com o movimento internacional Choosing Wisely, que podemos traduzir como escolhas sábias. A sabedoria é contra-intuitiva e neste sentido, sabedoria não é o mesmo que conhecimento certo, sabedoria é a valorização da incerteza.
Conclusões
Por mais claras e lógicas que sejam, nossas argumentações não resolvem o problema da aversão a incerteza, pois este é biológico e evolutivo. Não é com a razão que amenizaremos essa dor.
Aversão a incerteza é sentimento. E sentimento se cura com sentimento. Para resolvermos isso, precisamos nos apaixonar pela incerteza.
Isto é possível, pois se observarmos atentamente, a vida é interessante em grande parte porque é imprevisível. Um filme é mais divertido quando não desconfiamos de seu final, um jogo de futebol é mais emocionante quando seu time vira o jogo aos 44 minutos do segundo tempo de forma inesperada, descobrir o sexo de seu filho no momento do nascimento é mais bonito do que saber por um ultrassom realizado oito meses antes. E encontrar o amor de sua vida por acaso é muito mais romântico do que se seu esposo (a) ser escolhido por seus pais no momento do seu nascimento.
Eu estar neste momento falando no TEDx não foi um evento previsto por mim, nem mesmo sei qual será o impacto disto. Só saberei que impactou se algum dia, algum de vocês me encontrar passeando pelo Rio Vermelho, me segurar pelo braço e falar: “eu nunca me esqueci das ideias que você passou naquele dia”. Só então saberei do impacto.
Mederi não é escolher o caminho “certo”. Mederi é saber o “melhor” caminho. O melhor é o mais provável.
Assim, o valor da incerteza reside em três aspectos. Primeiro, incerteza induz pensamento probabilístico, ferramenta essencial ao bom processo de tomada de decisão; segundo, a percepção de incerteza aprimora nossa interpretação da vida: eventos indesejados se tornam mais leves, bons eventos se tornam mais interessantes quando usamos a perspectiva da imprevisibilidade; terceiro, incerteza é oportunidade. De forma responsável, precisamos escolher momentos para sair da gaiola da certeza, e realizar vôos ao imprevisível. Pois são estes vôos que dão chance ao acaso nos presentear com oportunidades novas e inusitadas.
Chegando ao final dessa palestra, que coincide com o final deste ano, deixo aqui minha despedida, que não será de “feliz ano novo”.
O que lhes desejo é um ano novo imprevisível. Uma vida imprevisível.
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Excelente. Neusa Abelin
ResponderExcluirMuito bom
ResponderExcluirCaro Luís,
ResponderExcluirEu trabalho com incerteza todo dia; e o pior é que nem médicos, nem pacientes (Àà vezes nem os próprios técnicos e bioquímicos que executam e interpretam os laudos) se desvencilham da "certeza que um exame laboratorial qualquer nos pode dar".
Ou então, pior, ficamos repetindo e achando que ao solicitar "exames mais complexos" resultaria um maior grau de certeza; será?
Bom, minha filha de 21 anos ganhou de seu namorado, o "Téo Bundy" [ele é meio "nerd", e não agradou muito à esposa, não estou bem certo porque...] - um Cubo Mágico. Uma daquelas maravilhosas pecinhas com cubos de 6 cores diferentes, onde a missão é montar todos os quadradinhos (4X4=16) de mesma cor, do mesmo lado.
Eu disse a ela:
- "Tenho certeza de que eventualmente você conseguirá [Pois, sabidamente, há uma técnica para "remontar" o cubo, simplesmente adorando-se as "decisões corretas"). Mas vou lhe propor um desafio: toda vez que você ou o Téo se desentenderem com sua mãe, terão que dar uma girada alheatória no cubo". Ela aceitou o desafio de primeira.
O certo é que, depois de uma semana, eu ganhei meu próprio "cubo mágico". Mas, estranhamente, observei que o meu tinha - não 4 - mas 2 quadrados de lado... Ou seja, ao invés de alinhar 4X4=16 cubos por lado, minha missão é somente alinhar 2X2=4...
Minha filha anunciou com isso que abandonava a premissa de "sempre agradar os outros" (uma decisão muito acertada), e eu estou curtindo o meu 2X2, com a graça de que às vezes "menos é mais"!
Será que a gente pode extrapolar esse tipo de decisão para a Saúde??
(Enquanto não decifro o cubo, estou ficando com o TANGRAM, um conjunto assimétrico de 7 peças geométricas (cortadas a partir de um quadrado), que também tem infinitas possibilidades...
Um bom Natal, e que o Bom Velhinho resista mais esse ano no Imaginário de alguns...
Como sempre. O Dr Luís dando um show. Mensagem clara e objetiva. Tudo na vida é probabilistico.
ResponderExcluirEu tenho uma unica certeza: que todos os seus post serão sensacionais.
ResponderExcluirInfalivel
Parabéns pelo texto. O melhor foi o ponto de vista de como a incerteza é muito mais divertida e prazerosa.
ResponderExcluirMaravilhoso. Um texto sábio e imprevisível!
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