A verdadeira sofisticação do processo de decisão depende do entendimento de “evidências” em sentido amplo. A mais importante evidência é a que demonstra racionalidade do processo de decisão. Muitas vezes, essa racionalidade depende da presença de evidências empíricas específicas; outras vezes a racionalidade depende do entendimento de que evidências empíricas são desnecessárias e até indesejadas.
Este post aborda esta segunda condição: racionalidade ao invés de "evidências". Ao entrar neste assunto, corro o sério risco de que meus argumentos sejam sequestrados para outros justificarem condutas cujos dados empíricos se fazem essenciais.
Por outro lado, o risco é maior quando optamos por abrir mão da racionalidade em prol da evidenciomania. O culto não pode ser da evidência, esta é um meio para se obter o fim. O culto deve ser à racionalidade, este é o fim.
Ciência não se limita a evidências. Ciência derivou da filosofia (pensamento), que se tornou ciência quando desenvolvemos o ceticismo e a percebemos a necessidade do empirismo. Empírico significa "aquilo que é resultado da observação prática". Mas ao adotar o paradigma do empirismo, não podemos perder de vista a importância do pensamento neste processo.
Pesquisador é empírico. Cientista, por sua vez, está em um nível maior, o filosófico. É o filósofo que passou a abraçar o empirismo, mas não perdeu a racionalidade. Na vida, nos processos de decisão profissional ou pessoal, não precisamos ser cientistas enquanto produtores de conhecimento. Mas precisamos da racionalidade científica para melhor entendimento do mundo ou escolha das soluções.
Ciência é o entendimento do mundo com base na interação entre pensamento e evidências. Precisamos pensar para entender o mundo, não apenas copiar evidências. Apresentei esta ideia há anos quando escrevi sobre o “princípio da prova do conceito”: uma evidência cria um conceito a ser usado no processo de decisão. A evidência não é a decisão.
O Princípio da Plausibilidade Extrema
Com base nisso, surge o primeiro princípio que nos orienta para a tomada de decisão a despeito da ausência de evidências empíricas. São situações irrefutáveis, já demonstradas como verdadeiras pela natureza, não sendo necessária a observação da realidade por meio do filtro da metodologia científica ou da realização de "experimentos". Na verdade, estudos são dispensáveis, mas também impraticáveis, anti-éticos. A presença de um grupo controle é inconcebível.
A racionalidade está em identificarmos como óbvias estas situações. Mas percebam que o princípio da plausibilidade extrema é também baseado em observação empírica, pois não são conceitos que advém do pensamento, mas sim da observação do mundo. A diferença é que estas observações não requerem um método de comprovação, pois são irrefutáveis em seu nascimento.
Há anos, apelidei esse princípio de paradigma do paraquedas, pois esse exemplo (cunhado por um clássico artigo no BMJ) deixa claro do que se trata o fenômeno.
No entanto, essa clareza não impede que muitos sequestrem indevidamente o princípio para justificar condutas que não se aplicam a essa ideia. Está demonstrado que em grande partes das vezes, as pessoas se referem inadequadamente a tratamentos como “paraquedas”. Mas não é por este risco que abandonaremos nossa racionalidade. Estaríamos optando por um dogmatismo científico que funciona contra a ciência.
Pseudociência não é o maior “inimigo” da ciência. O verdadeiro inimigo é o dogmatismo científico.
A propósito, tenho evitado pensar em amigos versus inimigos. Assim como evito a ideia de “defesa da ciência”, pois não estamos em uma guerra. Estamos apenas em um processo de evolução cognitiva. Não penso que há relevante prevalência de indivíduos contra a ciência. O que percebo é uma dificuldade de entendimento do que se trata "ciência". E de como esta deve interagir com a sociedade, complementando outras dimensões subjetivas, ao invés de nos colocar em conflito.
Cabe a quem entende o que é ciência evitar polarização. Cabe a nós ampliar nossos princípios de racionalidade. Porém, uma advertência: essa ampliação não deve abrir mão da rigidez na identificação de situações nas quais evidências empíricas são essenciais, como ocorre na maioria dos tratamentos clínicos individuais, que necessitam de prova de eficácia.
O Princípio da Assimetria
Este princípio se faz presente em situações em que não sabemos se há efeito positivo, pois há forças antagônicas, nos dois sentidos. Não há plausibilidade extrema para benefício. Mas há plausibilidade extrema que o beneficio, em se fazendo presente, é de muito maior magnitude do que malefícios potenciais.
É o caso das máscaras.
Máscaras na prevenção de doenças respiratórias virais não se justifica pelo princípio da plausibilidade extrema. Embora haja efeito direto comprovado na disseminação de vírus no ar, devemos aceitar a dúvida quanto a seu efeito total, derivada de um potencial efeito indireto: máscaras podem induzem contaminação por estimular que pessoas levem a mão ao rosto.
Mas há um particular nas máscaras. O seu efeito positivo é sistêmico (uma pessoa contaminando muitas), enquanto seu efeito negativo é individual (uma pessoa se contaminando). Portanto, há forte tendência de que o efeito total seja positivo. E se isso for verdade, o benefício é será exponencial de acordo com simulações matemáticas que usam a premissa de efetividade. Estamos diante de um efeito populacional, sistêmico, exponencial.
Há assim dois componentes de assimetria: (1) efeito direto positivo (sistêmico) > efeito direto negativo (individual); (2) impacto escalável de beneficio (se houver) maior do que impacto de possíveis consequências não intencionais das máscaras.
É o mesmo caso do aquecimento global.
É difícil comprovar esse fenômeno a partir de evidências empíricas experimentais (não temos mundo randomizados para serem poluídos ou despoluídos, a fim de comparamos). Este é um fenômenos sugerido por modelos matemáticos que tentam explicar a variação de temperatura e apontam emissão de gases como um dos fortes preditores. Mas a racionalidade científica está em entender que, caso este fenômeno seja verdadeiro, o benefício de medidas de controle é universal, exponencial, sistêmico, populacional. E o malefício da despoluição do mundo tende a ser de menor magnitude do que o potencial benefício.
Observem que estas argumentações não utilizam como alicerce principal o pensamento probabilístico, pois não temos este dado concreto: probabilidade de benefício versus malefício. O pensamento se baseia na assimetria de impacto dos fenômenos. A aposta é no maior impacto.
Mesmo assim, não significa abandonar o pensamento probabilístico. Vejam adiante.
A Compensação das Probabilidades
Embora o princípio da assimetria seja mais baseado na magnitude do efeito, não há um abandono do pensamento probabilístico. Ou seja, quando bem aplicado, esse princípio não implica na utilização de condutas de probabilidade mais baixa do que as condutas baseadas em evidências. Para explicar, preciso diferenciar um tratamento individual do tratamento sistêmico.
Na decisão clínica (individual), mesmo quando a eficácia é comprovada por evidências empíricas (incerteza conceitual resolvida), permanece a incerteza individual. Ou seja, tratamentos comprovados “sofrem” do paradigma do NNT quando se voltam para melhora prognóstica. Precisamos tratar muitos para poucos se beneficiarem. Portanto, a utilização de tratamentos eficazes não é o mesmo que certeza de benefício.
Por outro lado, máscaras ou desaquecimento global guardam consigo uma incerteza conceitual, pois não possuem eficácia comprovada. No entanto, não são “tratamentos” aplicados individualmente. Não são condutas aplicadas a muitos indivíduos para alguns de beneficiarem. São condutas sistêmicas, populacionais. Se aplica a uma população, para a população se beneficiar. Portanto, o NNT, se funcionar, é de 1. Melhor dizendo, não se aplica o paradigma do NNT.
Sendo assim, em condutas sistêmicas, a incerteza conceitual é compensada pela “certeza” de que se o efeito existir, ele vai se fazer presente quando aplicado. Equivaleria a uma certeza individual, na medida em que o indivíduo da ação é uma “unidade populacional”.
Mas essa vantagem probabilística não se deve apenas ao caráter populacional. A vantagem existe também pois estes tratamentos estão sendo aplicados a situações de problemas prevalentes, e não incidentes (que podem ou não ocorrer). Ou seja, o problema já existe. Isso elimina o principal motivo pelo qual o NNT tende a ser muito maior do que 1: tratamos muitos pacientes que nunca sofrerão do desfecho que queremos prevenir.
Por este motivo que o tratamento de sintomas prevalentes possui um NNT muito menor do que condições incidentes. Nos exemplos que usamos, a epidemia já existe, o calor já existe. Não é uma probabilidade.
A Regras de Aplicação da Assimetria
A fim de evitar banalização do princípio, proponho aqui três critérios de utilização que servem como resumo das ideias acima apresentadas. A ideal aplicação do princípio da assimetria ocorre quando três critérios são obedecidos:
- Condutas sistêmicas (promove efeito exponencial)
- Situação prevalente (NNT se aproxima de 1)
- Efeito intermediário comprovado (aumenta probabilidade de benefício)
Quanto a este último critério, observe que máscaras tem efeito direto comprovado em reduzir transmissão de vírus. Só não sabemos se o efeito total é verdadeiro.
Assim como reduzir poluição é plausibilidade extrema que reduz calor. Só não sabemos se a maior temperatura do planeta nesses período atual de fato se deve a este fenômeno.
A Aplicação Clínica da Assimetria
Como podem perceber o primeiro critério que pontuei acima eliminaria a possibilidade de utilizar o princípio da assimetria para pacientes individuais.
O problema de condutas individuais é que temos um única intenção (por exemplo, reduzir mortalidade) que concorre com uma infinidade de consequências não intencionais, algumas que imaginamos e muitas que nem imaginamos. Como a conduta individual é probabilística, a probabilidade deste único beneficio concorre com a probabilidade de algumas das infinitas consequências não intencionais. Portanto, normalmente em decisão clínicas não podemos prescindir de evidências que reduza a incerteza conceitual.
Mas há uma possibilidade: Seria substituir o conceito de impacto exponencial numérico por um impacto exponencial do ponto de vista qualitativo. Isso implicaria em um processo de decisão compartilhada, baseada em valores e preferências do paciente.
Imaginem um paciente com paralisia facial de causa viral. Devemos usar corticoide para tentar reverter a potencialmente grave sequela estética?
2. A situação é prevalente, pois o paciente já está com a face desfigurada.
3. Corticoide tem efeito antiinflamatório (intermediário) comprovado.
Mas como resolver a ausência do primeiro critério? Neste caso, usamos a magnitude. Observem que a magnitude qualitativa (caráter) do benefício estético é “exponencialmente” maior do que o caráter de potenciais efeitos adversos do uso de corticoide no curto prazo. Portanto, na aplicação clínica (individual), substituímos o primeiro critério por:
1. Beneficio de caráter “exponencialmente” mais importante do que o caráter dos potenciais malefícios (substituição da magnitude pelo caráter).
Ao final, devo salientar com ênfase que o uso dos tratamentos para piolho ou malária não podem ser embasados nesses princípio. Eles não obedecem aos ítens 2 e 3. Primeiro, são voltados para reduzir mortalidade, que não é prevelente, é “incidente”. Segundo, não possuem efeito intermediário clinicamente comprovado.
Claro que reduzir morte pode ser algo de “caráter” mais importante do que o efeito adverso de uma “arritmia”. Mas não basta a intenção. Não é de intenção que vive a racionalidade. Se fosse pelo apelo da prevenção de mortes, qualquer conduta se justificaria …
Conclusão
O princípio da assimetria traz um racional que parece complexo se comparado ao princípio da plausibilidade extrema. Este último é de extrema simplicidade e traz ideias irrefutáveis quando bem aplicado. Já o princípio da assimetria necessita de reflexão e pode incitar positivos debates quando à sua aplicação nas diferentes situações. É um princípio baseado no principal pilar da racionalidade científica: a dúvida.
* Este tópico se fez presente em episódios recentes do MBE Podcast e vídeos no Canal MBE.