Parte significativa das medicações de alto custo utilizadas para doenças raras promovem benefícios clinicamente modestos, tendo seu “valor” superestimado pela gravidade do problema e ausência de alternativas. Nestes casos, o problema da custo/efetividade está no denominador, pequeno para justificar o custo do tratamento, o que faz com que não seja um grande dilema a adoção de decisões baseadas no racional de saúde pública.
Esta semana foi aprovado pela ANVISA o registro da medicação apelidada para fins comerciais de Zolgensma, indicada para o tratamento de crianças que nascem com atrofia muscular espinhal tipo I, decorrente de defeito no gene responsável pelo desenvolvimento motor neuronal. É uma doença de curso clínico inexorável, rapidamente progressiva, devastadora, na qual praticamente todos morrem antes de completar 2 anos.
Diferentemente de muitos tratamentos para doenças raras, este possui grande magnitude de benefício. No único ensaio clínico realizado (NEJM 2017), todas as 15 crianças que receberam a droga em dose única permaneciam vivas após 20 meses, sem necessidade de ventilação mecânica, a maioria com relevante melhora no desenvolvimento motor. É o que chamamos de grande “tamanho de efeito”, algo como redução relativa do risco = 100%, NNT = 1. Tão grande que dispensa um grupo controle, pois estamos diante da “reversão do inexorável”.
A necessidade de um grupo controle vem da tendência a melhora quando se compara um grupo de indivíduos antes e depois, independente do tratamento. Esta melhora pode ser decorrente de efeito placebo, fenômeno de regressão à média (a média de algo extremamente ruim tende a se tornam menos ruim em uma segunda medida), viés de desempenho (outras melhorias de tratamento que acompanham uma intervenção). Porém, no caso do inexorável, efeito placebo não funciona, a média não regride, nem cuidados adicionais resolvem o problema. Desta forma, quando em um estudo de fase I (sem grupo controle) ocorre uma reversão do inexorável em quase todos os pacientes, sabemos que o efeito é verdadeiro. Não há necessidade de progredir até um estudo de fase III, controlado por placebo, randomizado.
Esta terapia genética é uma das maravilhas da biotecnologia. Paradoxalmente, nos deparamos com uma consequência não intencional da evolução tecnológica: o dilema do principialismo versus utilitarismo. Neste caso, o problema da custo/efetividade é o numerador. Enquanto a efetividade é muito grande, o custo é impagável. Esta é a droga mais cara do mundo.
Nos Estados Unidos, o custo do tratamento é de US$ 2 milhões (R$ 12 milhões). A definição americana de custo-efetividade é $50.000/ano de vida salva com qualidade. Sendo assim, as crianças salvas precisariam viver 40 anos em média para que o tratamento fosse custo-efetivo. O que temos de evidência por enquanto é 20 meses.
Mais importante do que a definição de custo-efetividade é o impacto orçamentário: o quando se gastaria com a droga. Fiz um cálculo grosseiro. Considerando que a incidência da doença é 1/16.000 nascidos-vivos e que nascem 3 milhões de bebês por ano, o Brazil produziria 190 pacientes com esta doença anualmente. O custo anual seria de 190 x 12 milhões = 2.3 bilhões de reais. Isto é 1/3 do orçamento inteiro do país para tratamentos de alto custo (Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF), que atende em média 2 milhões de pessoas ao ano para aproximadamente 100 condições clínicas diferentes (incluindo as raras). O utilitarismo se aplica bem no processo de gestão da saúde pública, pois em qualquer sistema, mesmo os de países ricos, recursos são finitos. Friamente, “sacrificar” alguns casos de atrofia muscular espinhal pode liberar recursos que salvarão mais vidas se bem aplicados em outras situações.
Por outro lado, em princípio, uma vida não preço. Medicina não é apenas gestão de recursos. Na outra ponta, existe um médico que tenta mediar a decisão compartilhada com os pais de uma criança, cujo curso natural da doença será morte precoce, em uma situação dramática. Antes do Zolgensma, embora muito sofrido, estes pais procurariam se contentar com a natureza. Hoje, a mera existência de uma alternativa terapêutica não permite que os pais desenvolvam aceitação e resiliência. Este é o drama promovido pelo custo desta espetacular tecnologia. O filho morrerá precocemente, não mais devido a uma rara doença genética, mas devido à inabilidade dos pais ou do sistema de proporcionar o melhor tratamento à criança.
Uma questão precisa ser aprofundada: por que esta droga é tão cara? O custo final de uma droga não decorre apenas do desenvolvimento da tecnologia. Determinantes como “valor” clínico (prevenção de morte, NNT = 1, dramaticidade da doença), raridade da doença (poucos tratamentos serão vendidos), falta de competição (único tratamento com essa eficácia) também justificam o custo final do tratamento. Todas as partes precisam estar envolvidas na discussão, quem cobra, quem paga, quem indica, quem se beneficia.
Enquanto sociedade, precisamos reconhecer o dilema e iniciar uma discussão madura a respeito de tecnologias médicas. Evitar o viés da superestimativa do benefício clínico em muitas terapias de alto custo é um caminho importante. E para as terapias de benefício relevante, aprofundar análises econômicas dentro do contexto social, sem populismo. Mas também considerando que a sociedade é feita de pessoas individuais, com seus próprios dramas pessoais.
Essa discussão não se limita ao Zolgensma. Diz respeito às contradições da tecnologia inventada pelo homem e aos dilemas da modernidade. Precisamos evoluir não apenas em terapias genéticas, mas também na resolução de dilemas.
* Agradeço a Heber Bernard (CONASS) e Daniel Wang (FGV) pelo produtivo debate sobre o tema.
____________________________________________________________________________________
* Conheça nosso Curso Online de MBE, clicando aqui.
O preço cobrado pelo medicamento deixa bem clara a intenção do laboratório que o desenvolveu (ao menos, estou admitindo, como leigo, que o custo de produção do remédio é baixíssimo, e que o preço cobrado tem como intenção recuperar os custos de pesquisa e desenvolvimento).
ResponderExcluirSenão, vejamos. Qual a intersecção do conjunto "pessoas que dispõem de US$ 2 milhões para pagar o tratamento dos seus filhos" com o conjunto "pessoas que tem um filho com atrofia muscular espinhal tipo I"? Acho que não precisa pesquisar muito para descobrir que essa intersecção é o conjunto nulo, ou no máximo dá para contar o número de elementos nos dedos das mãos. Quem tem utilidade para o remédio não tem dinheiro, e quem tem dinheiro não tem utilidade para o remédio.
Como tal, fica claro qual o público-alvo do laboratório. Qual entidade considera US$ 2 milhões o trocado da padaria? Como muito bem identificado pelo texto, os governos. Para ficar no exemplo do que aconteceu aqui no Brasil, agora com a aprovação da Anvisa, haverá uma chuva de ações judiciais exigindo o pagamento por este tratamento. Para cada ação judicial, haverá um juiz que nunca trabalhou no mundo real, que recebeu seu gordo salário de juiz em dia a vida inteira, e que acha que dinheiro dá em árvore (talvez não literalmente, ou assim espero, mas efetivamente pensa como se assim fosse), o qual autorizará o tratamento, independente do preço. Podia custar US$ 20 milhões ou US$ 200 milhões, autorizaria do mesmo jeito, porque "a vida não tem preço".
Pagar por este medicamento é o equivalente a negociar com terroristas. Isto simplesmente não pode ser feito, por princípio. Todos os países deveriam ter uma cláusula pétrea em suas constituições afirmando que, independente da condição e do contexto, remédios com custo acima de X por ano, ou por tratamento, jamais serão pagos pelo governo. E X não deveria ser muito alto: aqui no Brasil, talvez algo como o teto do INSS. Se os laboratórios já soubessem, de antemão, que todos os governos do mundo estariam proibidos de pagar preços tão absurdos nesse tipo de medicamento, então colocariam um preço razoável, que pelo menos algumas pessoas conseguiriam (com muito sacrifício, mas conseguiriam) pagar.
(Continua na sequência...)
(Continuação)
ResponderExcluirEvidentemente, o resultado de tal política seria que vários remédios deixariam de ser desenvolvidos, especialmente para doenças extremamente raras, onde será necessário cobrar um alto custo dos poucos pacientes existentes para cobrir os custos de pesquisa e desenvolvimento. Isto parece trágico, mas não podemos esquecer que a economia é a ciência de gerenciar recursos escassos. Como bem apontado no artigo, assim que começarmos a gastar R$ 3,6 bilhões/ano com este medicamento (e não se engane, isso acontecerá, como explicado acima), imagine quantos milhões de pessoas serão prejudicadas pela falta deste dinheiro, para beneficiar apenas 300 pessoas?
Qual a solução? Gerenciar os recursos escassos de forma racional, para que a economia continue crescendo, e o inexorável progresso permita que no futuro, um medicamento como esse possa ser desenvolvido com custo baixíssimo, e esteja ao alcance de todos que precisarem dele. Se isso parece utópico, pense o quanto era caro e rudimentar o primeiro computador (desenvolvido há menos de um século), e como, no lapso de tempo de uma vida humana, os computadores se tornaram tão baratos e poderosos. Infelizmente isso significa que algumas pessoas irão morrer por doenças cujo tratamento, tecnicamente falando, está ao alcance da tecnologia hoje. Porém, apenas porque a tecnologia existe, não significa que ela é viável. Façamos um experimento mental: imagine que, a muito custo, alguém enviasse um paciente com câncer ao espaço e descobrisse que o ambiente de microgravidade cura o câncer (lembre-se, é um experimento mental, não é para ter bioplausibilidade). Existem recursos hoje para mandar uma pessoa ao espaço e curar o câncer daquela pessoa específica? Sem dúvida, mandamos astronautas ao espaço com certa frequência. A pergunta é: temos condições de mandar todos os doentes de câncer para o espaço? Poderíamos acabar com toda a riqueza da humanidade e nem assim conseguiríamos enviar todos os doentes de câncer ao espaço, mesmo que um juiz autorizasse cada paciente que requisitasse esse tratamento.
Conforme previsto há 1 mês atrás, já saiu a primeira decisão judicial obrigando ao pagamento do preço absurdo desse remédio:
Excluirhttps://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/09/16/justica-manda-uniao-pagar-r-8-milhoes-de-remedio-que-pode-salvar-bebe.htm
Agora é esperar as outras centenas, senão milhares, de pedidos que virão. Se essas decisões não forem urgentemente reformadas, pode ser que esse um único remédio seja a gota d'água para o já falido estado brasileiro.
Entendo que o capital não pode estar acima da vida. A discussão não deveria ser se a sociedade pode pagar tanto por uma tecnologia, mas até quanto a indústria pode lucrar com ela. Uma coisa que não ficou clara no seu texto e eu não fui buscar: sem a terapia, qual é o prognóstico das crianças até os 20 meses de vida.
ResponderExcluirCaro amigo Luis,
ResponderExcluirUma questão complexa, que vai além da Metodologia Científica, do Choosing Wisely e da Economia Médica. Me parece mais um conflito envolvendo Ética pessoal e de instituições, e política econômica global.
Embora o crescimento da população humana tenha sido desacelerado pela COVID-19, ainda somos mais do que 7 bilhões, caminhando em direção aos 8. Nesse contexto, doenças raras se tornam numericamente mais frequentes.
Qual o "valor" de uma vida humana? Como contrabalançar o valor de mais algum tempo de vida — com maior ou menor qualidade — de um número pequeno de indivíduos contra o número ainda expletivo de indivíduos que não têm um mínimo de qualidade de vida por falta de tecnologias bem mais simples — como elementos básicos de nutrição e saneamento básico? Se uma vida não tem preço, não devíamos todos nos envolver — no Brasil — em um movimento que garantisse prevenção e tratamento a inúmeros casos de doenças infecciosas e infestantes — como Esquistossomose, diarreias, anemias, e outras —que reduzem a qualidade de vida, afligem e matam cidadãos? Qual, ou quais, as vidas que devem ser salvas, ou preservadas com qualidade?
O fato de que uma indústria privada investiu em pesquisa neste tratamento evidencia seu desejo de ressarcimento monetário. Devemos pensar: durante quanto tempo os pesquisadores investiram até chegar a esses resultados? Quanto tempo é viável (e justo) que esperem até o ressarcimento? E quem deve ser o responsável econômico, sabendo-se que ao longo do tempo haverá outros pacientes (e o custo econômico se diluirá)? será que, após pago o valor estimado por essa pesquisa, o valor do tratamento para os novos pacientes que surgirem se resumirá aos custos de produção?
Algo que sabemos é que a pesquisa em indústria farmacêutica não trabalha exclusivamente em função de "salvar vidas" ou "aumentar a qualidade de vida". Mais do que auto-sustentação, ela deseja lucro.
Este tipo de situação tem um alto impacto emocional. E a sociedade responde também de forma emocional.
Um outro fator que devemos levar em conta é que, na mentalidade da maioria dos cidadãos, "o que é do governo não é de ninguém". Quando se julga a respeito de quanto os cofres públicos devem pagar a quem — e porque — raramente se para pra pensar de onde esses recursos surgirão.
Surgirão de recursos que os gestores de saúde terão de deslocar de outros programas como saneamento básico e controle a vetroes e zoonoses. Ou de uma mobilização de outros projetos, como os da educação. Dificilmente afetarão remunerações de altos cargos do executivo, legislativo e judiciário — e suas respectivas qualidades de vida.
E o globo continuará a rodar, COVID-19 ou outro patógeno qualquer.
Dá o que pensar. Diria o programa de TV: "Vamos abrir as Portas de Esperança!"
Excelente Luis. Vivemos em um Brasil com uma distopia esquizofrênica na saúde. Acredito que o princípio do utilitarismo deve nos guiar nessas difíceis decisões.
ResponderExcluirParabéns.