Três dimensões são tradicionalmente discutidas em medicina baseada em evidências: veracidade, relevância e aplicabilidade de uma informação científica. Porém essa tríade tradicional carece de uma quarta dimensão: a conceitual. Embora essencial para o completo entendimento das questões, esta se mostra uma dimensão perdida no pensamento médico tradicional, mesmo por parte daqueles que se alinham com o paradigma baseado em evidências. O equívoco que promove a perda desta dimensão está na confusão entre medicina baseada em evidências e medicina copiada de evidências.
A falta de percepção da dimensão conceitual reduz um pensamento aparentemente baseado em evidências a um estratégia simplória demais para ser considerada científica. Ciência é a exploração de conceitos, que deverão nortear nossas interpretações e ações no universo. Em ciência, o racional científico domina o processo e a evidência é uma de suas ferramentas. Na ausência da dimensão conceitual, a evidência passa a dominar a ação do homem, que não pensa, apenas obedece. Isso não é medicina baseada em evidências. Isto é “evidenciomania”.
O que me motiva a provocar mais uma vez essa reflexão é o crescente entusiasmo pela inibição do SGLT2 (co-transporte de sódio e glicose) no tratamento da insuficiência cardíaca. Esse assunto volta à tona pela apresentação no Congresso Europeu de Cardiologia do segundo grande ensaio clínico randomizado a respeito deste tratamento, publicado simultaneamente no NEJM (EMPEROR-Reduced Trial). Trata-se de um estudo grande, de boa qualidade metodológica, baixo risco de viés e erro aleatório, que demonstra eficácia da empagliflozina em pacientes com insuficiência cardíaca sistólica. Eficácia em promover redução de 25% no desfecho primário (combinado de morte CV e hospitalizações) quando comparado ao placebo (vide figura).
Este estudo reproduz o resultado positivo do estudo DAPA-HF, publicado há 1 ano na mesma revista, época em que provocamos essa mesma reflexão em nosso Canal do YouTube. No DAPA-HF a droga utilizada foi Dapagliflozina.
Neste post, não entrarei em detalhes das diferenças entre os dois estudos, pois seus métodos e resultados são muito mais semelhantes do que diferentes. Tratam-se de dois grandes e bons estudos, reprodutíveis, que se confirmam: a prescrição deste tipo de droga em pacientes com insuficiência cardíaca é “benéfica”. Esta é uma afirmação de caráter pragmático e com alto grau de confiabilidade.
Por outro lado, para que esta informação se torne uma “recomendação” cardiológica (daquele tipo Classe I, Nível de Evidência A), precisaríamos ir mais profundo na análise: este resultado pragmático comprova o conceito da inibição do SGLT2 é essencial para alcançar esse incremento positivo no prognóstico destes pacientes? Ou podemos alcançar essa meta de forma mais simples?
As Glifozinas
Estas drogas foram criadas como hipoglicemiantes orais. Inibem proteínas localizadas nos túbulos renais, que são responsáveis pela reabsorção da glicose de volta ao sangue. Portanto, reduzem a glicemia, o motivo pelo qual a classe farmacológica se tornou uma “medicação” para diabéticos.
Essa mesma proteína é responsável pela reabsorção de sódio. Portanto, esta classe de hipoglicemiantes promove também um efeito similar aos diuréticos de alça: promovem diurese e efeito anti-hipertensivo similar a diuréticos utilizados para estes propósitos.
Vale a pena rememorar a origem das ideias: originalmente se apostou no benefício cardiovascular destas drogas com base em um racional anti-aterosclerótico, a partir dos efeitos metabólicos em diabéticos. No entanto, os estudos não mostraram redução em infarto ou AVC, tendo sido o componente “insuficiência cardíaca” responsável pela benefícios apresentados nos desfechos compostos em diabéticos. Assim, surgiu a ideia de se testar esta droga como tratamento de insuficiência cardíaca, independente do paciente ser diabético.
Em resumo, a droga não vingou em relação a seus efeitos metabólicos. Vingou, de forma colateral, em relação ao controle da insuficiência cardíaca, que se refere muito mais ao efeito diurético.
Vamos agora fazer um raciocínio probabilístico quanto ao conceito do benefício na insuficiência cardíaca. Tendo sido a droga efetiva em insuficiência cardíaca, qual o mecanismo conceitual que mais provavelmente justifica o benefício?
Observem como o autores do DAPA-HF escrevem na introdução do trabalho, como possíveis mecanismos do benefício, numerados por mim em argumentos 1 ou 2:
“In addition to (1) diuretic and related hemodynamic actions of SGLT2 inhibitors, (2) effects on myocardial metabolism, ion transporters, fibrosis, adipokines, and vascular function have also been proposed.”
O que é mais provável, o mecanismo 1 ou o conjunto de mecanismos apresentados no item 2?
No primeiro caso, estamos diante de um benefício de ordem direta e já demonstrado: o aumento de diurese promove controle de insuficiência cardíaca.
No segundo caso, estamos diante de mecanismos incertos e que precisam de uma cascata probabilística indireta e condicional: primeiro esses mecanismos precisam ocorrer (probabilidade 1) para depois promover melhora da função cardíaca (probabilidade 2) e em seguida ser capaz de compensar a doença (probabilidade 3). Estamos diante de probabilidade condicional (P1 x P2 x P3), sendo portanto uma probabilidade menor do que a simples ideia de que o aumento de diurese vai melhorar a insuficiência cardíaca. Simples assim! É uma questão probabilística.
Muitas vezes nossa mente confunde a elegância da hipótese com sua probabilidade. Parece ser mais interessante os mecanismos propostos no item 2, elegantes por sua complexidade. No entanto, quanto mais complexo um mecanismo, mais incerto.
Outro equívoco que faz a comunidade cardiológica “crer” nos mecanismos menos prováveis é a resistência à valorização do diurético. Trata-se do “paradoxo do paraquedas”, recentemente comentado por mim no Podcast. Quando uma conduta é de plausibilidade extrema, esta nunca será detentora de um ensaio clínico demonstrando benefício, pois este ensaio seria inexequível. Nunca haverá um estudo com um grupo controle da não utilização de diurético na insuficiência cardíaca. Isso causa um paradoxo: o que é óbvio deixa de ser óbvio pois não tem evidências.
Está por trás desse paradoxo a maior valorização de inibidores da ECA ou beta-bloqueadores, quando comparados a diuréticos na insuficiência cardíaca. Os primeiros possuem evidência de redução de mortalidade, diferente dos segundos que viraram “patinhos feios” no arsenal terapêutico. Ora, diuréticos não têm evidências empíricas pois são tão importantes que perdem a equipoise necessária para a realização de um estudo com placebo de diurético! No entanto, já ouvi algumas vezes argumentos contrários à priorização de diuréticos pois estes “não reduzem mortalidade”.
Não tento aqui defender que o mecanismo do benefício seja apenas diurético. O que defendo é que não sabemos qual o mecanismo, portanto não existe prova do conceito de que a inibição da SGLT2 possui um benefício metabólico que vai além do efeito diurético (que, por si só, já seria um grande efeito).
Os Ensaios Clínicos
Percebe-se que nestes ensaios clínicos há redução de peso do paciente, redução do BNP, concentração do hematócrito, demonstrando que há controle de volemia. É interessante avaliar a magnitude deste efeitos. Por exemplo, vamos analisar o impacto numérico no peso: a média de redução do peso no grupo glifozina no estudo ontem publicado foi de 0.73 ± 0.13 Kg. Isso parece pouco. No entanto, notei por sorte que 0.13 Kg não é o desvio-padrão, como comumente se utiliza em tabelas. No rodapé da tabela está indicado que isto é o erro-padrão. Desta forma, o desvio-padrão (erro-padrão x raiz quadrada do N) é na verdade 5.6 Kg.
Isto indica que há grande variação de perda de peso na amostra, e uma quantidade razoável de paciente reduz peso substancialmente. Com base nesse desvio-padrão, podemos estimar que 35% dos pacientes perdem mais de 3 Kg com o tratamento (Z = 0.4). Por outro lado, podemos estimar que 29% do grupo controle perdem 3 Kg. Observem que a diferença de 5% na perda destes arbitrários 3 Kg que cabo de inventar é exatamente a diferença de 5% na incidência do desfecho primário. Isso pode ser suficiente para causar uma diferença de 100 desfechos entre duas amostras de 1800 pacientes, cujo NT-proBNP mediano é 1887 pg/ml, e 25% dos pacientes tem este valor > 3800 pg/ml (percentil 75). A mesma análise pode ser feita com a variação do NT-proBNP.
Essa minha análise matemática nada comprova, porém trás à tona a possibilidade de que estejamos observando o resultado do efeito diurético em pacientes com insuficiência cardíaca. Precisamos valorizar a dúvida, evitar muita conversa baseada em lógica e ir ao encontro do grupo controle.
Nenhuma subanálise desses ensaios clínicos conseguirá responder devidamente esta dúvida. A única forma de responder é a comparação do efeito deste tratamento com um grupo controle que proporcione mais diurese, sem oferecer os efeitos metabólicos das glifozinas. Esta é a magia do grupo controle, conforme proposto pelo criador do método científico, Ronald Fisher, e em seguida importado por Bradford Hill para as pesquisas da área médica. Parece que o conceito básico do grupo controle se perde no processo de evidenciomania.
Assim, ajustando para a diurese, poder-se-ia avaliar o efeito deste tratamento per si. Com um pouco de imaginação, seria criado um desenho que tivesse um terceiro braço em que um diurético fosse acrescido em uma dose equivalente à diurese adicional oferecida pela glifozina. Não quero entrar em detalhe que diurético ou que dose, isso deixo para os “trialistas”, que precisam colocar a mente para pensar mais cientificamente. Afinal, o verdadeiro cientista é aquele que sabe elaborar as perguntas certas.
Na ausência deste grupo controle ficamos sem saber qual o verdadeiro conceito por trás dos resultados pragmáticos trazidos pelo DAPA-HF e EMPEROR-Reduced: glifozinas possuem um efeito metabólico que ajudam do tratamento da insuficiência cardíaca ou pacientes que aparentam clinicamente compensados se beneficiam de uma dose extra de diurético?
Observem que a diferenciação destes dois conceitos é de importância na construção de um entendimento científico que permita maior sofisticação no nosso processo de definição de conduta.
Idealmente, glifozinas deveriam se tornar uma droga preferencial para tratamento do diabetes de pacientes com insuficiência cardíaca, enquanto o tratamento de não diabéticos deveria esperar a comprovação conceitual.
A julgar pelo entusiasmo com o novo tratamento para insuficiência cardíaca, julgo pouco provável que um desenho deste faça parte de um ensaio clínico futuro. Afinal, o grupo controle correria o risco de negar o entusiasmo tribal que cardiologistas estão compartilhando como mais uma evolução do tratamento da insuficiência cardíaca.
É pena que trocamos um processo virtuoso de evolução científica no tratamento da insuficiência cardíaca, pela duvidosa invenção de "recomendações" que carecem da percepção conceitual, baseado em achados pragmáticos de ensaio clínicos não foi desenhados para promover verdadeiras descobertas científicas.
Trocamos a evolução cognitiva por uma invenção que não sabemos o verdadeiro significado.
PS: O objetivo deste texto não é uma conversa sobre glifozinas, o menor dos problemas. É uma conversa sobre pensamento científico, nossa maior carência.
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