Manifestações sugerindo que Conselhos regulem o exercício da medicina no sentido de decisões baseadas em evidências têm se tornado frequentes. Estes recentes artigos e cartas abertas são motivados pela notória irracionalidade das prescrições de drogas fantasiosas para COVID-19. Se por um lado o diagnóstico de irracionalidade é adequado, questiono a efetividade da solução proposta.
Este tipo de proposta me parece ingênua e talvez advenha do parcial entendimento do que se trata “medicina baseada em evidências”. Mais que uma forma de agir (prescrever), é uma forma de pensar (racionalizar). E não impomos maneiras de pensar … podemos, influenciar, educar, motivar e moldar uma cultura em prol da racionalidade científica. Mas isso não se faz por regulamentação.
A atividade médica tem duas vertentes, uma técnica e outra cognitiva. A primeira pode ser regulada com base em regras: posso obrigar que todo cirurgião, antes da cirurgia, faça um checklist para aumentar segurança de seu ato médico. A segunda, é impossível de regular, pois é uma atividade interna do médico (inside-out), um processo de decisão baseado em incerteza.
Imagine que decidíssemos proibir (tornar um crime) a prescrição individual de antimaláricos, remédios de verme e de piolho para tratamento de COVID-19. A regulamentação (proibição) poderia prevenir eventos adversos dessas drogas, no entanto não estaríamos resolvendo o principal efeito colateral deste tipo de prescrição: a promoção da cultura da irracionalidade ou da cultura da fé aplicada a atos profissionais. Não estaríamos entrando no cerne do problema. Estaríamos isentando o médico da responsabilidade de pensar, defender e assumir suas próprias decisões.
Entendo a preocupação contida nestas manifestações. Porém, do ponto de vista de um acadêmico cuja atividade principal há 15 anos é o ensino do pensamento científico aplicado a decisões médicas (medicina baseada em evidências), estas propostas de regulamentação parecem simplórias. Não podemos criminalizar a irracionalidade, pois esta é inerente da mente humana. O caminho é a discussão, não a polarização; o treinamento, não a imposição ou punição.
Pior, este tipo de conduta (a regulamentação) nem mesmo seria “baseada em evidências”. Há uma vasta literatura comportamental apontando para a incerteza do efeito benéfico de proibições. Seria um paradoxo, impor medicina baseada em evidências sem evidências de que esta imposição seria benéfica para a sociedade.
A ingenuidade desta proposta reside também na falta de percepção de que atos médicos irracionais ou não baseados em evidências são (muito) prevalentes em medicina, fazem parte de nosso cotidiano … o fenômeno da cloroquina não surgiu com a COVID-19, sempre existiu. E há “cloroquinas” muito mais prejudiciais para a sociedade e indivíduos.
Boa parte dos atos médicos irracionais não aparentam ser esdrúxulos. O maior perigo mora no que parece benéfico, mas não é. São as condutas inerentemente benéficas, porém aplicadas de forma inadequada e excessivas. Por exemplo, angioplastia coronária é um grande advento, muito benéfico em pacientes com infarto do miocárdio, porém fútil e prejudicial em pacientes estáveis assintomáticos ou oligossintomáticos. Quimioterápicos, alguns eficazes se bem indicados, são utilizados em condições de extrema futilidade. Diagnósticos, parte essencial da prática médica, ganham potencial maléfico quando feitos fora do contexto clínico (overdiagnosis). São estes tipos de “cloroquinas” que mais devem nos preocupar. E estes não podem ser regulados, pois dependem do pensamento médico.
Achar que a solução está nos Conselhos de Medicina é reduzir a medicina a uma profissão meramente técnica …. é reduzir o paradigma da medicina baseada em evidências a uma fantasia regulamentar.
Na verdade, não existe “medicina baseada em evidências”, este termo é apenas um avatar do que deveríamos simplesmente denominar de “medicina”. Diferente da medicina tradicional, milenar, a medicina contemporânea tem a possibilidade de ser norteada por conceitos científicos advindos de um método novo (científico), criado no início do século passado. Hoje podemos e devemos utilizar evidências (de qualidade) como bússola no processo de decisão.
Podemos ir mais fundo da descrição do processo médico… Decisões não devem ser apenas cópias de evidências científicas. O processo cognitivo deve ser norteado por conceitos científicos comprovados, mas também levar em conta particularidades clínicas e preferências do paciente, além de características do ecossistema a sua volta.
A qualidade do processo de decisão médica reside na principal característica que define o problema: a incerteza. Sendo medicina a tomada de decisão diante da incerteza, o objetivo não será a decisão certa, esta não existe no momento da escolha. Só saberemos o que foi certo (ou errado) depois. O objetivo é a melhor decisão. Não podemos confundir certo e melhor. A escolha do melhor é um processo probabilístico e as probabilidades residem nas evidências. Na verdade, “evidências são um meio, não um fim.”
Esse processo não pode ser regulado. Seria como querer regular como dirige um piloto de Fórmula 1. Diferentemente de ser regulamentado, este piloto pode evoluir com treinamento, aprimoramento reflexivo, cognitivo. Portanto, ao invés de regulamentação, precisamos de evolução da habilidade de pensamento e atitude reflexiva.
Mas isso não basta, precisamos de algo que promova motivação intrínseca em prol desta evolução. Como fazer isso em um mundo cuja motivação está nos poucos minutos de fama advindos de postagens no Instagram (motivação extrínseca)?
O autor comportamental Daniel H. Pink propõe que um dos pilares da motivação intrínseca é a sensação de maestria. Não foi por acaso que fiz analogia com pilotos de Fórmula 1, pois estes remetem à excelência da pilotagem. E aqui está uma solução para potencializar a racionalidade científica no médico. A indução da motivação intrínseca pelo desejo de excelência.
Esta “indução” é denominada pelos cientistas comportamentais de nudge. Precisamos estimular as novas gerações (e as velhas também) à procura da excelência cognitiva, não apenas a técnica. No dia em que se tornar interessante procurar a maestria no processo de decisão, todos vão querer ser interessantes. Imaginem um mundo em que a “moda” é a racionalidade científica.
Neste novo mundo, a mentalidade da prescrição (de qualquer coisa) baseada no paradigma da ação dará lugar à motivação pela excelência da escolha cognitiva. Neste mundo, médicos sentirão vergonha de prescrever cloroquinas e desejarão postar das redes sociais a maestria de seus processos de decisão baseados em incerteza e probabilidade.
Não só médicos, toda a sociedade. Afinal, "medicina" é um termo genérico, advindo do latim mederi que significa “escolher o melhor caminho”.
O melhor caminho não está na regulamentação da maestria médica.
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